Conexões

Destaques

"Esta Valsa É Minha"


A VALSA DE ZELDA – UMA ANÁLISE DAS CRÍTICAS AO LIVRO ESTA VALSA É MINHA


Autora: Amanda Vital de Campos de Freitas

Orientadora: Profª Dra. Verônica Daniel Kobs


“A Mad Tea Party”, de Zelda Fitzgerald. 

 

ResumoZelda Fitzgerald, cuja a obra-prima é Esta Valsa É Minha, foi uma prolífica bailarina, pintora e escritora, contudo, por culpa das críticas tendenciosas feitas à época, ficou conhecida, por muitos, apenas como “a sombra de Scott Fitzgerald”. Dado o sucesso de seu marido, e a saúde metal dos dois, críticos não deram a atenção devida ao trabalho de Zelda, tentando apenas criar uma narrativa que dramatizasse a relação do casal e suas condições psicológicas. É possível concluir que tais críticas prejudicaram não apenas a percepção do público a respeito da obra, mas também a carreira de Zelda Fitzgerald. Para este artigo, usar-se-á por base teórica os ensaios sobre o feminismo de Virgínia Woolf, em especial seu livro Mulheres e Ficção, no qual é tratada a inserção de mulheres no mercado literário e preconceito presente em tal indústria; e, o livro Criatividade e Processos de Criação, de Fayga Ostrower, no qual é tratado da influência do ambiente externo na produção artística de uma pessoa.

Palavras-chave: Crítica Literária, Esta Valsa é Minha, Zelda Fitzgerald

 

Introdução

 

Zelda Fitzgerald (1900-1948) foi uma escritora, pintora e bailarina, cuja obra-prima literária é considerada Esta Valsa É Minha, um romance que mescla elementos de ficção e autobiografia, narrando a história de um casal enfrentando as inseguranças e autodescobertas dos primeiros anos da vida adulta sob a sombra do período de instabilidade entre guerras. Apesar de sua carreira artística prolífica, muitos conhecem Zelda apenas por seu casamento com F. Scott Fitzgerald, considerado um dos grandes nomes da literatura americana.

Como posto por Sally Cline, em seu livro Zelda Fitzgerald: Her Voice in Paradise (p. 41, 2013), “Ser a esposa de Fitzgerald ofereceu à Zelda oportunidades artísticas que ela talvez não tivesse obtido facilmente sozinha, mas ser a esposa de Fitzgerald tornou mais difícil para o público dele avaliar os talentos dela por mérito próprio.”. A autora ainda coloca que o público contemporâneo à Zelda ofuscou seu talento artístico com o interesse por seu casamento e sua saúde mental. Tendo vivído em um período de bastante preconceito e misoginia, mais do que seria nas décadas posteriores, Zelda teve sua obra julgada pelo gênero de sua autora, sua condição financeira, seu estado psicológico, inúmeros fatores que não eram seu talento literário.

Dado o sucesso de seu marido, a atenção da mídia voltou-se para o relacionamento e a vida pessoal do casal, tirando o foco de suas obras literárias, em especial à de Zelda Fitzgerald, e criando especulações sobre a dinâmica do casal, e utilizando a persona do marido para ofuscar a artista prolífica que Zelda era, comparando seu trabalho ao de seu marido ou considerando sua literatura como inferior dado o fato de ser mulher.

Ao compilarem as cartas trocadas pelo casal para o livro Dear Scott, Dearest Zelda: The Love Letters of F. Scott and Zelda Fitzgerald, Cathy W. Barks & Jackson R. Bryer esclarecem que houve um sensacionalismo do relacionamento dos dois e de suas condições psicológicas (Bryer & Barks, p. 13-14, 2002). Como pontuado pelos autores, pouco se sabia na época a respeito de saúde mental e isso foi um fator agravante nas especulações criadas pela mídia e os críticos contemporâneos ao casal. Scott Fitzgerald sofria de alcoolismo e Zelda Fitzgerald foi diagnosticada e internada como esquizofrênica, e anos depois receberia o diagnóstico correto de depressão. Por conta da fama de Scott, a mídia se refestelava ao produzir matérias comentando a saúde mental dos dois e trazendo de que forma isso influenciava na vida do casal, trazendo especulações à guisa de verdade.

Entre as elucubrações feitas estava a de que Zelda teria inveja de seu marido e teria usado o esboço que Scott lhe apresentara de Suave É a Noite para escrever seu próprio romance, Esta Valsa É Minha. Ambos os livros têm determinado teor biográfico e referenciam os mesmos eventos da vida do casal Fitzgerald. Sabe-se que Scott mostrou uma versão prévia da obra supracitada para que Zelda lesse enquanto estava internada; entretanto, a própria neta do casal contradiz as opiniões maliciosas que se formaram sobre tal assunto. Na introdução que escreveu para o livro Dear Scott, Dearest Zelda: The Love Letters of F. Scott and Zelda Fitzgerald, Eleanor Lanahan afirma que, apesar de a imagem de inveja e manipulação que a mídia e os críticos tentaram retratar na época, e continuam tentando, Scott Fitzgerald reconhecia o talento da esposa e incentivava sua carreira como pintora e escritora. Lanahan ainda aponta que, sob um olhar mais moderno, é possível compreender melhor a situação dos dois e os problemas que os acometiam, empatia que não encontraram nas décadas de 20 e 30, limitadas por seus inúmeros preconceitos, incluindo às neurodivergências e instabilidades psicológicas (Lanahan, p. 23-32, 2002).

Assim, Esta Valsa É Minha chega às lojas, em 1932, sob forte escrutínio da crítica. Zelda foi julgada como uma escritora de talento inferior ao marido, tendo sua obra constantemente comparada à de Scott. Fato que apenas se agravou com o lançamento, em 1934, de Suave É a Noite, no qual Scott Fitzgerald se inspira nos mesmos eventos da vida do casal. Dadas tais semelhanças, não faltaram críticos para alegar que Zelda havia copiado a ideia para seu livro e o publicado antes para ganhar o reconhecimento sobre o trabalho que teria sido de seu marido. Novamente, a obra de Zelda não era analisada de maneira isolada, mas sim vinculada à de Scott.

Reiterando a colocação de Lanahan (p. 23-32, 2002), os críticos preferiam criar especulações do que se atrelarem a fatos, visando dramatizar o ocorrido, colocando Zelda na posição de mera sombra do marido e não dando a sua obra a devida atenção, rotulando-a apenas como uma cópia inferior, troçando sua saúde mental e desmerecendo sua qualidade artística. Esse escrutínio perduraria mesmo após a morte do casal, sendo que Scott faleceu em 1940 e Zelda oito anos depois, em 1948. Críticos ainda especulavam sobre a vida do casal; questionavam o diagnóstico de Zelda; vasculhavam, em meio às cartas trocadas pelos dois, provas de um relacionamento problemático. Tudo isso na tentativa de criar uma narrativa dramática para o público consumir tal qual um folhetim. Em meio a esse sensacionalismo, a obra e o talento de Zelda Fitzgerald foram relegados para segundo plano.

Explanado brevemente o contexto no qual Zelda Fitzgerald e sua obra estavam inseridas, tratar-se-á da estruturação deste artigo. Dividido em quatro seções, será primeiro exibido um panorama da vida de Zelda, suas ideologias, sua carreira em diversas formas de arte, as motivações que a levaram a escrever sua obra etc. Na segunda seção, tratar-se-á especificamente de Esta Valsa É Minha, único livro publicado da autora, descrevendo elementos da narrativa e propondo paralelos entre a vida e as ideologias de Zelda. Na terceira seção, serão tratadas as cíticas recebidas por sua obra e a tentativa de especular em relação à vida pessoal da autora. Por fim, as considerações finais tratarão novamente das críticas feitas à autora e como seu legado perseverou apesar das tentativas de a colocarem à sombra de seu marido.

 

Zelda Fitzgerald

 

Para entender a arte, é necessário conhecer a pessoa que a realizou, um sentimento resumido por Fayga Ostrower, em seu livro Criatividade e Processos de Criação, na frase “[…] criar e viver se interligam.” (Ostrower, p. 5, 2001). A autora propõe que as criações de uma pessoa estão diretamente relacionadas com seu contexto histórico, social e cultural. Ademas, Ostrower reforça que a arte deve ser crítica à sociedade na qual está inserida.

Portanto, para entender Zelda Fitzgerald como artista, é necessário conhecê-la como pessoa. Nascida em 1900, Zelda Sayre era natural da cidade de Montgomery, no Alabama, EUA (estado homônimo à protagonista de Esta Valsa É Minha) e tinha uma vida cômoda em uma família de posses, sendo sua mãe uma senhora da casa e seu pai um influente político local, uma estrutura familiar comum na época, em que os homens eram os únicos provedores financeiros da família e às mulheres cabiam apenas as responsabilidades domésticas. Estrutura que Zelda questionava e incluiu tal revolta em sua obra Esta Valsa é Minha. Em uma discussão entre Alabama e sua mãe, ao final do livro, ela diz:

 

“— Minha pobre mãe — disse Alabama. — Você deu a sua vida por papai.

— Meu pai disse que podíamos nos casar — respondeu a mãe —, quando descobriu que o tio de seu pai esteve durante 32 anos no Senado dos Estados Unidos e que o irmão de seu pai foi um general confederado. Ele foi ao escritório de meu pai pedir a minha mão. O meu pai esteve durante 18 anos no Senado e no congresso dos confederados.

Ela viu a mãe à luz do que ela realmente era, parte de uma tradição masculina. Millie não parecia ter consciência de sua própria vida, de que não lhe restaria nada quando o marido morresse. Ele era o pai de seus filhos, que eram mulheres e que a tinham abandonado pelas famílias de outros homens.” (Fitzgerald, p. 251, 1986)

 

Pela voz de sua protagonista, Zelda Fitzgerald exprime seu descontentamento com as normas sociais impingidas às mulheres da época. Sem perspectivas ou incentivos para entrada no mercado empregatício, mulheres estavam restritas a replicar os passos de sua mães e serem sustentadas pelos pais até casarem e passarem a ser sustentadas pelos cônjuges. E, assim como Alabama viu a mãe passar por tal situação, Zelda também presenciou tal restrição de liberdade. Decidida que não padeceria desse destino, imposto pela sociedade, Zelda teve vários relacionamentos antes de se casar, algo condenado pela sociedade do período, que acreditava que a mulher devia ser casta e virgem. Mesmo seu casamento foi tido como transgressor, pois Zelda, de família rica e tradicional, casou-se com F. Scott Fitzgerald, um militar sem posses e com sonhos de ganhar a vida como escritor.

Zelda utiliza sua obra para escrutinar tais convenções, colocando sua protagonista em situações comuns às mulheres daquele período e dando-lhe a chance de agir da forma que a autora achava mais coerente, algo que ia de encontro com a mentalidade conservadora na qual estava inserida. Retomando as colocações feitas por Ostrower em sua obra, a cultura de uma determinada sociedade influencia de um indivíduo “[…] seus interesses e suas íntimas aspirações, suas necessidades de afirmação, propondo possíveis ou desejáveis formas de participação social, objetivos e ideais […]” (Ostrower, p. 17, 2001). Ou seja, a cultura de uma sociedade estabelece padrões a serem seguidos, mas também abre margem para que indivíduos se rebelem contra tais padrões. É intrínseco do ser humano a necessidade de aceitação social e também a transformação da sociedade na qual se insere. Assim se deu com Zelda Fitzgerald, que ansiava por liberdades e direitos restritos ou inexistentes para as mulheres daquele período. A autora questionava a submissividade das mulheres, a parca liberdade de escolha para relacionamentos, limitações no mercado de trabalho e outros direitos que eram comuns e básicos para os homens, mas tidos como ilógicos para mulheres.

Os ideais progressistas de Zelda não se interromperam com seu casamento. Para os padrões atuais, Zelda e Scott tinham um relacionamento aberto, onde é possível, sob certas regras estabelecidas, ter relações com pessoas fora do relacionamento sem ser considerado infidelidade; outro sentimento que Zelda utilizou a voz de sua protagonista para expressar: “[…] sou monógama, se não em teoria, de coração.” (Fitzgerald, p. 94, 1986), descreve Alabama. Como supracitado, o casamento dos dois pode ser considerado, para a sociedade contemporânea, um relacionamento aberto. O sentimento de amor é exclusivo do casal, porém ambos praticavam relações sexuais fora do casamento. Algo normal para o casal, mas que era visto com julgamento pela sociedade e que serviu de recurso para os críticos sensacionalistas, que buscavam ofuscar o talento de Zelda sob a opinião preconceituosa da sociedade.

Julgamentos e críticas acompanham a carreira de inúmeras mulheres escritoras, pelo simples fato de serem mulheres, e é algo que se fazia ainda mais presente nas primeiras décadas do século XX. Virgínia Woolf, notória escritora queer e feminista, em seu ensaio Mulheres e Ficção, defendia que cabe aos historiadores da arte e da literatura determinar o status de obra-prima de uma obra, visto que os críticos contemporâneos a seu lançamento estão limitados pelas construções sociais e preconceitos do período (Woolf, p. 17, 2019). Analisando a obra Esta Valsa É Minha, de Zelda Fitzgerald, sob um olhar atual é inegável sua qualidade técnica e narrativa feminista e progressista, reflexo das opiniões da própria autora. Contudo, assim como aponta Virgínia Woolf, a obra foi vítima da sociedade retrógrada contemporânea a Zelda, que criticou sua obra baseado pela vida pessoal e pelo gênero da autora e não por seu talento ou o conteúdo de sua obra, taxando-a como uma mera sombra do marido.

Scott Fitzgerald, seu cônjuge, pôde desfrutar do sucesso de seu trabalho ainda em vida, que lhe garantiu não apenas dinheiro, mas também a atenção do público e, consequentemente, dos jornalistas e críticos que queriam vender histórias sobre a vida “desregrada” do casal. Uma pressão externa que contribuiu para agravar o quadro psicológico de Zelda. Morando na Europa, longe da família nos Estados Unidos, com a instabilidade econômica do período entre guerras, e sob o olhar vigilante do público, sua saúde psicológica se deteriorou rapidamente.

Em seu livro Thinking Fragments: Psychoanalysis, Feminism, and Postmodernism in the Contemporary West, a autora Jane Flax aponta que o ponto de destaque para o crescimento e maior disseminação para a luta pelos direitos das mulheres, as décadas que procederam a Primeira Guerra Mundial (na Europa) e a Segunda Guerra Mundial (nos Estados Unidos), citando como fatores simultâneos e influenciadores a decadência da mentalidade colonialista, a quebra da hegemonia ocidental, a mudança no panorama político e econômico mundial, e o avanço tecnológico e científico da primeira metade do Século XX. (Flax, p. 5, 1990). A autora também ressalta que tais mudanças iam de encontro às ideologias dos grupos conservadores que detinham o poder da sociedade, visto que isso colocava em risco o controle econômico e social que possuíam. Portanto, tais grupos conservadores se posicionavam desfavoravelmente diante desses avanços, escrutinando àqueles que se beneficiariam com essas mudanças. Entre os grupos alvos de tal conservadorismo estavam as mulheres, que entraram em massa no mercado de trabalho em consequência do estado de guerra no qual o mundo se encontrava. Zelda Fitzgerald estava inserida neste contexto.

A escritora desejava a liberdade de trabalhar, sustentar-se sozinha. Ademas, ela desejava que sua vida não fosse controlada por noções conservadoras de qual era o comportamento adequado para uma mulher, fato que, assim como apontado por Jane Flax (trecho trazido acima), não era aceito pela sociedade conservadora da época, em especial pelos grupos que detinham o poder sobre o restante da população, homens de melhor condição financeira.

Após um agravamento significativo a seu estado psicológico, provável resultado de três abortos, um severo desgaste físico que interrompeu sua carreira como bailarina, e a solidão que sentia por conta do prolongado período de reclusão no qual Scott dedicava-se a suas obras, Zelda inicia uma internação voluntária na clínica psiquiátrica do John Hopkins Hospital, Baltimore, em 1932. Ela é diagnosticada erroneamente como esquizofrênica, e postumamente recebe o diagnóstico de depressão. Vale apontar também que tratamentos psicológicos nessa época incluíam eletrochoque, sangrias e, em alguns casos, até lobotomia, práticas que atualmente são consideradas atrozes e imorais, mas comuns na primeira metade do século XX, devido ao conhecimento antiquado da medicina do período, e que serviam apenas para infligir sofrimento a pacientes e piorar suas condições.

Isolada na clínica psiquiátrica, com exceção de visitas da família, Zelda decide dedicar-se a sua escrita. Esta Valsa É Minha foi escrito em seis semanas, com o auxílio eventual de Scott Fitzgerald, da mesma forma que Zelda fazia para as obras do mesmo, que também a ajudou a encontrar uma casa editorial. Em sua protagonista, Alabama, Zelda Fitzgerald mescla elementos de ficção e realidade para narrar a vida da personagem desde a infância até a idade adulta. A justificativa para tal pode ser dada por Fayga Ostrower, como “Usamos palavras. Elas servem de mediador entre o nosso consciente e o mundo.” (Ostrower, p. 21, 2001). Alabama, na teoria de Ostrower, é o consciente de Zelda, a voz que ela escolheu para proferir suas palavras, suas opiniões, suas frustrações e mesmo as alegrias e desavenças de seu relacionamento.

Retomando a ativista Virgía Woolf e sua obra Mulheres e Ficção, é apontado que “No começo do século XIX, os romances de mulheres eram em grande parte autobiográficos. Um dos motivos que as levavam a escrever era o desejo de expor o próprio sofrimento, de defender sua causa.” (Woolf, p. 12, 2019), colocação que reforça a de Fayga Ostrower. Apesar de publicado no início do século XX, Esta Valsa É Minha possui similar sentimento de vozear as frustrações e sofrimentos da autora. Por meio das falas de Alabama Knight, Zelda Fitzgerald critica a sociedade na qual estava inserida, que chacoteava sua arte, desmerecia seu talento e menosprezava seu gênero. As similaridades entre autora e personagem não estão restritas aos eventos de sua vida como o casamento, o nascimento da filha, a mudança para a Europa ou a carreira como bailarina que teve um fim prematuro; as semelhanças se encontram nas ideologias, nas revoltas. Zelda escrevia o que a sociedade não permitia que dissesse em voz alta.

Sob a voz dos habitantes da cidade do interior onde Alabama nascera, Zelda escreve: “— Essas garotas — diziam as pessoas. — pensam que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes.” (Fitzgerald, p. 13, 2019). As pessoas julgariam e exigiriam represália de qualquer atitude vinda de uma mulher pelo simples fato de ser uma mulher. Para Zelda, tais críticas eram voltadas para seu relacionamento não convencional, suas atitudes tidas como promiscuas, seu estilo de vida, suas tentativas de independência financeira por meio de carreiras artísticas, e inúmeros outros detalhes que, para padrões atuais, são direitos básicos para a maioria das mulheres; entretanto, na época de Zelda, ela era tida como alguém que ia contra as normas sociais e, portanto, era constantemente criticada.

Em 1932, Esta Valsa É Minha é lançado e recebido com escárnio pelo público e crítica, sendo considerado como uma versão inferior da escrita de seu cônjuge. Ainda assim, Zelda não desistiu de utilizar as artes para se expressar. Ela seguiu escrevendo roteiros para teatro, trabalhando em seu segundo livro e pintando quadros cujo uso de cores vivazes para retratar cenas de tragédia é a principal característica. Porém, o preconceito seguiu-a nas novas empreitadas. Retomando Woolf, é apontado que: “[…] é claro, ela será criticada; porque o crítico do sexo oposto ficará surpreso e intrigado de verdade com uma tentativa de alterar a atual escala de valores […]” (Woolf, p. 12, 2019). Portanto, a carreira artística de Zelda estava fadada ao fracasso independente de sua habilidade, pois os críticos a veriam apenas como uma mulher tentando algo além de suas capacidades; suas obras receberiam julgamento antes mesmo de serem analisadas e não receberiam uma crítica justa após sua análise por serem produto de uma mulher e não de um homem.

Presa a esse sistema misógino, Zelda Fitzgerald não recebeu em vida o reconhecimento merecido. A autora morre em 1948, em um incêndio acidental na clínica psiquiátrica na qual estava internada, deixando como principal legado literário a obra Esta Valsa É Minha.

 

Essa Valsa É Minha

 

Essa Valsa É Minha é uma obra considerada parcialmente autobiográfica, dando brecha para  especulações sobre quais detalhes pertencem à vida da autora e quais são elementos da narrativa ficcional. Valendo-se de tal abertura interpretativa, críticos sensacionalistas elucubraram a respeito da vida pessoal do casal Fitzgerald, criando narrativas baseadas nos elementos da obra de Zelda e pondo-as como realidade para o público que ansiava por detalhes da vida do casal famoso e, considerado na época, polêmico.

O livro narra a história de Alabama Knight e sua jornada para encontrar um objetivo para sua vida em uma sociedade marcada por preconceitos e pela instabilidade econômica causada pela Primeira Guerra Mundial e pelo alvorecer da Segunda.

A infância de Alabama foi a de uma criança privilegiada, nascida em uma família abastada. Entretanto, os questionamentos sobre a sociedade, tal como os da autora, se faziam presentes. Ao início da história, entre Alabama e sua mãe corre o seguinte diálogo:

 

“— Quero ir para Nova York, mamãe — disse Alabama enquanto lia as cartas de Dixie.

— Mas por que, pelo amor de Deus?

— Para ser dona de mim mesma.

Millie riu. — Bem, não faz mal — falou. — Ser dona de seu destino não é uma questão de lugares. Por que você não pode ser dona de si mesma em casa?” (Fitzgerald, p. 28, 1986)

 

É possível perceber pelo trecho apresentado a pouca liberdade dada às mulheres. Millie, mãe de Alabama, vê o desejo da filha de ser “dona de si mesma” como delírios de uma criança e acredita que a melhor opção para a filha é permanecer sob a vigilância familiar até seu casamento. Em contrapartida, Alabama anseia por uma independência que não encontra na família conservadora.

Em resposta às restrições de seus pais, ela passa sua adolescência participando de bailes e se divertindo com os rapazes da cidade. A personagem descreve sua juventude como “Nada [para fazer], a não ser beber e fazer amor.” (Fitzgerald, p. 46, 1986); uma atitude condenada pela sociedade da época. Alabama não casou virgem e teve inúmeros namorados antes de conhecer o futuro marido, David Knight. A personagem agia de tal forma como maneira de se rebelar contra as convenções sociais, mas também pois não via nada de errado com sua liberdade sexual. Ela não sentia o remorso que a sociedade tentava atribuir a uma mulher que agisse assim.

E é com essa mentalidade que Alabama escolhe o homem para se casar. Entre seus pretendentes havia militares de patente alta, homens ricos e de destaque na cidade, mas ela escolheu por amor. A protagonista se apaixona por David Knight, um militar raso, sem dinheiro e com sonho de se tornar pintor, personagem inspirado no cônjuge de Zelda, Scott Fitzgerald. A escolha da personagem não se deu unicamente como ato de rebeldia e sim porque David não via com preconceito suas ideias e o desejo por liberdade que sentia. Desde o início do relacionamento, o casal participa de festas, gasta dinheiro sem preocupação e ambos mantém relações extraconjugais. Atitudes que, como esperado, não eram bem-vistas pela sociedade. Entre o casal, dá-se a seguinte conversa:

 

“— Diz no jornal que nós somos famosos — ele piscava como uma coruja. […] — Bom! — exclamou… ele estava quase gritando — bom! Mas diz que estamos num sanatório para má índole. O que nossos pais vão pensar quando virem isso? Gostaria de saber…

Alabama correu os dedos pela sua permanente.

— Bem — arriscou. — Na opinião deles é lá que deveríamos estar há meses.

— Só que não é onde temos estado.” (Fitzgerald, p. 61, 1986)

 

Alabama e David viviam suas vidas conforme o que achavam certo e sem se pautar nas normas que a sociedade instituía a respeito de seus corpos e comportamentos. Esses pensamentos levava-os, como pode ser visto no trecho supracitado, a serem vistos como pessoas que deveriam ser mandadas a um sanatório. Ao dizer que não estão em um, Zelda Fitzgerald reforça que não há nada de errado nas ações de seus personagens, ou das pessoas reais que agiam de tal maneira na época. A autora tenta apresentar a normalidade com a qual se deve tratar comportamentos menos conservadores.

Após o nascimento de sua filha, Bonnie, a família Knight se muda para a França, visto que David desejava paisagens novas para suas pinturas. O cenário da Europa, após a Primeira Guerra Mundial, é diferente daquele dos Estados Unidos. Há uma taxa de pobreza maior, é comum que mulheres precisem trabalhar ajudar no sustento da casa e participar de festas, assim como os Knight faziam, é um luxo que a maioria da população não tem condições de arcar. Tal cenário é descrito por Jane Flax no trecho citado na primeira seção deste artigo, uma Europa devastada pela Primeira Guerra Mundial e cuja estrutura social passou por alterações em consequência do conflito (Flax, p.5, 1990). Este panorama contribuiu para o choque cultural ao qual os Knight foram expostos, visto que os Estados Unidos tinha sofrido menos que países da Europa na guerra.

Longe da família nos Estados Unidos e com poucas chances de socialização, Alabama começa a se sentir isolada e “[…] a censurar David pela monotonia.” (Fitzgerald, p. 119, 1986), pois ele passava os dias dedicado a suas pinturas e não dava atenção à cônjuge, exigindo que ela cuidasse da filha da maneira que ele achava correta, criticando a forma como ela arrumava a casa ou costurava suas roupas. Sob essa nova dinâmica, o relacionamento do casal se deteriorou, assim como a saúde mental de Alabama, um paralelo que pode ser traçado com Zelda Fitzgerald e seu marido, durante seu período na Europa. As brigas e desavenças entre o casal Fitzgerald eram outro fator sobre o qual a mídia do período tendia a especular a respeito, como será debatido na próxima seção deste artigo.

Alabama resume sua condição como: “[…] é extremamente difícil dirigir uma vida que não tem direção.” (Fitzgerald, p. 149, 1986). A personagem não tinha o que fazer, nada para focar sua energia. Ser uma dona de casa, assim como sua mãe, não era algo que desejava, mas sem o apoio emocional e incentivo, Alabama via-se perdida. Após anos vivendo nessa situação de estagnação, a protagonista finalmente encontra no balé sua verdadeira vocação.

Ao encontrar o que considerava ser seu destino, Alabama dedica-se exclusivamente à dança, negligenciando a família e mesmo a própria saúde. Entre as bailarinas, colegas da protagonista, a maioria dançava para ganhar dinheiro para a família, o que trazia uma animosidade maior contra Alabama, que dançava por escolha própria. Suas colegas não viam motivo para Alabama trabalhar visto que seu marido era capaz de sustentá-la financeiramente. Em determinada interação, uma das bailarinas desdenha: “— Tiens! — gritava Arienne. — Mon enfant começa a pensar. Ah! Ma fille, é um erro… todo esse pensar que você faz. Por que não vai para casa cerzir as meias de seu marido?” (Fitzgerald, p. 201, 1986). As outras bailarinas não reconheciam o talento da protagonista, pois a taxavam como uma rica excêntrica que buscava um mero passatempo; invejavam sua condição financeira e o fato de ter iniciado uma carreira por escolha própria e não por necessidade financeira. De forma similar, críticos contemporâneos à Zelda Fitzgerald não avaliaram sua obra pela peça literária que era, mas deixaram transparecer o preconceito que tinham contra uma mulher que busca a própria independência financeira, desconsiderando a riqueza ou status de seu cônjuge. Ademas, Zelda utilizou seu livro para exteriorizar suas frustrações a respeito na sociedade a qual estava inserida e que moldava a mentalidade de seus críticos, dificultando uma análise justa de sua obra.

Em Esta Valsa É Minha, profissionais do meio da dança reconheceram o talento de Alabama e lhe ofereceram uma chance para estrear nos palcos na Itália, oferta aceita prontamente. Porém, o excesso de trabalho e a vontade de provar seu valor resultou em um desgaste físico elevado para a personagem. Vale apontar que a situação econômica na Itália, no período pós Primeira Guerra Mundial, era bastante precária, o que resultava em uma escassez de recursos básicos, tais como remédios. Assim, uma ferida de Alabama, causada por sapatilhas de pouca qualidade e o excesso de treinos, se agravou e resultou em uma infecção que deixou a personagem hospitalidade e incapaz de dançar pelo resto da vida.

Tendo que abrir mão de seu sonho, Alabama volta aos Estados Unidos com a filha e o marido, a tempo de reencontrar o pai antes que ele morresse. Ao ponderar sobre a efemeridade da vida e seu papel na sociedade, Alabama não se arrepende de suas decisões, mas sente que precisa de maior parcimônia em sua vida. A história termina com Alabama e David, reconciliados, observando a paisagem do interior e relembrando dos anos passados. Durante essa conversa, a protagonista diz: “— Vamos ter que começar tudo de novo. […] Com uma nova cadeia de relações, com novas esperanças a serem pagas com a soma de nossas experiências, como cupons destacados de um bônus.” (Fitzgerald, p. 257, 1986). A personagem pretendia utilizar o que aprendera para buscar um futuro melhor para si mesma; um final que não condena suas atitudes, mas as reconhece como parte natural da vida. Seu erro não foi ter buscado sua independência, mas sim ter colocado sua própria saúde e relacionamento pessoais em risco. Seu desejo por liberdade segue inalterado, contudo, mais madura, Alabama compreende que é necessário um equilíbrio, e que tal equilíbrio não viria às custas de seus valores.

A obra contém as reflexões de Zelda Fitzgerald sobre a própria vida e deixa transparecer suas frustrações diante de seu papel na sociedade. Um livro importante para a luta por igualdade das mulheres, mas, devido ao preconceito de críticos conservadores, foi privado de seu status merecido de obra-prima. Alimentado por críticas sensacionalistas, o público passou a especular a respeito da vida do casal e dos problemas que os cercavam, descontextualizando passagens de Esta Valsa É Minha para criar narrativas a respeito da vida pessoal de Zelda e seu marido, ignorando a mensagem que o livro e sua autora buscavam transmitir. 

 

Análise do Livro e das Críticas

 

Como posto por Eleanor Lanahan (p. 23, 2002), neta do casal Fitzgerald, em sua introdução para o livro Dear Scott, Dearest Zelda, ninguém sabia a verdadeira causa de seus males, mas não faltavam pessoas para julgá-los. Diante de um casal famoso, o público buscava informações sobre suas vidas pessoais, julgando-os a respeito de suas festas frequentes, seu relacionamento aberto, sua saúde mental, os ideais feministas e questionadores de Zelda, entre outros. Ao escrever uma obra parcialmente biográfica, é possível que a autora não esperasse que público e crítica tomassem todos os elementos da narrativa por verdade e começassem a especular sobre sua vida pessoal, ignorando o valor literário de seu trabalho; considerando sua obra como unicamente um diário, aberto para as pessoas comentarem sua vida pessoal e suas atitudes.

Retomando o estudo Mulheres e Ficção, Virgínia Woolf, a respeito de autoras mulheres, declara que: “Seus romances tratarão das mazelas sociais e das soluções para elas. Seus homens e mulheres não serão totalmente observados na relação emocional que mantenham uns com os outros, mas sim por se juntarem e entrarem em conflito, como grupos e classes e raças. Essa mudança tem sua importância.” (Woolf, p. 14, 2019). Mesmo sendo uma obra com elementos biográficos, o objetivo de Essa Valsa É Minha era trazer os questionamentos que Zelda Fitzgerald tinha sobre a sociedade na qual estava inserida. As interações entre a protagonista e seu marido e seus amigos são recursos narrativos para desenvolver tais críticas na história, mesmo aqueles que inspirados em elementos da realidade. A obra buscava, como exemplificado por Woolf, exibir o conflito entre grupos e mentalidades.

Zelda Fitzgerald questiona o papel da mulher na sociedade, a falta de liberdade e as exigências sobre seus corpos, carreiras e ideologias. Por exemplo, o pai de Alabama é a epítome da misoginia conservadora, ele representa o pensamento retrógrado que deve ser extinguído para que um futuro mais justo seja possível. Assim, após a morte de seu pai, Alabama pode vislumbrar a paisagem com esperança para os anos vindouros.

Entre as passagens que exemplificam sua mentalidade conservadora, pode-se destacar a seguinte: “— Se Dixie pensa que vai introduzir modos de prostituta na minha família, não é filha minha. Identificada na imprensa como um bode expiatório moral! Minhas filhas têm de respeitar meu nome. É só o que lhes peço neste mundo — explodiu o juiz” (Fitzgerald, p. 26, 1986). A sociedade tachava mulheres como prostitutas pelos menores gestos, tratamento que não era oferecido aos homens. No caso de Dixie, irmã de Alabama, seu pai se enfureceu, pois ela beijou alguém antes de se casar, algo que era comum e até esperado que homens fizessem. Era exigido das mulheres uma “pureza” desproporcional e desnecessária. Alabama se rebela contra tal sistema, permitindo-se ter relacionamentos passageiros e divertindo-se com quem quisesse. Ações que também foram condenadas por sua família e a sociedade. Entretanto, a personagem não se importa com tais opiniões, exibindo seu descaso no seguinte trecho:

 

“— Alabama, você é decididamente indecente. Sabe muito bem a reputação terrível que tem, eu lhe proponho casamento mesmo assim…

— E está zangado porque não quero fazer de você um homem honesto.

O homem escondeu-se dubiamente sob a impessoalidade de seu uniforme.

— Você vai se arrepender — disse desagradavelmente.

— Espero que sim — respondeu Alabama. — Gosto de pagar pelo que faço… desse modo, sinto-me em dia com o mundo.

— Você é um comanche selvagem. Por que tenta fingir que é tão má e tão dura?

— Talvez seja assim… De qualquer modo, no dia em que me arrepender, escreverei para você mandando a notícia no canto do convite de casamento.” (Fitzgerald, p. 45, 1986)

 

É possível perceber a diferença nas exigências para homens e mulheres. O pretendente de Alabama podia manter relações com quantas mulheres desejasse antes de “se tornar um homem honesto” e se casar com alguém de uma família respeitável; ainda assim, ele faz parecer que é um favor que faz à Alabama querer se casar com ela, dada sua reputação controversa. Em resposta, Alabama deixa claro que sabe o que a sociedade pensa a seu respeito e que não se importa, dizendo que gostava de pagar pelo que fazia e que mesmo que se arrependesse seria casada com outra pessoa, alguém a quem ela escolheu, e assim o fez com David Knight. Zelda Fitzgerald faz uso da personalidade irreverente de sua protagonista, espelho de sua própria personagem, para apontar as hipocrisias das normas sociais atribuídas para mulheres e homens.

A autora reforça ainda mais essa crítica ao abordar temas como etarismo e exigências do corpo feminino. Em uma conversa entre Alabama e uma amiga, há o seguinte diálogo:

 

“Bonnie fez um escarcéu porque queria ver o filme do navio.

— Você acha que ela deveria? Imagino que está cheio de sex appeal — disse Alabama.

— Mas claro — replicou lady Sylvia. — Se tivesse uma filha, eu a mandaria a todas as sessões, para que aprendesse alguma coisa útil para quando crescesse. Afinal de contas, são os pais que pagam.” (Fitzgerald, p. 90, 1986)

 

Sentimento similar é expresso no trecho:

 

“— Sexo é um substituto tão pobre — suspirou a srta. Douglas.

— Para quê?

— Para sexo, idiota.” (Fitzgerald, p.146, 1986)

 

Apesar das normas sociais estabelecerem que uma mulher deveria ser pura e intocada antes do casamento para ser “alguém de respeito” era esperado que dessem prazer sexual a seus maridos, atribuindo a elas a função de gerar filhos e agradar os cônjuges. No caso do primeiro trecho, a amiga de Alabama acha prudente que Bonnie, com dois anos, assista a filmes adultos para desenvolver seu sex appeal, o que a ajudaria a conseguir um casamento melhor no futuro. Alabama não permite que a filha veja tais filmes e, após esta interação, se distância de lady Sylvia. Mais à frente no livro aparece srta. Douglas (segundo trecho) com uma mentalidade similar e que acredita que sexo é a única necessidade de uma mulher depois do casamento. Zelda Fitzgerald aponta a frivolidade de tal pensamento e a misoginia velada na ideologia de restringir as ações de mulheres a se casarem e terem filhos, Ao decorrer da história, qualquer tentativa de fazer Alabama se adequar a tal sistema foi recebida com revoltas ou risos, dado o quão absurdo a personagem considerava tal mentalidade. E da mesma forma pensava a autora.

Ao iniciar sua carreira como bailarina, Alabama se depara com outros preconceitos relacionados a seu gênero. É-lhe dito que sua idade não é adequada, nem seu peso ou sua aparência; seu talento é desmerecido pelo fato de ser casada e não precisar trabalhar com dança para sustento próprio. A personagem era diminuída por não se encaixar a padrões de beleza estabelecidos pela sociedade e por buscar independência financeira, algo agravado pelo período de instabilidade econômica em que muitas mulheres se viam obrigadas a trabalhar para sobrevivência.

A crítica de Zelda Fitzgerald a estas normas sociais pode ser resumida na frase de Dickie, amiga que apresentou Alabama à dança: “Todos são autoridade em mulher este ano.” (Fitzgerald, 137, 1986). A autora expressa seu descontentamento com o sistema no qual todos podem opinar na vida pessoal de uma mulher e julgá-la por não se adequar a padrões instituídos, majoritariamente, por homens. Um sistema que também vitimizou Zelda Fitzgerald, em especial, ao relegar sua obra à sombra do trabalho de seu marido.

Todavia, se a crítica dos Estados Unidos criou essa narrativa sensacionalista de um casal problemático e uma mulher invejosa do sucesso de seu cônjuge, a opinião internacional mostrava uma perspectiva diferente. Assim como traz Moore (1966. pp. 268) ao falar do romance Esta Valsa É Minha, “[…] os críticos britânicos o saudaram com entusiasmo. O Times Literary Supplement considerou o texto ‘poderoso e memorável’ com ‘qualidades de força e poder de concretização’. Outros periódicos também apresentaram muitos elogios.” Essas diferenças na recepção nacional e na internacional são provas que a crítica da época buscava manipular os fatos na tentativa de vender uma história mais interessante dado seu fator sensacionalista de noticiar a vida pessoal de um casal famoso como eram os Fitzgerald. Valendo-se dos conflitos no relacionamento de Alabama e David, os críticos da época especularam que aquela era a verdadeira relação de Zelda e Scott, utilizando passagens de Esta Valsa É Minha para corroborar suas teorias.

Retomando as colocações de Fayga Ostrower, trazidas na primeira seção deste artigo, as vivências de uma pessoa e o contexto social e histórico na qual está pessoa está inserida são fatores influentes para a arte que tal indivíduo produzirá (Ostrower, p. 5, 2001). Entretanto, o foco das análises de uma obra não deveria ser exclusivamente como a vida pessoal do artista pode ser refletida na obra, mas considerar majoritariamente o valor artístico e crítico que tal obra possui. No que tange o livro de Zelda Fitzgerald, as especulações a respeito de quais aspectos de Esta Valsa É Minha eram ficcionais e quais eram baseados em vivências reais da autora tornaram-se um ponto de importância maior do que a qualidade da obra em si. Críticos e público deveriam levar em consideração a maneira como a autora desenvolve seus personagens, utilizando diálogos para marcar a passagem de tempo em vez de utilizar o narrador para tal; a sutileza com que constrói o contexto histórico no qual a histórica se passa, valendo-se da interação entre personagens para exemplificar a precária situação financeira na qual a Europa se encontrava e o panorama político que começava a se formar e que, eventualmente, resultaria na Segunda Guerra Mundial; a autora traz com realismo a vida de um casal, com desavenças, brigas, saudades, arrefecimento da relação, mas sem perder sentimentos de amor e companheirismo; Zelda Fitzgerald utiliza sua protagonista para mostrar a luta das mulheres para serem elas mesmas, entender suas próprias personalidades e buscar seus próprios sonhos em uma sociedade que as oprime e as força a se submeterem a homens, sejam maridos ou pais. Esta Valsa É Minha é uma obra sensível, mas sem perder seu valor questionador e revolucionário, sendo um exemplo perfeito de equilíbrio entre crítica social e elementos narrativos.

Todavia, por ser uma obra escrita por uma mulher, os críticos não a viam como uma peça literária genuína, mas só como devaneios e desabafos. Woolf aponta como explicação que “[…] é claro, ela será criticada; porque o crítico do sexo oposto ficará surpreso e intrigado de verdade com uma tentativa de alterar a atual escala de valores […] (Woolf, p. 12, 2019). Os críticos não acreditavam que uma mulher fosse capaz de escrever uma obra literária, menos ainda uma boa obra, portanto avaliaram Esta Valsa É Minha como apenas um diário contendo os devaneios de uma mulher tachada como “louca” e com inveja da carreira literária do marido. Foi essa soma de fatores preconceituosos que resultou na obra de Zelda Fitzgerald não receber o reconhecimento que merecia.

Há um agravante nas críticas feitas à Zelda Fitzgerald que é o sensacionalismo. A curiosidade do público sobre a intimidade de um casal famoso e o caráter biográfico da obra abriram espaço para que as pessoas criassem histórias a respeito dos Fitzgerald, em especial à Zelda, e utilizassem passagens de Esta Valsa É Minha como provas de que tais histórias seriam verdade. Alimentado pela misoginia, especulou-se que a autora teria copiado o manuscrito de seu cônjuge, gerando assim uma obra fraca e sem criatividade, na qual Zelda difama Scott Fitzgerald e mostra um relacionamento desgastado e sem amor. Os críticos do período, corroboraram tais especulações para criar uma imagem deturpada da autora, de sua obra, de sua saúde mental e de seu casamento, tudo para alimentar o sensacionalismo que o público almejava.

É fato que entre as cartas trocadas pelo casal há aquelas nas quais um culpa o outro pelo fracasso ou tropeços de suas carreiras. Todavia, as correspondências de apoio e incentivo trocadas antes e depois desse período turbulento, no qual eles estavam morando na França, excedem às de teor belicoso, podendo ser atribuídas à discussões usuais de um relacionamento e a tensão do período de instabilidade política e financeira do período entre guerras (Bryer & Barks, p. 14, 2002).

Ademas, se tomadas as passagens de Esta Valsa É Minha como cenas reais da vida do casal Fitzgerald, assim como público e crítico queriam fazer acreditar que eram, Alabama e David passam por momentos de desavenças no casamento, mas fica claro que o amor ainda era presente no relacionamento, como pode ser percebido nos seguintes trechos:

 

“Por muito tempo ela ficou deitada soluçando. David a puxou contra seu ombro. Embaixo de seus braços o cheiro era quente e limpo como a fumaça de um fogo calmo na cabana de montanha de um camponês.

— Não adianta explicar — ele disse.

— Nem um pouco.

Ela tentou vê-lo através do lusco-fusco amanhecer.

— Querido! — falou. — Gostaria de viver no seu bolso.

— Querida — respondeu David sonolento —, haveria um buraco que você esqueceu de cerzir e você escorregaria por ali e o barbeiro da vila a traria de volta para casa. Pelo menos, tem sido esta a minha experiência de andar com garotas nos bolsos.

Alabama achou que era melhor colocar um travesseiro embaixo da cabeça de David para que ele não roncasse. Pensou que ele parecia um menino pequeno que a ama acabara de lavar e escovar uns quinze minutos atrás.” (Fitzgerald, p. 150, 1986)

 

E assim David consolou Zelda em um momento de tristeza. De forma similar, David se agarra à Alabama, desalentado, ao descobrir sobre sua lesão:

 

“Durante aquelas sofridas semanas David chorava enquanto caminhava pelas ruas, e chorava à noite, e a vida parecia sem sentido e acabada. Então ele se desesperou, e assassinato e violência se apoderaram de seu coração até não lhe restar mais nenhuma energia.

Duas vezes por dia ele ia ao hospital e escutava os médicos falarem de envenenamento do sangue.

Por fim, permitiram que David a visse. Ele enterrou a cabeça nas roupas de cama, passou os braços sob o corpo quebrado e chorou como um bebê. As pernas dela estavam levantadas, presas por roldanas de correr semelhantes à parafernália de um dentista. Os pesos doíam e forçavam a nuca e as costas como um suplício medieval.

Soluçando sem parar, David manteve-a junto de si. Ele parecia ser de um mundo diferente para Alabama; seu ritmo era diferente dos ritmos estéreis e fracos no hospital. Parecia de certa maneira exuberante e insensível, como um trabalhador impetuoso. Ela tinha a sensação de que mal o conhecia.

Ele mantinha os olhos persistentemente colados na sua face. Mal ousava olhar para a ponta da cama.

— Querida, não é nada — disse com suavidade afetada. — Você logo ficará boa.” (Fitzgerald, p. 243, 1986)

 

As cenas trazidas apresentam um casal que, apesar dos momentos de dificuldade, permanecem juntos e se apoiam. No primeiro trecho, Alabama se sente perdida em relação a qual destino dar a seu futuro e David a abraça, deixando que ela chore, mesmo sem entender o motivo de sua tristeza. De forma similar, no segundo trecho, David sofre ao ver o estado de Alabama, pois sabe o quanto a carreira de bailarina significava para ela, e Alabama o abraça para consolá-lo. O casal, no decorrer da história, se desentende, busca caminhos diferentes para suas vidas pessoais, o que são eventos naturais na vida de qualquer pessoa.

É difícil estimar quão ficcionais ou não-ficcionais tais cenas são se comparadas à vida de Zelda Fitzgerald, tendo em vista a parcialidade com a qual a vida dos dois Fitzgerald foi noticiada e retratada pelo público e pela mídia. Mas, considerando que, em outros momentos da obra, a autora usou as falas de sua protagonista para expressar suas próprias opiniões a respeito da sociedade na qual estava inserida, é possível dizer que a dinâmica de relacionamento de seus personagens é espelho de seu próprio casamento. Posto isso, a vida pessoal de Zelda não deveria ser utilizada como parâmetro para desmerecer sua literatura. E o fato de tais argumentos não serem levantados contra o trabalho de seu cônjuge, Scott Fitzgerald, é outra comprovação do preconceito e machismo da época, conceitos retrógrados que Zelda combatia, criticando-os em Esta Valsa É Minha.

 

Considerações Finais

 

Ao escrever sobre as perspectivas de carreira para mulheres ao final do Século XIX e início do século XX, em seu livro Professions for Women, Virgínia Woolf (p. 235, 1974) aponta que a profissão de escritora estava entre as mais atraentes, pois requeria um menor investimento inicial, materiais fáceis de se adquirir e nenhum espaço em especial para trabalhar. Assim, as mulheres que dispunham de pouca ou nenhuma liberdade pessoal ou financeira podiam iniciar carreiras na literatura com maior facilidade. Zelda Fitzgerald, restrita em sua internação voluntária no sanatório, aproveitou-se de tal versatilidade da literatura e utilizou seu tempo para a escrita de seu livro Esta Valsa É Minha.

Zelda Fitzgerald foi uma mulher que não se conformava com o papel que a sociedade lhe impunha e escolheu utilizar sua arte para expressar seu descontentamento com tal situação. Entretanto, foi a mesma sociedade conservadora que a impediu de alcançar o sucesso merecido. A história da autora é a prova dos prejuízos que uma sociedade regida por preconceitos pode trazer para as pessoas e à cultura.

Esta Valsa É Minha é uma obra revolucionária e ao mesmo tempo cotidiana, mostrando uma protagonista forte e independente que busca entender mais sobre si mesma e seu lugar no mundo. Alabama Knight, reflexo de sua autora, é uma personagem à frente de sua época por atitudes que só muitas décadas depois viriam a ser naturalizadas, mas que eram condenadas no período.

As críticas dirigidas à Zelda Fitzgerald não eram relativas a sua obra, apesar dos críticos dizerem que o foram, mas sim a sua vida pessoal. E o público, ansioso pelas histórias do casal que vivia fora das normas estipuladas pela sociedade da época, incentivou e tomou por verdadeiras as críticas preconceituosas feitas para a autora.

Dada a época, é possível que o não conformismo de Zelda aos papéis de gênero daquele período, em especial as limitações impostas as mulheres, tenha sido um fator determinante até mesmo para sua internação (Cline, p. 41, 2013). É inegável que a autora padecia de um mal de natureza psicológica, mas o diagnóstico, limitado pelo pouco conhecimento que se tinha no período no que tange neurodivergências e saúde mental, foi feito de forma errônea, sendo tachada de “louca”, em especial por seus ideais feministas. Porém, mesmo com tantos fatores em oposição a suas opiniões, Zelda Fitzgerald criou uma obra que mescla real e ficção para dar palco às palavras que queria proferir para a sociedade a seu redor. É fato que a autora não teve seu talento reconhecido em vida, porém seu legado permanece por meio de sua obra e nas pessoas influenciadas por sua arte. Um legado que perseverou tal qual a música de uma valsa que permanece ecoando mesmo após cessado o movimento dos dançarinos.

 

Referências

 

Abreu, C. F. Prefácio. In: Esta Valsa É Minha. Zelda Fitzgerald. pp. 9-11. Companhia das Letras. São Paulo. 1986;

Bryer, J. R.; Barks, C. W. Dear Scott, Dearest Zelda: The Love Letters of F. Scott and Zelda Fitzgerald. Scribner. New York. 2002;

Cline, S. Zelda Fitzgerald: Her Voice in Paradise. Faber & Faber. London. 2013;

Fitzgerald, Z. Esta Valsa É Minha. Companhia das Letras. São Paulo. 1986;

Flax, J. Thinking Fragments: Psychoanalysis, Feminism, and Postmodernism in the Contemporary West. University of California Press. Los Angeles. 1990;

Lanahan, E. Introduction. In: Dear Scott, Dearest Zelda: The Love Letters of F. Scott and Zelda Fitzgerald. pp. 23-32. Scribner. New York. 2002;

Moore, H. T. Posfácio. 1966. In: Esta Valsa É Minha. Zelda Fitzgeral. pp. 256 – 270. Companhia das Letras. São Paulo. 1986;

Ostrower, F. Criatividade e Processos de Criação. 15ª Edição. Editora Vozes. Petrópolis, 2001;

Woolf, V. Mulheres e Ficção. Penguin-Companhia das Letras. São Paulo. 2019;

______. Professions for Women. In: The Death of the Moth and Other Essays. p. 235-242. Harcourt Brace Jovanovich Publisher. San Diego. 1974;

 

------------------------------

Amanda Vital de Campos de Freitas é formada em Design pela UTFPR e é mestranda em Teoria Literária na UNIANDRADE. Trabalha como designer freelancer e escritora. Possui dois livros publicados e participação em quatro antologias de contos e crônicas.

Verônica Daniel Kobs tem Pós-Doutorado em Literatura e Intermidialidade pela UFPR. É Professora e Pesquisadora de Literatura, Mídias e Tecnologia Digital. Atualmente, é Coordenadora e Professora dos cursos de Mestrado e Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE.

 

*O presente artigo foi desenvolvido na disciplina de Tópicos de Leitura III, ministrada pela profa. Verônica Daniel Kobs, no Mestrado/Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE, de agosto a dezembro de 2024.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário