Isadora Dutra*
Na abertura do filme de 1971 de Stanley Kubrick, "Laranja Mecânica", a câmera se afasta do rosto de Alex e revela o copo de leite que ele bebe com os "drugues" no Kolova Milkbar. O movimento de câmera continua, saindo do plano fechado, até o plano geral, se afastando do personagem e apresentando o cenário. O leite que Alex bebe é o "milk plus", que pode ser adicionado de vellocet, synthemesc ou drencom. Segundo ele, o leite moloko drencom, aguça os sentidos e deixa pronto para os atos de "ultraviolência" que se seguem à cena.
No filme de Quentin Tarantino
"Bastardos Inglórios", de 2009, o comandante da SS, Hans Landa,
sentado à mesa prefere um copo de leite ao de vinho oferecido pelo camponês
LaPadite. Em plano médio, Landa aguarda que uma das filhas do camponês sirva o
leite, intercalando o olhar do copo para a menina. Ele bebe o leite de um só
gole. A cena continua com o nazista e o camponês sentados frente a frente, o
copo vazio entre eles. Inicia o interrogatório de Landa a LaPadite e, a seguir,
acontece o assassinato da família judia escondida debaixo da casa que é
metralhada pelos soldados nazistas.
De repente, a luz que vem de
uma porta que se abre desenha o chão e aparece a sombra de um homem carregando
um copo. O ambiente escurece novamente e o personagem Johnny entra com um copo
de leite. No filme de 1941, "Suspicious", Alfred Hitchcock usa a
linguagem do gênero noir, construindo cenas com grande contraste de
claro e escuro como na cena do copo de leite. Johnny percorre um quadriculado
de sombras no chão até a escada. Não se vê o seu rosto na subida dos degraus,
seu corpo é uma mancha escura na cena, o ponto mais escuro. Não se vê,
portanto, a expressão do personagem. Ao contrário, o leite dentro do copo é o
ponto mais claro. A atenção se volta para o branco do copo e culmina no close
do objeto no final da sequência. No plano seguinte, vê-se o rosto tenso da
esposa Lina antes de Johnny entrar no quarto trazendo-lhe o copo de leite.
Diante do olhar desconfiado dela, ele coloca sobre a mesa o copo de leite, que
ela desconfia estar envenenado.
Nos três filmes citados, o copo
de leite está atrelado ao desenvolvimento da narrativa como um elemento de
tensão de modo simbólico e indicial. Em Hitchcock, o copo de leite assume
inclusive o papel de "arma do crime" do ponto de vista da suspeita de
Lina. Em Kubrick e Tarantino, o objeto tem relação com os desdobramentos
violentos das cenas em que ele aparece: no primeiro, o copo de leite é instrumento
mesmo da violência já que "deixa pronto" para agir, nas palavras do
protagonista; no segundo, o copo de leite adia o desenrolar da ação,
intensificando a tensão da cena, e, a partir daí, funcionando como índice da
possibilidade de descoberta da identidade oculta dos judeus por parte do
nazista e consequente assassinato. Os copos de leite dos exemplos estão,
portanto, no cerne da ação violenta, associados a momentos de grande tensão e
suspense.
Com o rosto enquadrado no plano
fechado, o Alex de "Laranja Mecânica" olha em direção à câmera de
baixo para cima. Percebe-se sua respiração e ele tem o olhar fixo,
agressivamente desafiador, quando leva o copo de leite à boca. Os
"drugues" repetem o mesmo olhar ou tem ar perdido, alienado. Eles
também bebem o "milk plus". O movimento de câmera na cena inicial do
filme tem valor descritivo, partido do close ao plano geral, numa sequência sem
cortes que apresenta o protagonista e seu contexto.
Alex tem os pés apoiados em uma
manequim feminina que serve de mesa. Outras bonecas estão espalhadas pelo lugar
em posição exposta. O corpo feminino simulado pelo manequim serve de objeto
utilitário. As paredes e o chão são negros em contraste com as roupas e
manequins brancos e os detalhes em cores intensa que fazem referência à estética
da pop art. O cenário bizarro combinado à versão eletrônica da música tétrica
do funeral da rainha Maria (composição de Henry Purcel, versão de Wendy Carlos)
criam uma atmosfera sombria, estranha e tensa.
A câmera revela que Alex e os
"drugues" estão sentados no fundo de um longo corredor negro repleto
de manequins brancas onde todos bebem o "moloko plus", leite
adicionado de droga. O aspecto sinistro da cena na leitaria ainda é
intensificado pela fala de Alex, protagonista e narrador, que gera a expectativa
em relação ao que vai acontecer e causa estranhamento com seu vocabulário
próprio, a linguagem "nadsat", criada pelo escritor Anthony Burgess
no romance de 1962 que deu origem ao roteiro do filme de Kubrick. O movimento
de câmera descreve os personagens, a gangue de Alex e outros frequentadores do
lugar, seus modos e vestimentas, os objetos e o cenário. O personagem
anuncia os próximos atos de "ultraviolência" e a cena inicial
encerra-se.
Tal cena serve de introdução ao
universo caótico e sinistro em que vivem as personagens. Trata-se de um mundo
dominado pela violência perpetrada em cadeia de modo que apenas duas posições
são possíveis, a de algoz ou a de vítima. Os atos de violência são difundidos
de indivíduo para indivíduo, como faz a gangue de Alex na sequência de
espancamentos, roubos e estupros que praticam pela cidade, e também do estado
para o indivíduo, como no "Método Ludovico", aplicado em Alex pelo
Estado como forma de refrear seus impulsos destrutivos e que o submetem a um
processo violento de lavagem cerebral que, posteriormente, o transforma em
vítima semelhante as suas.
A violência em "Laranja
Mecânica" é um método de coerção por parte do Estado e uma forma de
entretenimento por parte do indivíduo. Do ponto de vista dos
"drugues" a "ultraviolência" significa diversão. Nesse
sentido, a violência é uma fonte de prazer naquele universo mecanizado da
cidade. O leite está diretamente relacionado à violência a partir da fala de
Alex que informa, na primeira cena do filme, que o leite "plus drencom"
prepara para os atos violentos. O leite é, portanto, uma das causas da
violência e também uma preparação para o prazer. Ele funciona como um dos
instrumentos para o exercício da violência como entretenimento na cultura dos
"drugues". A bebida branca, repetindo a cor do uniforme usado pelos
personagens e boa parte dos objetos em cena, alcança sentido simbólico: o leite
simboliza a violência e o prazer pela violência nas personagens.
Ao mesmo tempo, o copo de leite
é estabelecido na cena inicial como índice da "ultraviolência". A
partir de tal cena, entende-se que o leite antecipa e anuncia os eventos
violentos subsequentes. O momento na leitaria Kolova é preparatório da noite de
atividades dos "drugues". A relação indicial entre o copo de leite e
o ato violento também se estabelece em "Bastardos Inglórios" de
Tarantino. O oficial nazista Landa bebe leite antes de ordenar o massacre da
família de judeus escondida sob o piso da casa do camponês francês. O tempo em
que o personagem pede e bebe o leite estende a ação dramática, intensificando a
tensão da cena através do adiamento do desfecho da cena com a violência do
assassinato dos judeus.
O comportamento de Landa na
cena também mistura violência e prazer na medida em que o gestual
exageradamente metódico é combinado à expressão de satisfação do comandante
nazista na sua função de caça aos judeus, ideia que fica explícita no diálogo
com LaPaditte, quando ele se vangloria de seu apelido. Os modos do personagem
expressam o seu sadismo. O próprio adiamento do desfecho da ação violenta
remete a esse traço do personagem, que demonstra ao logo de todo interrogatório
se comprazer em encurralar LaPaditte.
A cena funciona como um duelo
entre o nazista e o camponês. O filme começa com a cena externa do e uma
das filhas estendendo roupa. Num plano geral, a câmera mostra a aproximação dos
carros dos nazista na estrada. Os carros são vistos quando a filha de LaPaditte
faz o gesto de remover o lençol branco estendido em frente do ponto em que se
vê a movimentação dos nazistas. Esse plano muda o tom bucólico inicial para o
clima de tensão que dura todo primeiro capítulo do filme e que se intensifica
no diálogo à mesa, com o copo de leite entre os dois personagens.
Ainda na cena externa, o
camponês lava o rosto como quem se prepara para o embate antes de receber o
nazista dentro de casa. A cena interna começa com uma sequência de pequenas
ações aparentemente insignificantes: a apresentação das filhas do camponês, a
oferta e recusa do vinho, o pedido de leite, o elogio do nazista e o pedido
para que as filhas saiam da sala. Todas essas pequenas ações têm uma função:
elas atrasam o desenrolar da cena, aumentando a tensão visível no rosto dos
personagens que vivem na casa. Além disso, as ações apresentam os personagens,
suas características, comportamento e reações. Landa é metódico e apegado a
rituais meticulosos como quando prepara a tinta da caneta, momento idêntico ao
pedido do copo de leite. Ambas as ações estendem a narrativa.
O leite, a partir dessa cena, é
marca do personagem Landa, funcionando como um identificador. A cena encontra
paralelo em outra cena do capítulo final em que Landa encontra a única
sobrevivente da família assassinada no início do filme. Emmanuelle Mimieux,
dona de um cinema, é a identidade que a judia Shoshana Dreyfus assume no
momento em que reencontra o algoz. Nessa cena, ele pede um copo de leite para
ela e um café e apfelstrudel para si.
O diálogo que segue repete a situação de tensão da abertura do filme com a
possibilidade de revelação da identidade oculta e a expectativa de violência. O
copo de leite marca a semelhança entre as cenas como um índice do terror.
A primeira cena com o copo de
leite é toda construída com planos que remetem à linguagem do western,
num jogo de primeiro e segundo plano e de plano médio com close, criando tensão
sem o uso da câmera lenta. O início da cena dentro da casa é realizado
intercalando primeiro e segundo plano: em determinado momento, por exemplo,
vemos as personagens que falam na sala e, através da janela, em segundo plano,
os soldados nazistas que aguardam ordens do lado de fora. A imagem intensifica
o clima tenso porque indica a impossibilidade de fuga, o encerramento dos
personagens dentro da casa com o algoz nazista. A sequência de pequenas ações
antes do diálogo/duelo, além de participar da tensão, também conferem o sentido
de encenação que toda a cena assume do ponto de vista do nazista, o que se
confirma de modo explícito no final da mesma quando ele ordena que o camponês
siga a "mascarada", forjando um diálogo de despedida enquanto os
soldados nazistas entram na casa e executam os judeus.
Em Kubrick e Tarantino, o copo
de leite está ligado a momentos de tensão e/ou suspense e de violência. Efeito
semelhante tem o copo de leite que o personagem Johnny carrega na cena da
escadaria em Hitchcock. No filme de 1941, uma mulher, Linda McLaidlaw,
desconfia que o marido seja um assassino e que o leite esteja envenenado. A
cena do copo de leite é colocada entre dois planos da mulher no quarto com o
rosto tenso, aguardando a entrada do marido. Vemos Johnny com o copo de um
ângulo superior e a partir de um movimento de câmera que o acompanha desde o
momento em que vemos sua sombra no chão quando a porta por onde ele passa se
abre, até o ponto em que ele alcança o topo da escada e a cena encerra com um
close do copo de leite.
O suspense da cena tem como
elemento chave o copo de leite, destacado no plano através de dois recursos
técnicos, a iluminação e o close final. No jogo de claro e escuro da estética noir,
o copo de leite é o ponto mais iluminado da cena. O branco do copo se contrapõe
a massa escura formada pelo corpo do personagem e agarra a atenção do
espectador. Não vemos o rosto de Johnny, encoberto pela sombra, ao longo de
todo tempo que ele leva para subir a escada. O verdadeiro personagem da cena é
o copo de leite, que encerra o plano em close.
Johnny é apenas uma sombra no
chão e um vulto subindo a escada, enquanto o copo de leite é o ponto central da
cena, em função da luz mas também pela distribuição dos objetos no plano médio
que antecede o close final da cena. Depois de subir a escada, o copo branco
aparece bem no centro do enquadramento. Sendo o elemento mais claro da cena, o
copo aparece em contraste com o lado esquerdo completamente negro, em que o
terno escuro do personagem se funde com a sombra do cenário, e os desenhos de
sombras nas paredes do lado direito, em que esta toma também a parte superior
da imagem. Johnny aparece apenas de corpo, a cabeça estando fora do
enquadramento nesse momento. Toda atenção se volta para o copo que é trazido à
proximidade do olhar pela posição da câmera.
Para filmar tal cena, Hitchcock
iluminou o copo de leite de dentro para fora, usando uma lâmpada dentro do
líquido. De modo que o copo é o ponto mais luminoso e é o ponto central, no
enquadramento do momento final, e na narrativa, que, nesse trecho do filme,
está concentrada na suspeita intensa da mulher a qual, na sua desconfiança, faz
do copo de leite a arma do crime. O suspense está vinculado ao copo de leite:
estará ou não envenenado? Johnny é ou não é um assassino? Toda tensão da cena
Hitchcock lançou sobre o copo de leite. Se Johnny é assassino, o copo de leite
antecede o momento do crime e significa a morte da personagem Linda. Assim, o
copo de leite também está associado à violência, a crime, a assassinato.
Diferente do que ocorre em
Kubrick e Tarantino, no entanto, a tensão em Hitchcock vem antes da suspeita,
como diz o próprio título do filme, do que da violência em si. O suspense gira
em torno da expectativa do crime e nisso o copo de leite é o elemento
essencial. A cena do copo de leite em Hitchcock inicia no plano geral, com
ângulo superior, e termina com um close do objeto, que é o ponto chave da
narrativa nesse momento. O destino das personagens depende daquele copo de
leite.
Em Kubrick, a câmera faz o
caminho inverso: parte do close ao plano geral. O movimento de câmera na cena
de Hitchcock põe o copo em evidência. Ao final da cena percebemos que a câmera
acompanhava, na verdade, o copo e não o personagem Johnny. A câmera é
posicionada justo em frente ao copo no momento final, ela encara o copo e faz o
espectador não se furtar ao destaque que o objeto recebe. O movimento de câmera
na abertura do filme de Kubrick parte do close e do plano fechado que combina o
rosto de Alex e o copo de leite no mesmo enquadramento. No mesmo planos vemos a
face ameaçadora de Alex e a parte superior do copo de leite logo abaixo de seu
rosto. A cabeça do personagem e o copo aparecem no centro da imagem. O copo vai
subindo e é levado à boca ao mesmo tempo em que o movimento de câmera continua.
Vemos Alex bebendo leite ladeado pelos "drugues". A câmera se afasta
mais e vemos que todos vestem as mesmas roupas e também bebem leite. Cada
"drugue" tem um sinal que o diferencia dos outros: os cílios de Alex,
por exemplo.
O branco do copo combina com o
branco das roupas e objetos do cenário e o sentido de pureza ou de paz
convencionado para a cor branca é contrariada pelos eventos subsequentes de
violência. Depois, o travelling afasta a câmera do grupo dos
"drugues" e vemos o cenário ao mesmo tempo em que ouvimos a voz de
Alex explicando a função do leite. O leite está em perfeito acordo com o rosto
do personagem no close de abertura, em que face e objeto são combinados no
mesmo enquadramento: o copo de leite é ameaçador como a expressão de Alex. O
copo de leite significa perigo como a violência dos atos do personagem. O
objeto é uma extensão e ao mesmo tempo a origem, já que prepara para a
"ultraviolência", da agressividade de Alex. O copo de leite é também
uma arma, servindo como aditivo da ação violenta.
Se em Hitchcock o copo de leite
é o elemento principal da cena, em Kubrick, o copo de leite é mais um elemento
que compõem o repertório cultural do personagem. O movimento de câmera tem
valor descritivo, revelando, junto com a narração, o contexto em que Alex vive.
A cena parte do close na expressão e no copo, elementos da agressividade do
personagem, até um plano geral que coloca tudo em relação: a relação do leite
com a ação violenta da personagem, as relações entre os "drugues", as
relações entre indivíduos naquela sociedade.
O movimento de câmera
e o close participam, em Kubrick e Hitchcock, da construção do copo de leite
como elemento de perigo. Na abertura de Kubrick há ainda a combinação do travelling
com a trilha sonora e o aspecto bizarro do cenário. Na cena de Hitchcock, travelling
e close dialogam com a iluminação para criar o suspense. Já na cena de
Tarantino entre os personagens Landa e LaPaditte, a tensão reside na linguagem
dos planos. Enquanto Hitchcock recorre à iluminação característica do gênero noir,
Tarantino, entre as várias referências cinematográficas que fazem parte do seu
estilo de colagem, faz referência ao gênero western. Em "Bastardos
Inglórios", ele cita sobretudo o spaghetti western de Sergio Leone
tanto na composição dos planos como no ritmo narrativo. A tensão da cena do
interrogatório é construída a partir da linguagem do western,
estabelecendo, na abertura do filme, o duelo inicial entre o algoz e suas
vítimas, papéis que se invertem nos duelos seguintes do desenrolar da
narrativa.
*Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.