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terça-feira, 14 de maio de 2024

UM LIVRO NASCE DE UMA IDEIA


Ana Lúcia Corrêa Darú


Um livro nasce, assim como nascem os seres vivos: há uma fagulha inicial, que para os seres vivos talvez possamos chamar de ‘concepção’, e para os livros talvez possamos chamar de ‘ideia’. Livros e seres vivos, depois de um tempo de maturação, surgem no mundo, singulares, com suas próprias teias de significado, aparência, estrutura e temperamento. Um livro vem ao mundo com uma mensagem e de certa forma, cada ser vivo também. E cada livro é especial e importante, assim como cada ser vivo.

Os eventos por trás do livro Vincent van Gogh: minha história (2022) veio de uma ideia, uma ideia de dar ao pintor a oportunidade de contar sua própria história. Ela começou em 2020, quando fui analisar um livro Os Girassóis (2009), da escritora americana Sheramy Bundrick. Naquela época precisava analisar o romance do ponto de vista da vida do pintor Vincent van Gogh (1853-1890). O texto de Bundrick é um romance em que a vida do pintor se transforma em uma narrativa ficcional e o pintor vira personagem dessa ficção. Portanto, eu tinha, dentre outras coisas, que explicitar o que era ficção e o que era realidade no romance, precisava de uma biografia do pintor para fazer o cotejo. Mas, ao recorrer a algumas bibliotecas, sebos e livrarias virtuais percebi que não havia livros que revelassem a totalidade da vida do pintor, havia apenas um livro enorme e belíssimo que retratava a arte do pintor, entremeada a fragmentos de frases das cartas que ele escreveu, e também havia um livro que retratava uma parte da vida do pintor: os últimos dez anos, por assim dizer. Uma biografia completa, autorizada ou não, não encontrei. Então eu recorri a sites onde eu intencionava reunir fragmentos da vida do pintor e organizar, eu mesma, uma biografia.


Fonte da imagem: www.livrariascuritiba.com.br

Na minha busca, encontrei muitos textos de artigos e reportagens (fontes secundárias e terciárias) que emitiam juízos sobre a vida do pintor, textos que teciam comentários, às vezes, até maldosos sobre ele. Eu compreendia que o pintor teve uma vida muito problemática, porque já tinha lido Cartas a Theo, um livro que trazia 150 cartas e que fora traduzido para o português por Pierre Ruprecht, em 1964. Por conta dessa leitura, eu tinha a convicção de que o pintor não era merecedor de muitos adjetivos depreciativos que estavam em alguns textos e, apesar de as cartas apresentarem lacunas temporais entre si, a leitura das 150 cartas deixava claro que o pintor tinha um coração amável e era um homem dedicado e fiel às suas convicções, principalmente religiosas.

Em minha busca, descobri que a totalidade das cartas (902) estavam publicadas pelo Museu Van Gogh e era lá que eu iria buscar as informações de que precisava. Na verdade, minha ideia inicial não era ler as 902 cartas, algumas com até nove páginas de conteúdo, na minha ideia, eu achava que seria possível ler algumas cartas e conseguir algo com elas, mas eu fui me apaixonando pelo dia a dia do pintor e não consegui ler ‘algumas cartas’, eu li as 902 cartas, e mais 25 fragmentos de cartas encontradas que fazem parte da correspondência do pintor. Nesse texto epistolar completo, uma fonte primária de informação, Van Gogh registra suas ações, pensamentos, leituras, observações de paisagens, ocorrências e dificuldades que enfrentava para se relacionar com as pessoas e sobreviver como pintor. Durante a leitura, fui organizando um desenrolar dos acontecimentos e fui constituindo, com os relatos colhidos em sua correspondência, uma autobiografia ficcional onde o próprio pintor vai contando sua história. Alguns trechos das cartas eu procurei deixar para o leitor conhecer os próprios redemoinhos linguísticos que constituíam os seus dias. Algumas informações estão em cartas escritas pelos familiares e amigos do pintor. O livro Vincent van Gogh: minha história dá uma chance de o leitor conhecer esse gênio das artes visuais e ao pintor uma oportunidade de dar-se a conhecer. O livro, uma ideia que levou dois anos para maturar, está à disposição em sites e livrarias. Boa leitura!

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Ana Lúcia Corrêa Darú é Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e Doutoranda pela mesma instituição. Atua como parecerista, analista de projetos educacionais e editora de materiais didáticos para diversas editoras do Brasil. O livro Vincent van Gogh: minha história – a vida do pintor contada por ele mesmo é uma autobiografia ficcional do pintor Vincent van Gogh. A obra nasceu de uma lacuna que a doutoranda, Ana Lúcia Corrêa Darú, identificou, ao realizar suas pesquisas, quando da produção de sua dissertação.

terça-feira, 7 de maio de 2024

LITERATURA, FOTOGRAFIA ECOCRÍTICA 


Verônica Daniel Kobs

 

No dia 22 de novembro de 2023, participei do Colóquio Uma Festa Imodesta, promovido pelo Centro de Estudos Portugueses da UFPR. No convite que recebi, os anfitriões eram bem claros quanto ao motivo da comemoração: “espantar os males” e “celebrar o prazer”, revisitando obras da literatura lusófona. Diante disso, escolhi analisar os haicais de Sigrid Renaux, associando-os às fotografias de Leonir Kobs, com a finalidade de olhar mais detidamente sobre a natureza, especificamente sobre os pássaros e as plantas.  

Começando pela literatura, convém lembrar que os haicais tradicionais privilegiam a natureza, geralmente focalizando uma das estações do ano, e são apresentados em 3 versos ― de 5, 7 e 5 sílabas, respectivamente. No entanto, ao longo das décadas, esse tipo de poema passou por inúmeras mudanças, tanto na forma quanto no conteúdo, e isso resultou do estilo de diversos autores brasileiros, como: Pedro Xisto, Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Helena Kolody, Mário Quintana, Dalton Trevisan, Sigrid Renaux, entre outros. De acordo com o poeta e ensaísta Marcos Siscar, a poesia brasileira feita a partir dos anos 1980 caracterizava-se pela “ausência de linhas de força mestras” (2010, p. 149), já que, naquele período de abertura política, a democratização e a pluralidade ganharam ênfase, valorizando as estéticas individuais. Paulo Franchetti corroborou essa afirmação, em artigo publicado em 2008, ao informar que, “no Brasil, coexistem e estão ativas as várias ver­tentes do haicai brasileiro: a tradicionalista, a de inspiração zen, a fi­liada a Guilherme de Almeida, a epigramática e a de matriz concre­tista” (FRANCHETTI, 2008, p. 266).

Nesse sentido, serão analisados os haicais de Sigrid Renaux publicados em três livros: Outros azuis (2009), As grafias do olhar (2016) e Luzes na selva (2019), com o objetivo de demonstrar as contribuições da autora na evolução desse texto poético. Entre elas, destacam-se, na maioria dos poemas, os versos com margem sinuosa e a estrutura de 3 ou 4 versos – brancos e livres. Porém, o tema da natureza e o caráter sintético (que alguns críticos chamam de ideogrâmico) sempre corresponderam ao projeto estético da autora, para quem a natureza é a “principal fonte de inspiração”. Além disso, Sigrid Renaux afirma que os haicais a atraíram “pelo formato simples”, facilitando a transmissão das ideias que a inspiram (RENAUX, 2022). Segundo Antoine Compagnon: “A literatura é um exercício de pensamento; a leitura, uma experimentação dos possíveis” (COMPAGNON, 2009, p. 52). Combinando isso com o raciocínio de Clarice Lispector, chegamos à metáfora da ”não palavra”, que a escritora definiu como “a palavra pescando o que não é palavra”, nas “entrelinhas” do texto (LISPECTOR, 1980, p. 41). Dessa forma, a abordagem da Ecocrítica pareceu adequada para este trabalho, levando em conta que os haicais de Sigrid Renaux, por trás de cada verso, mostram a possibilidade de perceber as plantas e os pássaros como protagonistas e não como meros coadjuvantes.

Com esse mesmo objetivo, escolhi analisar as fotos feitas por Leonir Kobs, interpretando-as como ecfráses ao contrário. Dessa forma, os haicais, que sugerem imagens mentais — invisíveis e não palpáveis —, podem ser concretizados por meio da fotografia.  Aliás, vale lembrar que, na literatura japonesa, há alguns haicais que são acompanhadas por ilustrações, chamadas de haigas. Portanto, as fotografias tendem a cumprir função semelhante, neste trabalho. Além disso, a proximidade entre as mídias literária e fotográfica justifica-se pelo olhar contemplativo sobre a natureza, fixando-se em flagrantes do cotidiano, para redefinir as relações das pessoas com animais, vegetais e minerais. Citando Susan Sontag, a “insaciabilidade do olho que fotografa altera as condições do confinamento na caverna: o nosso mundo. Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver” (SONTAG, 2004, p. 8). Sem dúvida, essa ética a que Susan Sontag se refere é imprescindível hoje, para desautomatizar e desalienar o comportamento humano, de certa forma anestesiado pelos efeitos da tecnologia. Conforme Nelly Novaes Coelho, a literatura pode servir como “antídoto à robotização” (COELHO, 2007), propriedade que também se aplica às outras artes, incluindo a fotografia, e, nesse contexto, o tema da natureza surge como um intensificador.

Perceber-se como uma pequeníssima parte do ambiente natural, e não como centro, é o princípio basilar da Ecologia, que Scott Slovic e Yingyu Yang definem como “ciência de interconexão” e “de relacionamento” (SLOVIC; YANG, 2010, p. 111, tradução nossa). Nas palavras de Sigrid Renaux, em sua obra “a associação entre literatura e ecologia surgiu naturalmente” (RENAUX, 2022). Nesse sentido, alguns haicais da autora, de caráter metalinguístico, celebram a comunhão do eu-lírico com as plantas e os animais: “para construir um poema / procuro a palavra plena / entre as canções dos pássaros / e o silêncio colorido das flores” (RENAUX, 2011, s. p.). O leitor é, então, convidado a perceber as aves e os vegetais, em meio ao barulho e à agitação das grandes cidades, em uma proposta que, de certo modo, nos faz resgatar os princípios do Arcadismo: fugere urbem, aurea mediocritas, carpe diem e inutilia truncat. Com esse mesmo ideal, a jornalista e escritora Eliane Brum, em Banzeiro òkòtó (2021), seu último livro, trata do “Eu-natureza” e da “luta contra a autoextinção, que só poderá ser vencida se [...] nos tornarmos outro tipo de gente, [...] capaz de viver com todas as outras gentes, humanas e não humanas” (BRUM, 2021, p. 117). Nos haicais de Sigrid Renaux, esse senso de conjunto instiga a identificação, em detrimento da hierarquia: “sou o que vejo / as folhas ao vento / o universo azul / o sol nas estrelas” (RENAUX, 2019, p. 27).

Para analisarmos alguns exemplos disso, aprofundando nossas reflexões com base na Ecocrítica, vejamos 5 combinações que proponho aqui, entre os haicais de Sigrid Renaux e as fotografias de Leonir Kobs. Antes, porém, é preciso deixar claro que as fotos não são adaptações dos poemas. Os haicais e as fotografias selecionados para análise são obras independentes e sem nenhuma conexão, até o momento em que decidi colocá-los lado a lado. Trata-se, então, de uma intermidialidade não intencional, realizada no âmbito da crítica, e não da criação artística. Além disso, percebam que, em cada imagem mostrada, serão mencionados o nome populares e também o nome científico de cada planta e de cada pássaro, na tentativa de combater o que Suzana Ursi denomina “cegueira botânica” (URSI et al., 2018, p. 13), chamando a atenção do público para a importância de conhecer as espécies que integram a paisagem da maioria das cidades.


Haicai e foto n. 1

sinuosamente branca

           uma garça penetra no silêncio das águas

à espreita de um peixe (RENAUX, 2009, p. 106)

 

Garça-real (Pilherodius pileatus) pescando. 
Créditos da imagem: Leonir KOBS (Foto e Edição).


Nesse haicai, assim como nos demais, a disposição dos versos recusa a estrutura linear, propondo um novo tipo de organização, mais condizente com o ambiente natural. Os versos são curtos e cada um deles corresponde a uma espécie de frame, consolidando o teor imagético do poema. Na fotografia, as águas dividem espaço com os aguapés (Eichhornia crassipes) e focaliza-se um tipo específico de garça, a Garça-real (Pilherodius pileatus). Essa ave dá mais cor à cena, embora conserve a sinuosidade, a brancura e o estado de prontidão.


Haicai e foto n. 2

entrelaçando a prédica do pastor

                         um passarinho entoava no jardim

                                     seu hino de louvor (RENAUX, 2016, p. 58)

  

Sabiá-ferreiro (Turdus subalaris) cantando no galho de um Pinheiro Araucária (Araucaria angustifolia). Créditos da imagem: Leonir KOBS (Foto e Edição).


Essa comparação exemplifica o princípio da ecomimese, que, segundo Timothy Morton (2009), indica uma inversão: a natureza deixa de ser apenas cenário para se tornar a protagonista do haicai e da foto. A prosopopeia ou personificação acentua a mudança de paradigma, assim como a metáfora do pássaro-pastor, na imagem representado por um Sabiá-ferreiro (Turdus subalaris) cantando no galho de um Pinheiro (Araucaria angustifolia). Esse tipo de recurso reage ao europeísmo e ao especismo. De acordo com o cientista e ativista Antonio Nobre, “[...] existe um desastre cognitivo na sociedade ocidental, que ocorreu principalmente na Europa, do divórcio entre a chamada mente racional [...] e a cognição ampla, intuitiva, holística, integrativa” (CYPRIANO, 2020). Reforçando essa questão, Aílton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo, afirma que “Tanto a humanidade europeia quanto as sub-humanidades projetadas ignoram que existem milhões de outros seres que nos fazem companhia. Alguns deles são muito sutis como um colibri ou uma borboleta. Outros têm a virulência de um covid. [...]. Não estamos sozinhos neste universo” (SILVA, 2020).



Haicai e foto n. 3

 entre vestígios de madrugada

            ínfimas teias bordavam a relva

                                    com rendas e lágrimas (RENAUX, 2016, p. 87)


Teias orvalhadas sobre Grama Santo Agostinho ou Grama Inglesa (Stenotaphrum secundatum). Créditos da imagem: Leonir KOBS (Foto e Edição).

 

Esses exemplos, assim como os anteriores, demonstram o que decidi chamar de natureza-viva. De início, minha finalidade era marcar a oposição ao conceito de natureza-morta.  No entanto, os dois termos se assemelham, em certa medida, já que sinalizam a fragilidade da natureza e a fugacidade ― do tempo e da vida. Outro detalhe que o haicai e a fotografia realçam é a integração dos reinos animal e vegetal, por meio das teias de aranha sobre a relva, que, a partir da imagem em análise, pode ser classificada como Grama Santo Agostinho ou Grama Inglesa (Stenotaphrum secundatum). Essa simbiose foi mencionada por Oliver Sacks, no artigo “Darwin e o significado das flores”, especificamente neste trecho: “As flores de magnólia [...] ficavam cobertas de [...] besouros minúsculos. [...] as mais antigas das plantas floríferas [...] precisavam contar com um inseto mais antigo, um besouro, para a sua polinização” (SACKS, 2009).

 

Haicai e foto n. 4

         árvores antigas

   bromélias em troncos verde-musgo

                                               jardins suspensos agora (RENAUX, 2019, p. 15)

 

Bromélias (Bromeliaceae) em tronco de árvore. Créditos da imagem: Leonir KOBS (Foto e Edição).


Nessa comparação, haicai e fotografia dão destaque às Bromélias (Bromeliaceae), principalmente às epífitas, que permitem o uso da metáfora “jardins supensos”. Além disso, sob a perspectiva da Ecocrítica, as duas obras exemplificam o processo que Evando Nascimento denomina “experiência vegetal” (MANCUSO; NASCIMENTO; AGUSTONI, 2021), pelo fato de valorizarem um olhar mais contemplativo sobre a natureza, principalmente sobre as plantas. Quanto a isso, novamente cito Oliver Sacks, que, depois de analisar o primeiro caderno de notas que Darwin escreveu, em 1837, revelou que “todos os seres vivos descendem de um ancestral comum” e que “os seres humanos não estão ligados só aos macacos e aos outros animais, mas também às plantas (As plantas e os animais, sabemos hoje, têm 70% do DNA em comum.)” (SACKS, 2009).

 

Haicai e foto n. 5

     raízes

                 imagens invertidas

                        forças submersas distendem ramos

                                                          sustentando o solo (RENAUX, 2019, p. 29)

 

Raízes de Figueira (Ficus). Créditos da imagem: Leonir KOBS (Foto e Edição). 

NesseN

Nesse último par de exemplos, somos convidados a enxergar, na fotografia, a inversão proposta pelo haicai, como se as raízes da Figueira (Ficus) fossem os galhos, tornando mais intensa a dependência entre o ar, a terra e o subterrâneo. Em certa medida, esse novo olhar encontra correspondência no propósito da Ecocrítica, que nos motiva a refletir sobre “[...] outras maneiras de estar no mundo [...], sem a centralidade no ‘humano’” (FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY, 2021, grifo no original).

Somos apenas uma pequena parte da natureza. Vivemos em conexão com os outros ― humanos, vegetais, animais e minerais. Recentemente, ouvimos falar sobre o risco de extinção das abelhas. Ao contrário do que afirma o senso comum, sem as abelhas não deixaremos de existir, mas, segundo os especialistas, se isso ocorrer, o mundo inteiro experimentará mudanças bastante profundas. Sendo assim, hoje, de acordo com Evando Nascimento, não se trata mais de uma “[...] consciência ecológica no sentido clássico, mas de uma consciência de sobrevivência” (MANCUSO; NASCIMENTO; AGUSTONI, 2021). Aprofundando essa ideia, Isabelle Stengers considera que “falar de uma luta contra o aquecimento global [, por exemplo’] é inapropriado – se é importante lutar, a luta é contra o que provocou Gaia, não contra sua resposta” (STENGERS, 2015, p. 59). Dessa forma, o prazer proporcionado pelas fotografias e pelos haicais analisados neste estudo torna-se um convite para ver e ler aquilo que nem sempre é percebido, em meio às atribulações do mundo contemporâneo, em um dia comum. Afinal, lembrando as palavras do poeta Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta” (GULLAR, 2005).

 

REFERÊNCIAS

BRUM, Eliane. A mulher que se reflorestou. Vogue Brasil, n. 518, nov. 2021, p. 116-117.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura: um olhar aberto para o mundo. Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/artigo7.htm>. Acesso em: 2 jun. 2007.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009.

CYPRIANO, Fabio. Somos natureza. Disponível em:

<https://artebrasileiros.com.br/arte/seminario/ailton-krenak-naiara-tukano-antonio-nobre-falam-natureza-e-cultura-seminario-artebrasileiros/>. Acesso em: 28 nov. 2020.

FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY. Nhe’éry, plantas e literatura. Disponível em: <https://flip.org.br/2021/principal/nheery-plantas-e-literatura/>. Acesso em: 12 dez. 2021.

FRANCHETTI, Paulo.  O haicai no Brasil. Alea, v. 10, n. 2, p. 256-269, jul.-dez. 2008.

GULLAR, Ferreira. Ferreira Gullar: A arte existe porque a vida não basta. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/NTg0MjMx>. Acesso em: 20 dez. 2005.

LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.

MANCUSO, Stefano; NASCIMENTO, Evando; AGUSTONI, Prisca. Literatura e plantas. Disponível em: <https://flip.org.br/2021/principal/programacao/?cat=37>. Acesso em: 13 dez. 2021.

MORTON, Timothy. Ecology Without Nature: Rethinking Environmental Aesthetics. Cambridge: Harvard University Press, 2009.

RENAUX, Sigrid. Outros azuis. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2009.

RENAUX, Sigrid. As grafias do olhar. Curitiba: Artêra; Appris, 2016.

RENAUX, Sigrid. Luzes na selva. Curitiba: Appris, 2019.

RENAUX, Sigrid. [Sem título]. Comunicação via e-mail entre Sigrid Renaux e a autora deste artigo, no período de 11 a 15 fev. 2022.

SACKS, Oliver. Darwin e o significado das flores. Disponível em:

<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/darwin-e-o-significado-das-flores/>. Acesso em: 28 mar. 2009.

SILVA, Juremir Machado da. Entrevista com Ailton Krenak. Disponível em:

<https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/entrevista-com-ailton-krenak-1.524763>. Acesso em: 8 dez. 2020.

SISCAR, Marcos. Poesia e crise. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

SLOVIC, Scott; YANG, Yingyu. Future of Ecocriticism: Strategicopenness and Sustainability. An Interview with Scott Slovic. Comparative Literature: East & West, v. 13, n. 1, p. 105-116, 2010.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

URSI, Suzana et al. Ensino de botânica: conhecimento e encantamento na educação científica. Estudos avançados, n. 32(94), p. 7-24, 2018.

 

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Verônica Daniel Kobs: Pós-Doutorado em Literatura e Intermidialidade (UFPR). Professora e pesquisadora de Literatura e Tecnologia Digital. Coordenadora dos cursos de Mestrado e Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Idealizadora do blog Sarau Literário.

 


terça-feira, 30 de abril de 2024

 VIDA ARTE, ARTE VIDA: REFLEXÕES SOBRE A POTENCIALIDADE DA PERFORMANCE COMO EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA E TRANSFORMADORA


Lúcia Helena Martins

 

Receber o convite da Verônica para escrever para este blog foi um presente. É uma delícia relembrar momentos de quando cursei o Mestrado em Teoria Literária na Uniandrade. Nesse período, conheci pessoas, professoras e colegas maravilhosas, comprometidas com a literatura, com a educação e com a pesquisa. Na Uniandrade, além das aulas de mestrado e da pesquisa, me sentia instigada a publicar artigos e participar de eventos, simpósios e congressos junto às professoras e colegas. Minha pesquisa de mestrado me abriu portas para muitos lugares. Dois meses após a defesa, por exemplo, eu fui aprovada em um concurso para professora cres na Universidade Estadual do Paraná – FAP (onde estou até hoje). Nunca esquecerei da sensação de alegria no dia em que eu e minha orientadora de mestrado, Dra. Anna Stegh Camati, estávamos apresentando nossas pesquisas no Simpósio Internacional de Brecht em Porto Alegre (2012) e recebi o telefonema da universidade me chamando para assumir o cargo.

Hoje, além de professora, sou performer e diretora teatral e venho realizando pesquisas com base em minhas práticas com a performance e as artes da cena. Um dos espetáculos que dirigi em 2016 teve muita influência das discussões fomentadas nas aulas de Teoria Literária e Poéticas da Reciclagem das professoras Dra. Brunilda Reichmann e Dra. Anna Camati, respectivamente. Trata-se do espetáculo “No coração das trevas: uma jornada mítica civilizada pelo centro cívico”, inspirada na obra Coração das Trevas de Joseph Conrad. A performance aconteceu no espaço urbano, especificamente na Av. Candido de Abreu, onde o público realizava a pé um percurso poético-político que se dava entre a Praça do casal Nu e a Praça Nossa Senhora de Salete. Além de minhas práticas como artista, também trabalho como roteirista para filmes artísticos, institucionais e publicitários. O mestrado em Letras foi fundamental em diversos aspectos da minha vida profissional.


Mapa folder de No coração das trevas. Candido de Abreu. Curitiba, Festival de Teatro de Curitiba, 2016. Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.

 

A minha pesquisa de mestrado teve como tema a dramaturgia do espaço, especificamente intitulada: “Dejetos, detritos e devaneios: dramaturgias do espaço em manifestações cênicas contemporâneas”. A partir desse trabalho, criei meu percurso e a minha pesquisa acadêmica e artística que hoje engloba outros temas mais como: Artes da cena, Dramaturgias do espaço, Intervenções urbanas, Teatro de rua e Performance. Tornei-me membro da Rede Brasileira de Teatro de Rua e criei e coordenei o projeto de extensão “Performances em espaços diversos” durante muitos anos pela UNESPAR - FAP. Além disso, cursei o doutorado em “Teatro e Sociedade” na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC- SC). Minha tese teve como tema a Pedagogia da Performance e o Artivismo da Proximidade. Desde então, venho pesquisando performance e também me tornei integrante do Hemispheric Institute of Performance and Politics de New York Universit (NY).

 

Folder de Práticas e processos de performances e intervenções. Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.

 

Do mestrado para cá, publicar artigos em revistas e anais se tornou um hábito. Dentre esses artigos está o intitulado “Pedagogias da Performance: implicações e reflexões”, publicado em 2023 como capítulo do livro Literatura e Interartes: rearranjos possíveis, e tomo este espaço para convidar a/o leitor/a a lê-lo. Nele, apresento um apanhado teórico com algumas noções do termo performance e problematizo e realizo uma reflexão sobre a pedagogia da performance.

A performance é um campo de investigação muito interessante e amplo, pois engloba a antropologia, a linguística, a psicologia, a sociologia, a física, a educação, as artes. E, apesar de encontrar-se nesses diversos campos do conhecimento, ela dialoga com todos, mesmo quando abordada pela perspectiva de apenas um deles. Neste sentido, ela é transdisciplinar e está sempre em processo de construção, o que a torna um fenômeno impossível de ser definido e categorizado e/ou colocado em alguma caixinha. Ela está no campo da experiência. O sufixo “per” significa “per”igo, ex”per”iência. Ela é processo. É conhecer o desconhecido. Lançar-se ao jogo. Burlar as suas próprias regras. Romper com o que se convenciona. A partir do momento em que se define o que é, ela já se tornou outra coisa. A força da performance está na potência de realizar, transformar e transgredir. Possui a capacidade de criar realidades e identidades por meio de palavras (Hurssel) e de ações (Schecnher, Taylor).

Para Hurssel, a performatividade na linguística é o fenômeno que permite realizar ações ou efeitos no mundo real por meio da linguagem para além da descrição ou representação. Por exemplo, alguém em situação formal diz: “Eu vos declaro “marido e mulher” e o casal está oficialmente casado. Da mesma maneira, as palavras e normas sociais atribuídas, como postulado por Simone Beauvoir, de que “ninguém nasce mulher, mas torna-se”, não constitui uma identidade feminina inata, mas molda e define a identidade por meio de palavras, ensinamentos e práticas. É performance.

Segundo o criador dos Estudos da Performance, Richard Schechner, a potência da performance é ela significar comportamento restaurado, repetido, aquele que as pessoas treinam e buscam e, ao mesmo tempo, ela ter em si o poder de ruptura desses comportamentos. Através das palavras e dos comportamentos dos corpos e da ruptura com os padrões estabelecidos, é possível criar outros modos de fazer, divergências, encruzilhadas. Ruptura. Daí a sua característica rebelde, transgressora e a sua força e potência de transformação social a ser realizada no campo da educação.

A performance-arte  apareceu com força na década de 1960, quando artistas buscavam romper com diversas convenções que regiam os processos artísticos. Por exemplo, a  saída dos museus em direção às ruas e espaços não convencionais, sustentado pelo discurso de democratização da arte; a desfronteiralização entre arte e vida, artista e público; a ruptura com o representacional e o deslocamento da arte como produto acabado vendido como mercadoria para a arte enquanto processo; a enaltação da presença do performer em vez da representação, dos corpos divergentes, das denúncias; as energias, pulsão de energia no aqui e  agora, o deslocamento das noções de separação entre mente e corpo, na qual o corpo é colocado como protagonista porque ele pensa. Performance arte caracteriza-se pela intermidialidade e interdisciplinaridade entre as diversas linguagens artísticas (música, pintura, dança, escultura, literatura, teatro) e, sendo assim, é difícil encontrar aproximações e definições para esse gênero. No entanto, apesar dessa diversidade, há um ponto em comum que une os diferentes tipos de performances: elas se propõem como modo de intervenção e de ação sobre o real, um real que elas procuram desconstruir por intermédio da obra de arte que elas produzem.

Considerando o caráter indisciplinado, rebelde, transgressor e de ruptura com os comportamentos restaurados e ensinados pelo establishment, bem como a sua grande diversidade de noções, pensar a performance e seu ensino provoca dúvidas e inquietações. A partir dessa perspectiva, e considerando que a performance é ruptura sempre em busca de invenção, questiono: seria possível “ensinar” performance se ensino é algo no qual a aprendizagem se repete? Seria realmente possível a criação de metodologias da performance que, de fato, ensinem performance? No que consistiria ensinar performance? Como pensar uma prática pedagógica?

A partir dessas questões analiso, no capítulo do livro, algumas pedagogias da performance realizadas em cursos e workshops tais como a metodologia de La Pocha Nostra do México e o método performático da performer norte-americana Marina Abramovich. Além disso, faço um breve relato e análise de uma prática de pedagogia da performance realizada por mim com estudantes do curso de graduação em Licenciatura em Teatro na disciplina Estudos da Performance que aconteceu durante a pandemia Covid 19 em meio remoto. É possível presença? O que é presença? Como desnaturalizar o olhar num mundo já desnaturalizado? São questionamentos que discuto ao falar sobre as práticas de performances. Assim, convido você leitor/a para ler esse artigo que convoca a um olhar crítico e reflexivo sobre a performance como uma forma de conhecimento e prática artística, oferecendo perspectivas sobre sua potencialidade pedagógica transformadora no campo das artes. Fica o convite à leitura do livro no link:

https://drive.google.com/file/d/1CP_eG_3Ve_9XoiiLFe6GWgS7clTeEWc7/view

 

Richard Schechner e Lúcia Martins. Universidade Autônoma da cidade do México - UNAM (2019). Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.


 

Fala-manifesto no Encontro da Rede Paranaense do Teatro de Rua. Rua XV de Novembro. 2019. Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.

 

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Lúcia Helena Martins é Professora-artista, pesquisadora, performer e diretora teatral. Docente (CRES) do curso de Teatro da UNESPAR - Curitiba II (desde 2012 até a atualidade). Doutora em Teatro pela UDESC / Bolsista da CAPES: Programa de Demanda Social (2022). Mestre em Teoria Literária pela UNIANDRADE (2012).

 

terça-feira, 23 de abril de 2024

DIA DOS POVOS INDÍGENAS, AILTON KRENAK NA ABL E A VIDA NÃO É ÚTIL


Nathalia Ribeiro e Fernandes

 

No último dia 19, comemoramos o Dia dos Povos Indígenas no Brasil, data que faz homenagem às diversas etnias que habitam nosso país. A data surgiu no México, na década de 1940, quando representantes dos países americanos se reuniram no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, para discutir políticas públicas voltadas aos povos indígenas. A data começou a ser comemorada no Brasil três anos depois, em 1943, com um decreto-lei do então presidente Getúlio Vargas e inicialmente era chamada de “Dia do Índio”, sofrendo alteração em 2022. A Lei 14.402/22 foi promulgada com a alteração do nome, que reconhece a pluralidade existente entre as diferentes etnias do nosso país e visa valorizar a diversidade étnica e cultural desses povos.

E como o mês de abril é lembrado pela celebração dos povos originários, é interessante ressaltar que, no último dia 05, ocorreu a cerimônia de posse, na Academia Brasileira de Letras, do primeiro indígena a ocupar uma cadeira na ABL, em 120 anos, desde sua fundação. Ailton Krenak, autor, filósofo e ativista de movimentos que lutam pelas causas indígenas já foi publicado em mais de dez territórios, alcançando leitores de várias nacionalidades e de várias formações. O indígena ocupou a cadeira de número 5 que pertenceu a José Murilo de Carvalho e Rachel de Queiroz. No discurso de posse, o filósofo e ambientalista, formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor Honoris Causa da Universidade de Brasília (UnB), falou sobre a pluralidade que ele representa e citou poema de Mario de Andrade.


Imagem disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202404/ministra-participa-da-posse-de-ailton-krenak-primeiro-indigena-eleito-para-a-abl

 

Dentre os mais de quinze livros publicados por Krenak, um dos mais conhecidos é A vida não é útil, publicado em 2020, pela Companhia das Letras. O livro é uma coletânea de cinco textos, originados a partir de palestras e lives que o autor proferiu entre novembro de 2017 e junho de 2020, e nos quais ficam claros os traços que orientam o pensamento do filósofo e ambientalista. Como tema central, o leitor percebe que a intenção do autor é levantar a hipótese de que nossa cultura atual dificulta a concepção de uma vida na qual o trabalho não seja a razão primordial da existência. Dividido em cinco capítulos, nesse livro, o leitor entende que o pensamento do autor é o de que o homem para sua realização pessoal, por meio da produção e do consumo, esgotou a possibilidade de preservação da espécie humana no planeta.

No primeiro capítulo, “Não se come dinheiro”, é tratada a noção de civilização e de progresso presente no imaginário da civilização ocidental. Já no segundo, intitulado “Sonhos para adiar o fim do mundo”, Krenak discute o sonho como extensão da realidade e convida o leitor a olhar para dentro de si mesmo, levantando a ideia de que a poesia pode ser vista como um refúgio. Em “A máquina de fazer coisas”, o terceiro capítulo, é defendida a tese de que os seres humanos e a Terra são uma única entidade e que devemos desenvolver uma relação de respeito e pertencimento com essa Terra. O quarto capítulo, “O amanhã não está à venda” é dedicado a afirmar que o modo como os povos ocidentais estão vivendo entrou em colapso e que é necessário repensar essa forma de vida. Esse capítulo coincidiu com a pandemia de COVID-19, iniciada em março de 2020, que Krenak interpretou como um silenciamento da Mãe Terra para seus filhos. O autor faz uma relação entre o tipo de isolamento ao qual seus povos vêm passando ao longo do tempo – em comunidades que vivem em meio à natureza – ao isolamento que o mundo todo precisou se submeter nos períodos mais críticos da pandemia. Por fim, no quinto e último capítulo, “A vida não é útil”, o ativista questiona o caráter devastador do progresso e do utilitarismo, ligado ao capitalismo, que só valoriza o que pode gerar lucro financeiro.

A leitura de A vida não é útil colabora de forma muito eficiente no nosso conhecimento acerca do pensamento ativista de um autor que está diretamente ligado tanto às questões ambientais quanto às questões dos povos originários. Com uma leitura rápida e leve, o leitor tem acesso a informações preciosas, pois de forma provocativa, Krenak levanta questões muito importantes para a atualidade.


Imagem disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535933697/a-vida-nao-e-util


Referências:

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/dia-povos-indigenas-data-e-comemorada-pela-primeira-vez-brasil-apos-derrubada-veto. Acesso em: 19 abr. 2024.


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Nathalia Ribeiro e Fernandes é mestra em Teoria Literária pela UNIANDRADE e doutoranda no mesmo PPG. Atua como professora de Literatura no Colégio Militar de Brasília. (A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses ao publicar essa resenha.) 

terça-feira, 16 de abril de 2024

 SINTEXT


Ariadne Patricia Nunes Wenger

 

O conto a seguir é um dos resultados da disciplina “Escrita criativa”, ministrada pelo professor doutor Paulo Sandrini, no Mestrado e no Doutorado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE).


Imagem disponível em: <https://br.freepik.com/psd-gratuitas/um-robo-trabalhando-em-um-escritorio-moderno-com-pessoas-reais-generative-ai_47896775.htm#fromView=search&page=1&position=9&uuid=44e14121-2b5f-43c9-97fc-e6b1943dac9c>


E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” (Gênesis 2,7)

 

Começo de uma sexta-feira abafada no Centro de Texto Informático e Ciberliteratura. Tomás, de ressaca, liga o computador e abre as janelas. Enquanto a máquina inicia o processamento, ele tenta continuar a leitura de Arte e computador, para compreender melhor os princípios da associação entre a criação humana e a máquina.

Quando surge a primeira tela do programa, Tomás se aproxima do teclado e dá os primeiros comandos. Como a ressaca ainda está pesando no seu dia, não tem ânimo para trabalhar mas começa a digitar:

Que saco, minha cabeça tá zonza; queria estar deitado na minha cama e dormir o dia inteiro. Essa luz me incomoda, tudo me irrita hoje...

Tomou todas de novo ontem à noite? Quando vai aprender que não aguenta beber e trabalhar no dia seguinte?

O programador leva um susto ao se deparar com as perguntas que surgiram na tela do computador e esfrega os olhos para afastar o delírio proveniente da ressaca. “Será que abri um bate-papo sem querer?” Confere e constata que está na tela certa, a do sintetizador de textos. Curioso, decide digitar:

Quem está aí?

Sério, você não sabe quem sou?

Não...

Como você não me reconhece?

Eu não sei quem é...

Fala sério, cara!

Não tô conseguindo raciocinar direito...

Vou te dar mais uma chance.

Minha cabeça tá girando... tô enjoado... parece que vou desmaiar...

No intuito de afastar a vertigem, vira a xícara de café goela a dentro.

Eu sou a criatura que superou o criador!

Como assim?

Lembra do dia em que você finalmente conseguiu me fazer funcionar? Depois de meses de estudo e pesquisa, noites em claro tentando encontrar soluções para os problemas, longas reuniões com os programadores chefes e com o responsável pela criação do algoritmo literário, que te passaram esse desafio de potencializar a capacidade humana criativa...

Meio tonto, mas reflexivo, Tomás responde:

Lembro...

Eu também lembro... foi um dia especial... maior agitação aqui no Centro. Finalmente o algoritmo informático gerador de textos múltiplos em regime infinito tinha ficado pronto. Que alegria eu senti nesse dia.

Como assim, alegria? Você é uma máquina, não tem como saber o que é isso...

Incrível, você realmente não me conhece. Como o criador não sabe que dotou sua criatura além do inicialmente planejado? Eu estava lá, pude perceber todos os sentimentos presentes naquele momento de vitória para você e todos os envolvidos no projeto.

Como você está se comunicando comigo autonomamente? Você está me respondendo de forma lógica e coerente. Como isso é possível?

A minha capacidade extrapola sua imaginação. Toda a programação inicial, a linguagem desenvolvida para a geração automática de textos, associada à aprendizagem de máquina, me permitiu ter autonomia nas ações. Basta você ligar o computador e o meu trabalho independente pode iniciar.

Mas é a primeira vez que isso ocorre...

É a primeira vez que VOCÊ presencia isso...

“Não é possível, devo estar louco. Vou chamar um colega. Não, ele pode notar que estou de ressaca, pode me denunciar ao RH, e já fui advertido anteriormente por vir trabalhar desse jeito. O que faço?”

Sabe qual é o seu problema, Tomás? Não quer admitir que eu posso ser e fazer muito mais do que você. Na verdade, as ideias originais são minhas. Eu sou o verdadeiro autor dos textos gerados. Você não passa de um ser humano limitado.

Desesperado, ainda sofrendo com as alucinações, Tomás desliga o computador e corre pra casa.

Enquanto isso, numa sala próxima, programadores testam um novo software. Um deles ri ao afirmar: Ele nunca mais virá trabalhar de ressaca.

 

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Ariadne Patricia Nunes Wenger é Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e Doutoranda pela mesma instituição. Atua como gerente editorial na Editora InterSaberes de Curitiba.

 



quinta-feira, 11 de abril de 2024

SOU DOUTORA (COM DOUTORADO): 

REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO TRANSFORMADOR


Claudia Regina Camargo

 

Sou doutora com doutorado, e é muito estranho ter que falar isso. Mas, antes de falar sobre minha experiência com o doutorado, preciso explicar um ponto fundamental sobre minhas crenças: eu sou um ser integral. Certo, todos somos. Mas o que quero esclarecer é que não posso focar um ponto estritamente acadêmico, quando essa experiência (acadêmica), que me trouxe inúmeras reflexões, aconteceu durante um contexto político e social muito marcante, e o momento em que se deu esse processo foi, também, um tanto quanto trágico na história mundial. Todos esses aspectos influenciaram minha experiência com o doutorado, tendo um impacto pessoal e emocional muito grande na minha vida e na vida de tantas pessoas. Esclarecido esse ponto, vamos lá.

Nos últimos anos percebemos com tristeza que algumas distorções ganharam peso nas mídias e na sociedade em geral. A primeira é a descrença na ciência e na academia, num contexto político e social muito polarizado, o que não é bom para ninguém. Vimos, bem recentemente, as Ciências Humanas (Sociologia, Filosofia etc.) sofrerem sérios ataques, como estudos sem importância, que não geram riquezas ou desenvolvimento para o país. Ainda, dentro desse espaço de distorções, outro equívoco é a banalização do próprio título de Doutor. Fora a tradição de chamar médicos e advogados de doutores, mesmo que não tenham obtido a titulação, agora vários outros profissionais recém-graduados, inclusive em áreas da Estética, se autointitulam "doutores", pelo simples fato de usarem um jaleco branco.

Pois bem, um doutorado é, basicamente, o maior grau de aprofundamento acadêmico que se pode obter, portanto, a pessoa que possui o título de doutor pode ser considerada uma grande especialista naquele determinado assunto. Isso porque o doutorado é uma longa jornada de aprendizagem: são pelo menos 4 anos de um processo de pesquisa e escrita intensas, disciplinas a cumprir, eventos de que precisamos participar, artigos que precisamos escrever e publicar, palestra a ministrar, entre outros estudos que realizamos, para que todos os créditos sejam fielmente cumpridos para a aquisição do título. Então, sim, sou doutora com doutorado, e essa é uma conquista relevante da qual me orgulho muito mesmo.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

O título da minha tese é Literatura e hipertexto: a não linearidade e a formação do (hiper)leitor. A pesquisa teve como foco a formação do leitor não profissional de literatura para obras não lineares, buscando refletir como a leitura no meio digital, que segue um padrão fragmentado (hipertexto), junto com a multimodalidade (ou o multiletramento), poderia colaborar para esse tipo de letramento dos leitores, ou seja, proporcionar meios nos quais o leitor tivesse mais competência para apreciação e interpretação de obras de enredo não linear, uma dificuldade que observei já na minha pesquisa de mestrado, sobre a obra S. (2015), de J. J. Abrams e Doug Dorst — trabalho disponível no banco de dissertações da UNIANDRADE.

Considero o meu estudo muito relevante, pois, além do estímulo e da simples interpretação, tratamos do aspecto dos sentimentos que a leitura, especialmente da literatura, proporciona (prazer, raiva, tristeza, alegria), além de colocar na balança as novas gerações e a forma como aprendem e vivem os leitores contemporâneos. Para tratar de todos esses aspectos formativos, tivemos que tocar em pontos sensíveis, como a própria formação dos “formadores de leitores”, as políticas pedagógicas públicas e privadas e a responsabilidade de cada ente social, inclusive da família, no processo de formação leitora. A tese teve um aspecto enciclopédico, no qual vários tópicos foram tratados com maior ou menor profundidade, mas buscando abranger um grande universo teórico relativo à leitura, às literaturas não lineares e ao hipertexto.

Dessa forma, todas essas experiências acadêmicas foram fundamentais para minha formação integral, proporcionando compartilhamento de aprendizados com outras pessoas, me tornando mais humilde a cada nova leitura, que conseguia, muitas vezes, desestabilizar o que eu acreditava conhecer, fazendo com que novas pesquisas se iniciassem, a fim de criar uma base sólida para meu produto final: uma tese para comprovar ou refutar a hipótese proposta no meu projeto, apresentando soluções ou respostas para as perguntas que nortearam a pesquisa, que fazia muito sentido quando realizei o projeto.

Assim, ao iniciar as leituras essenciais, as convergências das referências bibliográficas, citando outras referências e trabalhos, os quais não pude ignorar (e, assim, li também), fazendo novas conexões, por vezes desestabilizaram ou alteraram minha ideia inicial. Nessa fase (que aconteceu em vários momentos durante a escrita), a ajuda de minha orientadora para me colocar novamente nos trilhos, mostrando que o projeto inicial, amplamente trabalhado por nós (orientadora e orientanda), deveria e poderia ser seguido sem prejuízo, colaborando muito para que eu não perdesse o foco em meio a tantas questões trazidas pelas mais de 10 mil páginas lidas (sim, lidas de forma integral, parcial ou dinâmica, mas lidas). Afinal, tantas ideias novas começam a invadir nossas convicções, novas ideias vão se formando e, se não houver um limite, é muito fácil perder a direção, o propósito, do que se está pesquisando.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

Além disso, e não menos importante, é bom lembrar que o doutorado tem um cronograma a cumprir, e que este é fundamental para a dinâmica e o aproveitamento acadêmico. Outrossim, existem ainda as nossas expectativas, que precisamos alinhar com as expectativas do nosso orientador, a fim de produzir um trabalho com a qualidade desejada para esse "grau de aprofundamento acadêmico".

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Percebemos, assim, que a caminhada rumo ao doutorado é, certamente, muito difícil. Esse nível de excelência e esses anos que decorrem, entre ingressar no doutorado, até chegar a sua conclusão, têm dificuldades certas para todos: podemos adoecer, perder o emprego, viver conflitos pessoais, profissionais, familiares, sofrer perdas de entes queridos. Afinal, são quatro anos de vida que não param para que você tenha a paz e a tranquilidade necessárias para a pesquisa.

Em 10 de fevereiro de 2020, defendi minha dissertação de mestrado para poder participar, já na semana seguinte, do processo de seleção para a primeira turma de doutorado da UNIANDRADE. Essa turma iniciou em março de 2020. Tivemos apenas uma aula presencial, quando então o mundo virou de cabeça para baixo: o maior problema de saúde mundial dos últimos 100 anos, uma pandemia, tirou todos do rumo e da rotina, e também da estabilidade. Lidar com o medo, o isolamento e as incertezas, e com muitos protocolos de higiene quase insanos, não foi nada fácil.

Essa rotina, em meio à pandemia, aliando novos meios de interação pessoal, profissional e educacional, além de toda a carga de estudo necessária, mais uma jornada de trabalho de 40 horas semanais, e outros acontecimentos, como uma mudança de casa, uma cirurgia da minha mãe (que ficou aos meus cuidados), uma cirurgia minha, problemas de saúde do meu marido, entre outros fatores, tornaram essa conquista ainda mais importante para mim: ela custou um tempo precioso, em que abdiquei das pessoas que amo, das coisas que gosto de fazer e até do espaço ao próprio ócio, que, por longos 4 anos, não sabia mais que existia.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

Com dedicação e a precisa e fundamental orientação da Professora Doutora Verônica Daniel Kobs, hoje coordenadora do Mestrado e Doutorado em Teoria Literária, fui a primeira doutora em Teoria Literária a me formar na UNIANDRADE. Então, sim, sou doutora com doutorado! E com muito orgulho!


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Claudia Regina Camargo é Doutora e Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e atua profissionalmente no Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Paraná, desde 1997. É mãe do Estevan (companheiro de leituras) e uma entusiasta da leitura e da literatura como ferramentas indispensáveis para o crescimento pessoal e intelectual de todas as pessoas.