Sigrid Renaux*
Dando continuidade ao tema do
blog anterior, no qual apresentamos e comentamos poemas dos alunos Fabiano
Capistrano dos Santos, Elisângela Nardi e Jaqueline Kupka, os poemas que seguem
têm, como os anteriores, recordações da infância como tema principal:
MARCIO EDUARDO ANDRADE
Às vezes, pego-me a pensar nos tempos de pequeno.
Tardes a trilhar por trilhas e trilhos de trem,
A correr e a andar de bicicleta.
Na sala de estar, os meninos a vibrar ao fim de cada
partida de videogame.
Os amigos fizeram minha infância mais viva e alegre.
Apesar da ausência desses companheiros, dá-me a
vontade de voltar a ser menino e reviver cada momento.
O tom saudoso das
lembranças de infância, neste poema composto de um quarteto e um terceto em
versos livres, é enfatizado pelas reverberações sonoras das aliterações em
/pego/pensar/pequeno/ na primeira linha; e, na segunda, em
/tardes/trilhar/trilhas/trilhos/trem/, criando quase uma onomatopeia, com os
sons de um trem passando. O movimento iniciado
pelo verbo “trilhar” e a visualização das distâncias percorridas continua na
terceira linha, com os verbos “correr” e “andar”¸ a consonância em /correr/andar/,
juntamente com a rima interna /trilhar/andar/ enfatizando sonoramente o
movimento /trilhar/correr/andar. Dos espaços externos nas linhas 2 e 3, as
lembranças do eu poético voltam-se para o espaço interno da “sala de estar”. Esta
expressão, além de conotar seu uso social, no encontro do eu poético com os
outros “meninos” – em contraposição com as duas linhas anteriores, nas quais o
eu poético trilhava¸ corria e andava sozinho –, também implica em movimento,
mas desta vez, das emoções, ao “vibrarem” os meninos ao final das partidas de
videogame. A ludologia dos jogos une, assim, as lembranças individuais com as
sociais do eu poético, enfatizada ainda, sonoramente, pela aliteração da vogal
/i/ nas sílabas tônicas /fim/partida/, bem como por uma sugestão de rima em
/trem/videogame/.
A segunda estrofe
retoma a ideia da amizade como propiciadora da alegria da infância do eu
poético, restando assim uma saudade alegre “das lembranças dos bons momentos”,
a eufonia propiciada pela repetição das nasais /m/n/, além da repetição da
consoante /s/ aproximando as palavras sonora e semanticamente. O poema se
encerra com a afirmação de que mesmo a “ausência desses companheiros” não o
impede de querer “ser menino” novamente, e “reviver cada momento”. Os infinitos
“voltar a ser” e “reviver”, pela sinonímia – pois voltar a ser é reviver – e
pela rima interna /ser/reviver/ sobrepõem, novamente, som e sentido.
O poema propicia, assim, através da luminosidade
visual da primeira estrofe refletindo-se nas considerações da segunda, um
sentido altamente positivo à palavra “saudade, por meio das “lembranças” como
um bem desejável do eu poético.
ALBERTO
CORSATTO NETO
Numa cidade bem pequena
No interior do Paraná
De uma família muito simples
Que só sabia trabalhar
Foi
ali que eu nasci
O
caçula de cinco irmãos
Todos
iam para a roça
Levando
a enxada nas mãos
Foi assim até os oito anos
Depois viemos pra capital
Enfrentar a cidade grande
Foi um esforço descomunal
Graças
a um pai batalhador
E
uma mãe que o ajudava
E
com a graça de Deus
A
gente se firmava
Não foi uma vida fácil
Muitas lutas enfrentamos
Mas com muita garra
Todas elas superamos
A
vida nos ensinou
Que
sempre iremos lutar
Muitas
coisas se levantarão
Para
nos desanimar
Mas a vitória é certa
Para quem não desistir
Não se deixar abater
Quando a dificuldade surgir
Prova
disso sou eu
Mesmo
com essa idade
Junto
aos meus amigos
Estou
terminando a faculdade
É uma graça sem tamanho
Estou aqui a comemorar
E vocês podem ter certeza
No meu coração vão morar
Poema organizado
em nove quartetos, com variações quanto ao número de sílabas – de 5 a 9 – mas
com uma acentuação regular de 4 tônicas por linha e rimas nas linhas 2 e 4 de
cada quarteto, conferindo assim uma ordenação figurativa e sonora esmerada ao
todo. Esta ordenação, possivelmente advinda de recordações construtivas, faz este
poema primar pela objetividade e clareza com que o eu poético apresenta sua vida
desde a infância.
Os primeiros dois
quartetos nos fazem visualizar um espaço bucólico, onde nasceu este “caçula de
cinco irmãos”, que trabalhava na roça com a família. A rima aguda em /Paraná/trabalhar/
enfatiza o cenário rural e o trabalho, enquanto em /irmãos/mãos/ ela une a
todos por meio da imagem comum das mãos, valorizando assim ainda mais o lavor
da família.
O terceiro
quarteto já apresenta uma mudança – da roça para a capital – onde continua o
esforço da família em sobreviver. A rima aguda capital/descomunal, bem como as
repetições sonoras de /e/f/r/ em enfrentar/esforço, valorizam ainda mais a
transição do ambiente rural para a cidade grande, bem como do trabalho, agora
“descomunal”, para sobreviver.
No quarto quarteto
o eu poético presta sua homenagem aos pais e a Deus pela gradual estabilização
que alcançaram, a rima grave “ajudava/firmava” valorizando assim o resultado
alcançado por meio do trabalho.
No quinto quarteto
o eu poético, já adulto, faz uma reflexão sobre a relação entre lutar e superar
as lutas com “garra”, no sentido figurado de grande vigor ou entusiasmo, o que
é novamente ressaltado pela rima grave “enfrentamos/superamos”, mostrando o
caminho percorrido.
A reflexão, agora
mais ampla, continua no sexto quarteto, ao meditar o poeta como a própria vida
é um “lutar” contínuo para nos desencorajar de continuar lutando, a rima aguda “lutar/desanimar”
opondo assim semanticamente os dois verbos.
Entretanto, o sétimo quarteto reafirma, também
em termos mais amplos, o que o quinto quarteto já havia anunciado: com vigor e
entusiasmo, superamos as dificuldades. O uso da afirmação “a vitória é certa/
para quem não desistir”, serve de estímulo a todos os leitores, pois a
perseverança é uma qualidade imprescindível a quem luta diariamente por
sobrevivência, em todos os sentidos. A rima aguda “nãodesistir/quando a
dificuldade surgir”, confirma sonoramente a importância da perseverança para
alcançar a vitória.
No oitavo quarteto
o eu poético retorna à sua própria experiência, como prova dessa perseverança,
pois, apesar de mais velho, ainda continua lutando, com seus “amigos” mais
jovens, para terminar a faculdade, sonho que não pode realizar antes. A rima grave
“idade/faculdade”, aproximando as duas palavras sonoramente, comprova mais uma
vez como as duas palavras se complementam, em vez de se oporem, como na rima do
sétimo quarteto.
O último quarteto
reitera a graça, o benefício recebido de Deus mencionado no quarto quarteto, e,
como consequência, a comemoração – como ato de trazer à lembrança, mas também
como expressão do júbilo do eu poético em terminar o curso –, ao lembrar os
amigos que nunca serão esquecidos, pois juntos, como os irmãos do poeta,
trabalharam muito, com enxadas metafóricas, para alcançar a graça de terminar a
faculdade. A significação mais profunda de “comemorar” encontra assim eco em
sua complementação rítmica “morar”.
O poema, neste
final da jornada do eu poético, torna-se assim uma homenagem a todos seus
colegas que, como ele, perseveraram em atingir sua meta mais ampla – a
educação, no sentido profundo de chegarmos ao desenvolvimento pleno como seres
humanos.
HELOYZE BIANCA DOS SANTOS
Menina Flor
Foi aprendiz da própria vida
Foi sentimento não demonstrado
Apenas uma Flor recém-florida
A desejar um abraço nunca dado
Mas ela nunca esteve sozinha
Solidão não sentiu jamais,
Pois três Guardiões ela tinha
Para suprir a ausência dos pais
Sua mãe fez isso por amor
Por ter quatro filhos pra criar
Trabalhou duro e derramou suor
Pra trazer sustento ao lar
O pai, talvez não fosse por maldade
Sentimento nunca soube demonstrar,
Pois quando ele tinha sua idade
A infância logo teve que largar
Hoje seu coração que é poesia,
Se fechou para o mundo ao redor
Os pensamentos incomodam em demasia
Ao recordar daquela Menina Flor.
Este poema que
retrata, novamente, lembranças de infância, é composto por 5 quartetos cujas rimas
alternadas abab, cdcd, efef, gfgf, ieie – ligando sonoramente as linhas de cada
estrofe – dão continuidade à linha narrativa. Desta vez, o eu poético narra sua
história em terceira pessoa, a Menina Flor, conotando o desabrochar da
juventude, como a linha 3 do primeiro quarteto confirma: “Apenas uma Flor recém
florida”. Neste primeiro quarteto, rememora o quanto aprendeu sozinha, e quanto
desejava carinho, na falta do “abraço nunca dado”. Mesmo assim, como revela no
segundo quarteto, não se considerava só, pois “três Guardiões”, não
identificados, supriam a “ausência dos pais”. Ao especificar, no terceiro quarteto,
ausência da mãe pelo trabalho, pois “derramou suor/Pra trazer sustento ao lar” a
Menina Flor demonstra seu reconhecimento pelo amor da mãe, mesmo ausente. Já no
quarto quarteto, mesmo se ressentindo da falta de demonstração de sentimento por
parte do pai, a “Menina Flor” o justifica, pois também ele teve de largar a infância,
provavelmente para trabalhar. A Menina Flor, deste modo, retoma um assunto já
tratado em poemas dos colegas: a
ausência dos pais no lar, por motivo de trabalho, ou a falta de carinho para
com os filhos menores.
Por esta razão, na última estrofe, que nos transporta
ao presente da “narrativa”, a Menina Flor afirma que “hoje seu coração que é poesia/ se fechou
para o mundo ao redor”, ou seja, o
coração como berço dos sentimentos, que abriga a poesia como o poder criativo e
a inspiração, retraiu-se, pois as recordações da Menina Flor do que ela foi um
dia, perturbam a Menina Flor atual. E, consequentemente, seu eu poético “se
fechou para o mundo ao redor”, tornando-a insensível para usufruir a totalidade
integrada de seres e realidades existentes.
Este final melancólico,
em complementação e contraposição aos outros dois poemas acima, demonstra como
a libertação das emoções – a
característica mais peculiar do gênero lírico, ativando a função emotiva da
linguagem humana, como proposta por Roman Jakobson – é a tônica fundamental dos
poemas apresentados, em suas diversas
manifestações formais.
*Professora das disciplinas Teorias
da Poesia e Poéticas da Modernidade: dos formalistas russos a Bakhtin, no
Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE