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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Revelações II: Poetas do 8º Período de Letras

Sigrid Renaux*
Dando continuidade ao tema do blog anterior, no qual apresentamos e comentamos poemas dos alunos Fabiano Capistrano dos Santos, Elisângela Nardi e Jaqueline Kupka, os poemas que seguem têm, como os anteriores, recordações da infância como tema principal:
MARCIO EDUARDO ANDRADE
Às vezes, pego-me a pensar nos tempos de pequeno.
Tardes a trilhar por trilhas e trilhos de trem,
A correr e a andar de bicicleta.
Na sala de estar, os meninos a vibrar ao fim de cada partida de videogame.

Os amigos fizeram minha infância mais viva e alegre.
Crescemos e apenas ficou a saudade e as lembranças dos bons momentos.
Apesar da ausência desses companheiros, dá-me a vontade de voltar a ser menino e reviver cada momento.

O tom saudoso das lembranças de infância, neste poema composto de um quarteto e um terceto em versos livres, é enfatizado pelas reverberações sonoras das aliterações em /pego/pensar/pequeno/ na primeira linha; e, na segunda, em /tardes/trilhar/trilhas/trilhos/trem/, criando quase uma onomatopeia, com os sons de um trem passando. O movimento iniciado pelo verbo “trilhar” e a visualização das distâncias percorridas continua na terceira linha, com os verbos “correr” e “andar”¸ a consonância em /correr/andar/, juntamente com a rima interna /trilhar/andar/ enfatizando sonoramente o movimento /trilhar/correr/andar. Dos espaços externos nas linhas 2 e 3, as lembranças do eu poético voltam-se para o espaço interno da “sala de estar”. Esta expressão, além de conotar seu uso social, no encontro do eu poético com os outros “meninos” – em contraposição com as duas linhas anteriores, nas quais o eu poético trilhava¸ corria e andava sozinho –, também implica em movimento, mas desta vez, das emoções, ao “vibrarem” os meninos ao final das partidas de videogame. A ludologia dos jogos une, assim, as lembranças individuais com as sociais do eu poético, enfatizada ainda, sonoramente, pela aliteração da vogal /i/ nas sílabas tônicas /fim/partida/, bem como por uma sugestão de rima em /trem/videogame/.
A segunda estrofe retoma a ideia da amizade como propiciadora da alegria da infância do eu poético, restando assim uma saudade alegre “das lembranças dos bons momentos”, a eufonia propiciada pela repetição das nasais /m/n/, além da repetição da consoante /s/ aproximando as palavras sonora e semanticamente. O poema se encerra com a afirmação de que mesmo a “ausência desses companheiros” não o impede de querer “ser menino” novamente, e “reviver cada momento”. Os infinitos “voltar a ser” e “reviver”, pela sinonímia – pois voltar a ser é reviver – e pela rima interna /ser/reviver/ sobrepõem, novamente, som e sentido.
O poema propicia, assim, através da luminosidade visual da primeira estrofe refletindo-se nas considerações da segunda, um sentido altamente positivo à palavra “saudade, por meio das “lembranças” como um bem desejável do eu poético.
ALBERTO CORSATTO NETO
Numa cidade bem pequena                                                                        
No interior do Paraná
De uma família muito simples
Que só sabia trabalhar
Foi ali que eu nasci
O caçula de cinco irmãos
Todos iam para a roça
Levando a enxada nas mãos
Foi assim até os oito anos
Depois viemos pra capital
Enfrentar a cidade grande
Foi um esforço descomunal
Graças a um pai batalhador
E uma mãe que o ajudava
E com a graça de Deus
A gente se firmava
Não foi uma vida fácil
Muitas lutas enfrentamos
Mas com muita garra
Todas elas superamos
A vida nos ensinou
Que sempre iremos lutar
Muitas coisas se levantarão
Para nos desanimar
Mas a vitória é certa
Para quem não desistir
Não se deixar abater
Quando a dificuldade surgir
Prova disso sou eu
Mesmo com essa idade
Junto aos meus amigos
Estou terminando a faculdade
É uma graça sem tamanho
Estou aqui a comemorar
E vocês podem ter certeza
No meu coração vão morar 
        
Poema organizado em nove quartetos, com variações quanto ao número de sílabas – de 5 a 9 – mas com uma acentuação regular de 4 tônicas por linha e rimas nas linhas 2 e 4 de cada quarteto, conferindo assim uma ordenação figurativa e sonora esmerada ao todo. Esta ordenação, possivelmente advinda de recordações construtivas, faz este poema primar pela objetividade e clareza com que o eu poético apresenta sua vida desde a infância.
Os primeiros dois quartetos nos fazem visualizar um espaço bucólico, onde nasceu este “caçula de cinco irmãos”, que trabalhava na roça com a família. A rima aguda em /Paraná/trabalhar/ enfatiza o cenário rural e o trabalho, enquanto em /irmãos/mãos/ ela une a todos por meio da imagem comum das mãos, valorizando assim ainda mais o lavor da família.
O terceiro quarteto já apresenta uma mudança – da roça para a capital – onde continua o esforço da família em sobreviver. A rima aguda capital/descomunal, bem como as repetições sonoras de /e/f/r/ em enfrentar/esforço, valorizam ainda mais a transição do ambiente rural para a cidade grande, bem como do trabalho, agora “descomunal”, para sobreviver.
No quarto quarteto o eu poético presta sua homenagem aos pais e a Deus pela gradual estabilização que alcançaram, a rima grave “ajudava/firmava” valorizando assim o resultado alcançado por meio do trabalho.
No quinto quarteto o eu poético, já adulto, faz uma reflexão sobre a relação entre lutar e superar as lutas com “garra”, no sentido figurado de grande vigor ou entusiasmo, o que é novamente ressaltado pela rima grave “enfrentamos/superamos”, mostrando o caminho percorrido.
A reflexão, agora mais ampla, continua no sexto quarteto, ao meditar o poeta como a própria vida é um “lutar” contínuo para nos desencorajar de continuar lutando, a rima aguda “lutar/desanimar” opondo assim semanticamente os dois verbos.
 Entretanto, o sétimo quarteto reafirma, também em termos mais amplos, o que o quinto quarteto já havia anunciado: com vigor e entusiasmo, superamos as dificuldades. O uso da afirmação “a vitória é certa/ para quem não desistir”, serve de estímulo a todos os leitores, pois a perseverança é uma qualidade imprescindível a quem luta diariamente por sobrevivência, em todos os sentidos. A rima aguda “nãodesistir/quando a dificuldade surgir”, confirma sonoramente a importância da perseverança para alcançar a vitória.
No oitavo quarteto o eu poético retorna à sua própria experiência, como prova dessa perseverança, pois, apesar de mais velho, ainda continua lutando, com seus “amigos” mais jovens, para terminar a faculdade, sonho que não pode realizar antes. A rima grave “idade/faculdade”, aproximando as duas palavras sonoramente, comprova mais uma vez como as duas palavras se complementam, em vez de se oporem, como na rima do sétimo quarteto.
O último quarteto reitera a graça, o benefício recebido de Deus mencionado no quarto quarteto, e, como consequência, a comemoração – como ato de trazer à lembrança, mas também como expressão do júbilo do eu poético em terminar o curso –, ao lembrar os amigos que nunca serão esquecidos, pois juntos, como os irmãos do poeta, trabalharam muito, com enxadas metafóricas, para alcançar a graça de terminar a faculdade. A significação mais profunda de “comemorar” encontra assim eco em sua complementação rítmica “morar”.
O poema, neste final da jornada do eu poético, torna-se assim uma homenagem a todos seus colegas que, como ele, perseveraram em atingir sua meta mais ampla – a educação, no sentido profundo de chegarmos ao desenvolvimento pleno como seres humanos.

HELOYZE BIANCA DOS SANTOS
Menina Flor
Foi aprendiz da própria vida
Foi sentimento não demonstrado
Apenas uma Flor recém-florida
A desejar um abraço nunca dado
Mas ela nunca esteve sozinha
Solidão não sentiu jamais,
Pois três Guardiões ela tinha
Para suprir a ausência dos pais
Sua mãe fez isso por amor
Por ter quatro filhos pra criar
Trabalhou duro e derramou suor
Pra trazer sustento ao lar
O pai, talvez não fosse por maldade
Sentimento nunca soube demonstrar,
Pois quando ele tinha sua idade
A infância logo teve que largar
Hoje seu coração que é poesia,
Se fechou para o mundo ao redor
Os pensamentos incomodam em demasia
Ao recordar daquela Menina Flor.

Este poema que retrata, novamente, lembranças de infância, é composto por 5 quartetos cujas rimas alternadas abab, cdcd, efef, gfgf, ieie – ligando sonoramente as linhas de cada estrofe – dão continuidade à linha narrativa. Desta vez, o eu poético narra sua história em terceira pessoa, a Menina Flor, conotando o desabrochar da juventude, como a linha 3 do primeiro quarteto confirma: “Apenas uma Flor recém florida”. Neste primeiro quarteto, rememora o quanto aprendeu sozinha, e quanto desejava carinho, na falta do “abraço nunca dado”. Mesmo assim, como revela no segundo quarteto, não se considerava só, pois “três Guardiões”, não identificados, supriam a “ausência dos pais”. Ao especificar, no terceiro quarteto, ausência da mãe pelo trabalho, pois “derramou suor/Pra trazer sustento ao lar” a Menina Flor demonstra seu reconhecimento pelo amor da mãe, mesmo ausente. Já no quarto quarteto, mesmo se ressentindo da falta de demonstração de sentimento por parte do pai, a “Menina Flor” o justifica, pois também ele teve de largar a infância, provavelmente para trabalhar. A Menina Flor, deste modo, retoma um assunto já tratado em poemas dos colegas:  a ausência dos pais no lar, por motivo de trabalho, ou a falta de carinho para com os filhos menores.
 Por esta razão, na última estrofe, que nos transporta ao presente da “narrativa”, a Menina Flor afirma que  “hoje seu coração que é poesia/ se fechou para o mundo ao redor”,  ou seja, o coração como berço dos sentimentos, que abriga a poesia como o poder criativo e a inspiração, retraiu-se, pois as recordações da Menina Flor do que ela foi um dia, perturbam a Menina Flor atual. E, consequentemente, seu eu poético “se fechou para o mundo ao redor”, tornando-a insensível para usufruir a totalidade integrada de seres e realidades existentes. 
Este final melancólico, em complementação e contraposição aos outros dois poemas acima, demonstra como a libertação das emoções – a característica mais peculiar do gênero lírico, ativando a função emotiva da linguagem humana, como proposta por Roman Jakobson – é a tônica fundamental dos poemas apresentados,  em suas diversas manifestações formais.


*Professora das disciplinas Teorias da Poesia e Poéticas da Modernidade: dos formalistas russos a Bakhtin, no Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Diários não tão íntimos: o romance fingindo ser o que é

*Edson Ribeiro da Silva
Em A lógica da criação literária, Käte Hamburger considera o romance em primeira pessoa como um gênero específico, que define como “formas especiais”.
Não se trata do épico, pois o romance em primeira pessoa possui um personagem-narrador, que fala de si, rompendo com o distanciamento que a narrativa épica tem em relação ao momento da narração. O narrador épico vê o narrado de fora, o que lhe garante distanciamento, impessoalidade, mas domínio sobre ele. A narração em terceira pessoa, com seu domínio sobre o outro, seria exemplo de épico.
Não se trata do lírico, pois neste o autor fala de um eu que se confunde com ele mesmo. Ou seja, o lírico não enganaria o leitor quanto à natureza do eu que fala de si. Trata-se de uma enunciação que não é fingida, como a da ficção em terceira pessoa o é, pelo modo como fala de outro.
O romance em primeira pessoa finge que o eu que enuncia, que narra, é o autor do texto. Na verdade, não é. Fingindo ser, não se enquadra na categoria do lírico. Ao mesmo tempo, adquire a atitude do fingimento que, ao contrário do que ocorre na terceira pessoa, que se desnuda como ficção, pode até enganar o leitor.
Dessa forma, algumas modalidades do romance, como aqueles em forma de cartas, de diário, de autobiografia, são formas especiais. Têm uma configuração que imita a de gêneros não-literários. Por isso, conseguem efeitos de veridicção que o romance em terceira pessoa não almeja. O romance em primeira pessoa tenta convencer o leitor acerca da sua semelhança com a realidade através dessa configuração. Ser carta, diário, autobiografia aproxima a experiência da linguagem romanesca daquela efetiva que tais gêneros realizam.
Bakhtin, em A teoria do romance, chama a tenção para essa possibilidade de o romance assumir o formato de outros gêneros. Chama de plurilinguismo a possibilidade de, incorporando gêneros não-literários, orais e escritos, ou até literários, como a novela de cavalaria, assumir as suas configurações em vários sentidos, seja na estrutura, no discurso ou na enunciação. A incorporação da linguagem cotidiana, não-literária, aproxima o romance do presente. Obtém-se a ilusão de proximidade entre aquilo que é narrado e o momento da narração.
Se uma modalidade como o romance em forma de autobiografia pode aumentar a distância entre narrativa e narração, o romance em forma de diário a diminui. No primeiro caso, têm-se a visão de conjunto típica da epopeia, no que se refere ao narrado: o narrador está de posse de um passado que não pode ser alterado e, quase sempre, narra para falar dele e não do momento da narração. Já o romance em forma de diário adota a incompletude desse gênero: relatam-se fatos ocorridos quase ao mesmo tempo em que são narrados; não há um distanciamento no tempo que permita o controle sobre o passado; há uma preocupação com o imediato, passado e futuro. Por isso, trata-se de uma modalidade romanesca que assimila, como diria Bakhtin, a incompletude da rotina, do cotidiano, como forma de distanciamento do épico, mas de aproximação do universo do leitor. A configuração permite efeitos de real que podem produzir o fingimento que engana, que Hamburger considera típica da primeira pessoa.
A possibilidade de o romance, incorporando linguagens, não possuir uma que seja sua, própria do gênero, também o libera para assimilar formas que surpreendem pela experimentação, pelo ineditismo. A autoficção é um exemplo notável das assimilações de formas não-literárias, mas também de sua distensão, de sua renovação através de estratégias experimentais de configuração. Mas elas também são originais na ficção pura. Uma dessas possibilidades é a assimilação de formatos como a redação infantil, o relato oral, a confissão religiosa, o desabafo emocionado. A atitude de fingir que se fala para um tu que não se manifesta é uma formatação recorrente nas letras de músicas. A narrativa em primeira pessoa a assimilou de modo produtivo, a partir do momento em que o romance passou a fingir que não era mais escrita, mas fala. Memórias de Lázaro, de Adonias Filho, exemplifica a técnica, assim como Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. A fala como narração aproxima o romance, outra vez, do lírico das letras de música: o tu pode estar ausente, morto, mas é para ele que se fala; pode estar presente sem que sua fala seja representada. Ao contrário do que Hamburger dissera, essas formas são mais recorrentes que especiais. É a cara própria do romance, conforme Bakhtin o definira.
Basta que se pense em Diário de um ladrão, de Jean Genet. Não se trata de um diário, mas de uma autobiografia. Não apenas na configuração, mas no caráter verídico. No entanto, a configuração inusitada de uma obra que é autobiografia, intitula-se como diário, mas assume as especificidades estruturais e narrativas do romance leva o leitor a um poderoso efeito de estranhamento. A obra está no limite entre a ficção e a autoficção, no sentido contrário ao modo como Bakhtin dizia que o romance, ficcional, se aproximava do não-ficcional. Diário de um ladrão é autobiografia que procurou o efeito de incompletude típico do diário: não se ter uma visão completa a respeito do passado e de quem se é. Assim, o autor pode fingir para aquele leitor que de fato sabe quem ele é, que leu sua biografia, que ele, como homem, ainda está em formação, é um projeto a ser construído junto com a configuração da obra.
Tanto Hamburger quanto Bakhtin já haviam percebido o quanto a narrativa em primeira pessoa se aproximava da realidade, como efeito. Ela via nessa possibilidade um fingimento capaz até de enganar o leitor; para ele, esse fingimento menos enganava que desnudava o real. Trata-se de uma estratégia que rende possibilidades sempre renovadas em termos de elaboração estética.


*Professor  no Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE