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terça-feira, 9 de novembro de 2010

CAPITU, MEMÓRIAS PÓSTUMAS: à sombra do texto em flor





Propor um texto que se coloca à sombra de outro texto, sugere dupla compreensão: primeiro, que o texto é obscurecido pelo outro e segundo que o texto está protegido pelo outro. Analisando estas duas posições, tendo como foco as obras Dom Casmurro e Capitu, memórias póstumas, vemos que se o obscurecimento se dá sobre a obra Capitu, memórias póstumas é porque há uma relação desigual entre elas. O status literário alcançado pela obra primeira, dificilmente será sobreposto pela outra (obra atual), mesmo porque esta não é a sua pretensão. Portanto, há este obscurecimento sim, mas sem que isto some pontos negativos à realização da obra como arte literária. Por outro lado, é possível vermos que Dom Casmurro exerce também a função protetora sobre Capitu, memórias póstumas, já que empresta à obra sua luminescência que transparece de imediato no título. O mesmo cânone que obscurece a existência de Capitu, memórias póstumas por estar posto acima dele, é o que o ilumina quando se reconhece nele elementos do canonizado. As estrelas de Machado de Assis brilham para o seu “leitor atento”. No entanto, nestes tempos de novidades, é preciso estar muito mais atento, pois, repetindo o provérbio, “nem tudo que reluz é ouro”.
Se Capitu, memórias póstumas está à sombra de Dom Casmurro, esta posição já lhe garante uma relação de dependência e inferioridade, porém ela vem, apesar desta posição, modificar a paisagem em que se localiza Dom Casmurro na consciência do leitor (pelo menos) e este é o seu propósito maior: mostrar que é possível construir alegorias da leitura, refletir sobre a construção da narrativa e sobre o estilo machadiano, questionar, propor outras possibilidades sem sair do universo da obra de Machado de Assis, enfim, fazer a diferença dentro da semelhança.
Dom Casmurro é o texto sempre em flor, pronto para abrir-se ao leitor sob novos questionamentos, e é também o texto que protege o romance de Domício da possibilidade do fracasso editorial e, ao mesmo tempo, daquela luz resplandecente a que aspiram os textos que querem para si o antigo sentido de originalidade. O texto à sombra quer justamente questionar este sentido e para isto ele se faz paródia da obra de Machado de Assis, apresentando-se como uma “repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” [1], de modo a produzir uma saudável e instigante reflexão sobre a criação e a recriação; sobre o velho (que se renova) e o novo (que busca a permanência); sobre Capitu e Bentinho pensados e construídos por Machado e um século depois repensados por Domício Proença que ousou colocar-se à sombra do Bruxo do Cosme Velho.
Se “os mundos ficcionais são parasitas do mundo real” [2], conforme nos diz Umberto Eco, o romance metaficcional construído por Domício é parasita do mundo ficcional machadiano, inclusive para tornar possível a voz de Capitu no romance. Ou seja, o mundo referencial de Capitu, memórias póstumas é o mundo ficcional criado por Machado de Assis e, portanto, há o entrecruzamento das duas construções, uma dando respaldo existencial à outra do mesmo modo que o romance histórico tem feito em relação às construções apresentadas pela história. O modo apropriação não é novo, afinal. Porém, pede que o leitor seja um “leitor-modelo” [3] e aceite o jogo metaficcional da obra e conheça Dom Casmurro para não obscurecer nem iluminar demais, de modo a falsear, Capitu, memórias póstumas.
A análise que proponho focaliza o traço irônico da narradora (Capitu), que não ocupa o lugar de Bentinho, mas que se põe à sombra dele quando depende do seu discurso e da sua narrativa para produzir a dela, e que não deixa de sinalizar uma avaliação de natureza desmistificadora e por vezes até pejorativa de seu marido. Apesar de apontar como finalidade de seu texto “a afirmação do discurso da mulher” [4] e a demonstração da “injustiça, a esmagadora injustiça do seu (de Bentinho) libelo acusatório” [5], repetindo várias vezes que não pretende julgar seu “algoz”, Capitu vem mesmo é julgar o seu acusador através do discurso, revelando a sentença de modo irônico e, assim, confirmando seu caráter dissimulado. O mesmo recurso, a ironia, é usado por Domício que, tanto como sujeito ficcional da obra como autor empírico da paródia, direta e indiretamente avalia a produção de Machado com uma intenção desmistificadora. É a presença deste caráter irônico que revela o sentido paródico do romance.
A construção advocatícia está presente na obra de Machado, no entanto parece que no romance de Domício há uma didática muito maior nesta construção. A voz do “autor-modelo” (Umberto Eco) imita a voz de Machado e repete a estratégia narrativa usada ora em Dom Casmurro, ora em Memórias póstumas de Brás Cubas. Inclusive os excessos de caráter metodológico e didático que denunciam a presença do professor Domício Proença poderiam ser vistos como um dos pecados da obra, sob o argumento de que não dilui totalmente a presença do autor que se coloca à sombra do cânone. Entretanto, se analisarmos apenas os capítulos iniciais de Memórias póstumas de Brás Cubas, veremos que ali também o narrador se mostra explicativo em sua composição, em Dom Casmurro não é diferente, pois o narrador Bento Santiago explica até mesmo o porquê do título da obra. Portanto, não vejo razões para, neste sentido, criticar a construção da Capitu de Domício, ela segue o modelo de seu mundo referencial, a ficção de Machado de Assis.

[1] HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70. 1985. p. 17.
[2] ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 91.
[3] IDEM, p. 14
[4] PROENÇA FILHO, Domício. Capitu, memórias póstumas. Rio de Janeiro: Artium Editora. 1998. p. 13.
[5] IDEM, p. 13.