Verônica Daniel Kobs
Gelo seco. Névoa. Ruínas. Uma mulher (morta?). Sangue jorrando. Heróis impotentes.
É assim que Gerald Thomas e London Dry Opera Company apresentaram Gargólios. O espetáculo foi encenado na 21ª edição do Festival de Teatro de Curitiba, nos dias 1º e 2 de abril, no Guairinha. O texto reconstrói a peça Throats, para se adaptar a outra cultura e a outro tipo de público.
Work in progress.
Um divã. Vários “heróis”. Freud. Dramas pessoais. Uma mulher ensanguentada ao fundo. Estrondos. Toque de recolher. Cidade vazia.
A peça é uma cena-fragmento da tragédia norte-americana mundial de 11 de setembro de 2001. Novo século. O fim de uma era. A queda do símbolo do poder Ocidental. O fato de Nova Iorque ter sido o cenário do ataque terrorista nos diz muita coisa. Lá havia pessoas de todas as partes do mundo. Estávamos todos devidamente representados e experimentamos o horror da catástrofe, ainda que por amostragem.
Memória. Espetáculo-mosaico. Um estudo sociológico. Poder. Política. Religião. Comportamento humano. Sociedade contemporânea.
Várias línguas, com o predomínio do inglês, recriam o cosmopolitismo de Nova Iorque. No toque de um imenso sino invisível, a ambiguidade sinistra: o divino e o anúncio do fim dos tempos. Gerald Thomas é deus, padre e pastor... Além de autor e diretor, foi voluntário no resgate dos corpos das vítimas no episódio do World Trade Center e, no espetáculo, desenhou cenário, figurino, fez gravações em off, participou de pequenos diálogos com os atores e foi também espectador de sua própria história, no canto do palco, próximo à plateia, de onde também executava riffs de guitarra.
Um mordomo encharcado de sangue. Destruição. Heróis que não podem voar. Um parto na rua, em meio à multidão. Insensibilidade e pressa. Vinho: sangue de Cristo e dos homens.
Não existem mais super poderes. O inimigo do mundo é o próprio mundo. E a peça acaba em “festa”, para combinar com o paradoxo do mundo conectado à internet e desconectado de si mesmo. Boa comida invisível, sangue jorrando do teto, do corpo de um soldado abatido em combate, e vinho bem visível, transbordando nos copos, da boca dos personagens que golfavam sobre o palco... Vinho de boas safras, com datas de grandes guerras e revoluções do passado, do presente e do futuro. E Gerald Thomas, brincando de Deus, profetizou pequenos duelos constantes e grandes tragédias, no ano de 2030, ou 2032... 2025... Já não me lembro.
Incomunicabilidade. Ironia do nosso tempo. No lugar da fala, riffs de guitarra. Egoísmo. Indiferença. Impossibilidade. Nostalgia de outros (bons) tempos, em que sentíamos falta do futuro.
Só me lembro da sensação de peso sobre os ombros, durante toda a peça, de um horror prolongado, mesmo sabendo que a realidade tinha sido pior do que aquela encenação e de tudo o que eu já tinha vivido até aquele momento. Medo dos outros, medo da morte. Senti a morte (das grandes catástrofes, dos jornais, dos programas policiais) mais próxima, presente, de modo irremediável. A indiferença me ligava àqueles personagens desprezíveis, que representavam as pessoas desprezíveis da nossa vida real. Mesmo não querendo acreditar naquele retrato da sociedade contemporânea, eu não tinha como negar: É tudo verdade. Vivemos e morremos no fim dos tempos. “O mar não tá pra peixe.”
World in regress.
Imagens disponíveis em:
Assista à peça (em versão diferente daquela apresentada no Festival de Teatro de Curitiba) acessando o link: http://geraldthomas.net/h_gargolios.html
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