Eunice de Morais
O Esplendor (Álvaro de Campos, in: Poemas. Heterônimo de Fernando Pessoa)
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.
(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte),
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.
Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.
(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte),
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.
Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!
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A proposta desta discussão surgiu em meio a uma série de estudos que desenvolvi nos últimos anos, tendo como foco as relações entre a ficção e a história. O contato com o texto da pesquisadora espanhola Célia Fernández Prieto Historia y novela: poética de La novela histórica (2003) me fez voltar o olhar para alguns elementos que acompanham e complementam o texto para compor o que conhecemos hoje como livro. Estes elementos, denominados paratextos por Gérard Genette e “Franjas do texto” por Philippe Lejeune, seriam para Fernández Prieto fontes significativas para desvendar as diferenças e semelhanças, distanciamentos e aproximações entre o romance histórico romântico e o romance histórico pós-moderno. Um estudo mais aprofundado sobre os paratextos, em especial nas obras literárias, no entanto, pode nos levar a uma série de apontamentos a respeito de sua função e de seu caráter revelador diante das obras que anunciam e/ou enunciam. Será através deles, estas “letras e riscos irregulares” que entraremos a desvendar o mundo maravilhoso dos livros. Assim como nos diz o poema de Álvaro de Campos,, heterônimo de Fernando Pessoa, queremos descobrir o que há de sonho nas encadernações vetustas, nas assinaturas complicadas ou simples dos velhos (e dos novos) livros.
A definição de paratexto apresentada por Genette em seu Paratextos editoriais (2009 [1987]) nos remete a duas questões importantes, vejamos:
Um texto raramente se apresenta em estado nu, sem o reforço de e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não, como um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e prolongam exatamente para apresentá-lo. (Genette, 2009, p. 9).
A primeira questão nos leva a refletir sobre o passado e nos perguntar: isso sempre foi assim? O livro sempre foi livro tal como se apresenta hoje? Certamente que não. A história desse objeto, o livro, que se modifica em conformidade com a evolução tecnológica, econômica e cultural da humanidade segue acompanhada da história de sua recepção e da leitura. E me parece que essas histórias podem ser contadas através da observação dos paratextos. A segunda questão, essa que nos interessa mais especificamente nesta palestra, ao contrário, nos remete ao presente, pois a meu ver a importância e a quantidade destes elementos que reforçam e acompanham o texto ganharam força no sentido de definir e até de manipular o que quem e como se deve ler. Lembramos, segundo Genette, que:
Com efeito, essa franja, sempre carregando um comentário autoral, ou mais ou menos legitimada pelo autor, constitui entre o texto e o extratexto uma zona não apenas de transição, mas também de transação: lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público, a serviço, bem ou mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura mais pertinente – mais pertinente, entenda-se, aos olhos do autor e de seus aliados.
Assim, se Genette apresenta dúvidas sobre se devemos ou não considerar o paratexto como parte do texto, gostaria eu de discutir essa dúvida quando temos diante de nós um romance histórico, para limitarmos o corpus de observação, produzida ou reeditada nas últimas duas ou três décadas. Penso aqui em romances como os biográficos de Ana Miranda, Ângela Dutra de Meneses em O português que nos pariu, João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo Brasileiro, Doc Comparato, em A Guerra das imaginações, Domício Proença Filho, em Capitu, memórias póstumas,, José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta com o Terra Papagalli; penso ainda numa literatura infantil, em que a ilustração deve ser levada tão a sério quanto o texto literário, como temos em Chapeuzinho amarelo, de Chico Buarque ou o instigante e perturbador livro de Paulo Ventureli, Admirável ovo novo. Para que não nos estendamos muito, apresentamos a leitura de alguns elementos paratextuais presentes em três obras: O Ladrão de raios (2009 2 edição, [2005]), Livro um da coleção Percy Jackson e os Olimpianos, de Rick Riordan e Dias e Dias (2002), de Ana Miranda. Estes romances, marcados foram escolhidos justamente pela diferença que apresentam tanto no plano estético da composição literária (gênero) como no plano intencional proposto pelo estilo de cada produção. A análise dos mesmos nos dará uma boa dimensão do quanto é importante quando não é essencial, hoje mais do que nunca, a leitura destes elementos para a criação de um horizonte de expectativa do leitor em relação à obra, para o estabelecimento de um pacto entre autor-texto-leitor, bem como para a compreensão e interpretação da obra.
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