A presença do azul e de paisagens marinhas
na poesia de Sigrid Renaux* é uma obsessão em sua poesia, o que pode ser
observado nos títulos dos seus quatro livros: Do mar e de outras coisas
(1979), Azuis: poemas (2006), Outros azuis (2009) e De sons e
silêncios (2011). Entre eles, destacamos o segundo e o último, nos quais
observamos a permanência de uma mesma poética – provavelmente comum aos outros
livros – pautada na síntese imagética do haikai e na pintura impressionista.
Estas duas estéticas se aliam para dar forma às visões da natureza que o
sujeito lírico – bastante impessoal – contempla na tentativa de integrar-se ao
universo. Para isso fundamenta-se na crença romântico-simbolista na teoria das
correspondências de Emmanuel Swedenborg (1668-1772), a qual considera que a
linguagem poética pode nos aproximar da linguagem cifrada do cosmos (BALAKIAN,
1985).
A
Palavra é escrita de tal forma que tudo que nela se encerra, mesmo as coisas
mais diminutas, tem correspondência com as coisas celestiais; portanto, a
Palavra tem força Divina, e une
o céu à terra. (SWEDENBORG, Arcanos Celestes, nº 8615, apud TROBIDGE, 1998, p. 130).
o céu à terra. (SWEDENBORG, Arcanos Celestes, nº 8615, apud TROBIDGE, 1998, p. 130).
A crença nas
correspondências, que aparece de forma tímida na poesia de Kolody, encontra-se
claramente expressa no poema abaixo:
ondas
desenrolando
caracóis
de espuma
en
donde resuena la música del mundo
y
metros y rimas no son sino correspondencias
ecos,
de la harmonía universal (RENAUX, 2006, p. 141)
Os três versos em espanhol são retirados
da primeira página de “Poesia e poema”, introdução à obra O arco e a lira,
de Otávio Paz (1982, p. 15), e demonstram sua afinidade com o pensamento
romântico do poeta e crítico mexicano para quem a linguagem poética é
essencialmente mítica e, por isso, “recupera sua originalidade primitiva,
mutilada pela redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana” (PAZ, 1982, p.
25-26), assim possibilitando a experiência do sagrado como “uma experiência repulsiva.
Ou melhor: convulsiva. É um por para fora o interior e o secreto, um mostrar as
entranhas. O demoníaco, dizem todos os mitos, brota do centro da terra. É uma
revelação do oculto.” (PAZ, 1982, p. 168). E este oculto não é necessariamente
“a revelação de um objeto exterior a nós – deus, demônio, presença alheia –
quanto um abrir do coração ou das entranhas para que brote esse “Outro” oculto.
A revelação (...) transforma-se num abrir-se do homem para si mesmo.” (PAZ,
1982, p. 170).
na madrugada do
mar
acordo
ao som das ondas
recordando
harmonias
adormecidas (RENAUX, 2006, p. 29)
leitores
cegos
não
deciframos os signos nos livros
nem
ouvimos
insensíveis
por
quem os sinos dobram
calados
não
pronunciamos as palavras reveladoras
do
nosso mais profundo
ser (RENAUX, 2006, p. 114)
Reforça esta leitura em que a natureza é
vista como sagrada e capaz de nos religar com a imensidão cósmica a imagem dos
“caracóis de espuma” no primeiro poema acima, pois a forma helicoidal do
caracol, no mistério de sua perfeição arquitetônica, corresponde à perfeição do
universo também presente no movimento circular das ondas. E este movimento mítico
de eterno retorno organiza o livro Azuis, posto que as imagens da
imensidão azul – presentes no oceano e no céu – retornam incessantemente a cada
poema. Razão pela qual parece plausível afirmarmos que a autora busca
organizá-los segundo um ritmo cíclico e pulsante correspondente ao mesmo ritmo
que anima a natureza e o universo. Aliás, a escolha do azul, cuja vibração
transmite paz, estando a cor associada à espiritualidade, aponta para um desejo
de transcendência, de busca do sublime elevado, assim como vimos na poesia de
Helena Kolody. E assim como na poesia dela, a de Sigrid Renaux também apresenta
uma natureza harmoniosa, domesticada e sem conflitos. No lugar da natureza
selvagem, que encontramos na poesia de Marcele Aires, Sigrid Renaux valoriza os
jardins, pequenos ecossistemas que, em seus microcosmos, reproduzem sua
concepção de um universo harmônico e infinitamente belo.
Il faut cultiver notre
jardin
porque os sabiás
gorgeiam
ainda melodias infindas
nos jardins da manhã
para
que os pássaros continuem cantando
irreprimível e extasiadamente
nos
jardins do amanhã (RENAUX, 2006,
p. 82)
De sons e silêncios (2011) apresenta as mesmas características que Azuis,
embora, ao lado do azul, privilegie os pássaros com seus cantos. Seus poemas,
como diz o título, também são plenos de sons e silêncios conforme o desejo
simbolista de uma poesia que, em vez de nomear, sugere os sentidos ocultos e
inacessíveis ao pensamento racional e analítico. Daí o gosto pelo
impressionismo, seja o da pintura ou da música, na medida em que a luz e o
silêncio são, respectivamente, fundamentais para cada uma destas artes. Ainda:
a não numeração das páginas indica que todos os textos formam um só poema, o
que aumenta ainda mais o silêncio existente entre os versos e estrofes na
medida em que, além do espaçamento que os distancia entre si, o branco de cada
página amplia ainda mais o silêncio de sua sinfonia, plena de pausas e
sugestões como uma composição de Debussy.
adormecidas
entre
os sons e os silêncios
de
ébanos e marfins
elevam-se
íntimas e distantes
as brumas de Debussy (RENAUX, 2011,
[s.p.] – “Brouillards”)
manhã
de outono
silêncio súbito de pássaros
entre
os mistérios do castanheiro (RENAUX,
2011, [s.p.])
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar do voo rasante realizado sobre a
poesia de Sigrid Renaux, podemos apontar algumas considerações finais:
a) Não há uma preocupação ambientalista em
denunciar a destruição da natureza.
b) A natureza é elemento importante a para
o amadurecimento da espiritualidade.
c) É forte a presença de procedimentos
estéticos oriundos da tradição do haikai inaugurada por Bashô – e de valores de
uma visão de mundo romântica – perceptível especialmente na crença das
correspondências universais (segundo teoria de Emmanuel Swedenborg) nas obras
analisadas.
d) Satori e epifania são experiências que
se aproximam e são possíveis através da contemplação da natureza e a poesia é
um instrumento para compartilhar esse estado de espírito.
REFERÊNCIAS
BALAKIAN, A. Swedenborguismo e os
românticos. In: O simbolismo. Trad. de José Bonifácio A. Caldas. São Paulo:
Perspectiva, 1985, p. 17-28.
PAZ, O. O arco e a lira. Trad. de
Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
RENAUX, S. De sons e silêncios.
Ponta Grossa/PR: Todapalavra, 2011.
_______. Azuis. Poemas. Curitiba:
Ed. do Autor, 2006.
TROBIDGE, G. L. Swedenborg. Vida e
ensinamentos. Trad. de Raimundo Araujo Castro Neto. Rio de Janeiro: Sociedade
Religiosa “A Nova Jerusalém”, 1998. Disponível em: http://bvespirita.com/Emanuel%20Swedenborg%20-%20Vida%20e%20Ensinamentos%20(G.%20L.%20Trobridge).pdf - Último acesso:
08/7/2012.
* Com doutorado e pós-doutorado em literatura norte-americana e inglesa, Sigrid Renaux é carioca de nascimento, mas paranaense há muito anos. Aposentou-se como professora pela UFPR e atualmente leciona na Uniandrade, em Curitiba.
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