Otto
Leopoldo Winck*
Só existe transgressão
onde há lei. Numa sociedade cada vez mais anômica
(e anônima) as transgressões tendem a ocorrer cada vez mais apenas dentro
de comunidades relativamente fechadas, com rígidos códigos de conduta, entre as
quais se destacam, em suas múltiplas variantes, as religiões abraâmicas: judaísmo,
cristianismo e Islã. Entre os preceitos dessas religiões, há todo um espaço
especial para as regulações do corpo, com uma série de interdições e anátemas. Daí
o erotismo, que é a transgressão da sexualidade, quando ela extrapola as
funções meramente reprodutivas nas quais os mandamentos tentam amarrá-la. Disse
Georges Bataille: “O conhecimento do erotismo e da religião exige uma
experiência pessoal, igual e contraditória, da proibição e da transgressão.” E
se este erotismo é por acaso um homo-erotismo, a transgressão é dupla,
sobretudo quando ela se manifesta num contexto de rigor religioso. A abordagem
literária desses temas, o do encontro/confronto entre fé e (homo)erotismo, está
longe de ser nova, mas não são não poucos os perigos que nela se encontram.
O
gaúcho Rafael Ban Jacobsen, em seu mais recente romance, Uma leve simetria (Não editora, 2009, 224 páginas), não hesita
diante desse desafio. O livro trata do amor de dois adolescentes (outra
transgressão!): Daniel, o narrador-protagonista, e Pedro, dois membros de uma
pequena comunidade judaica numa metrópole não nominada. Daniel é um judeu
devoto, freqüentador assíduo das Escrituras e da sinagoga. Pedro, como o seu nome
cristão dá a entender, não partilha o mesmo entusiasmo, para desgosto de sua
mãe, uma das lideranças da comunidade. Fugindo aos estereótipos, a história
dessa paixão é narrada com uma delicadeza, uma finesse hoje rara na literatura brasileira, onde “transgressão”
muitas vezes é confundida com escatologia e brutalismo. Ao contrário, Uma leve simetria é escrita numa
linguagem sóbria, equilibrada, não raro poética, mas sem cair nesse gênero
pantanoso que é a “prosa poética”. Vejamos um exemplo colhido entre tantos:
Consumi
as horas restantes até o amanhecer em passos noctâmbulos pelas ruas fatigadas
do gueto. (...) A
claridade surgiu em rajadas imprecisas, amaciando a rigidez do ébano celeste
até, por fim, desmanchá-lo em manhã (p. 169).
Rafael logra escapar às
armadilhas desse empreendimento, fugindo de transformá-lo num libelo ou num
panfleto. Afinal, não se faz boa literatura com boas intenções, já dizia Gide.
Além disso, seus personagens não são tipos, mas pessoas complexas, “redondas”.
Por exemplo: ao final do “caso”, vemos Daniel à frente do conselho da sinagoga.
Isto é, ele não se torna nem um “convertido”, pois não renega jamais o seu
passado e sua condição, nem um “excomungado”, pois continua engajado em sua
comunidade, um dado que pertence tanto a sua constituição identitária quanto a
sua história com Pedro. Desse modo, o autor se esquiva de duas saídas demasiado
óbvias e fáceis.
Além disso, intercalado
no romance, uma outra história é contada, ou melhor, recontada: a história da
intensa amizade entre o Jovem Davi e Jonatã. Esta história bíblica, cheia de
subentendidos, é recriada também com delicadeza e primor, servindo de espelho e
contraponto ao drama vivido por Daniel e Pedro.
Todavia, se o entorno
temático é judaico, ou melhor,
mergulhado na atmosfera étnico-religiosa do judaísmo contemporâneo, com seus
ritos, sues costumes e seu jargão (inclusive no final há um glossário), a
estrutura da fabulação é grega, isto
é, exata e rigorosa como uma tragédia helênica. Podemos inclusive afirmar que a
história, dionisíaca, vem
contrabalançada não só por uma linguagem elegante mas por uma estrutura apolínea. E nesta simetria, neste tenso
equilíbrio entre interdição e pathos,
vertigem e rigor, Uma leve simetria
se revela como um ponto alto em nossa recente ficção narrativa.
* Otto Leopoldo Winck é doutor em Estudos literários
e autor do romance Jaboc. Professor
do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade -
UNIANDRADE, e do Curso de Letras da PUCPR, em Curitiba.
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