Edson
Ribeiro da Silva*
O homerólogo
Victor Berard escreveu certa vez que a Odisseia
tinha sido composta para as mulheres. Mas a Ilíada não, este poema seria para o público masculino.
Na odisseia, há uma espécie de alter-ego de Homero. No banquete no
palácio de Alcínoo, um cantor distrai os presentes. Ulisses pede a ele que
cante sobre a Guerra de Troia. O cantor é Demódoco, identificado como um cego
capaz de emocionar com os relatos que faz das façanhas dos grandes heróis. Homero
se identifica nesse poeta, é uma assinatura sua. (Desde que o aceitemos como a
tradição o representa.) A emoção também é uma marca do poeta épico. E a Odisseia é um exemplo disso.
Afinal, quem
leu a Ilíada estranha uma certa falta
de eventos épicos na Odisseia. A
própria natureza de algumas personagens mostra aquelas características que,
muito tempo depois, seriam chamadas de “românticas”. Nausícaa é a doce moça que
sonha com um casamento. Ela é gentil, prestativa, age como uma heroína de
novela antiga. Já a ninfa Calypso é apaixonada, ardente, capaz de colocar todos
os seus privilégios em condição menos prioritária que poder ter relações sexuais
com o herói. Uma típica vilã, dessas que se suicidam ou matam por amor. Falar
das personagens ligadas a Ulisses, então, é constatar aquelas características
marcantes nos heróis e adjuvantes românticos: a esposa é fiel e recatada, o
filho arrisca a vida para procurar o pai, o trabalhador é caridoso e confiável,
a ama-de-leite vê no senhor um filho. Personagens sensíveis, amorosas, fieis;
apenas tais qualidades as fazem empunhar armas para ajudar o herói. Sem essa
necessidade, estariam tranquilas em suas rotinas.
E a situação
tão esperada da luta e da vingança ocorre de forma rápida, basta um canto,
dentre os vinte-e-quatro que formam a obra, para que a grande ação épica se dê.
E a ajuda da deusa Atena ao tornar o herói invulnerável apressa uma luta que
poderia durar mais tempo, gerar mais conflitos. As demais ações épicas, as mais
conhecidas da obra, estavam no relato de Ulisses, quatro cantos em que ele se
mostra como homem superior, o mesmo capaz das grandes lutas travadas na Ilíada. Nos outros dezenove cantos,
predomina o afeto, ou sentimentos recorrentes no folhetim, como a humilhação do
homem superior, a identidade oculta daquele que pretende se vingar. Há
encontros emocionantes do filho com o pai que não via desde criança, da esposa
com o marido que ela supunha falecido, do herói com seu pai já idoso, ou com a
mãe morta, no Hades. Os heróis pobres ganham belas recompensas. E quase todos esses dezenove cantos se apoiam
em uma ação de teor afetivo. Reconhecimento precedido por longos suspenses. Por
saudades guardadas por anos, pela necessidade de conter a emoção quando se está
disfarçado. E pelos folhetinescos “ganchos”, que seguram a ação esperada para
que acabe no canto seguinte, como ocorre no encontro de Telêmaco com Ulisses,
ou quando pai e filho escondem as armas dos pretendentes. A Odisseia parece ter inventado a
estrutura do folhetim, da novela de televisão, milênios antes.
Seria quase a
mesma situação dos folhetinistas do século XIX, ao chamarem de “leitoras” o seu
público. A expectativa de que o público feminino quer se emocionar, sobretudo
diante de situações que envolvem o amor da mulher, ou os percalços passados por
familiares que se amam para que possam viver felizes. Talvez a Odisseia tenha sido composta para um
público assim, capaz de chorar como Ulisses ao ouvir os cantos de Demódoco. A
afetividade, na Odisseia, domina a
maioria dos cantos e das ações das personagens do bem. A personagem boa precisa
ser heroica mesmo em uma história de amor.
Seria exagero dizer que o público de Homero já
manifestava as características tão comuns ao grande público das narrativas nos
séculos XIX e XX? O velho chavão de que
homem gosta de filme de ação e mulher, de drama sentimental? Diferenças já tão marcantes nos dois poemas
homéricos.
*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário