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sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

“PAI CONTRA MÃE” E OS DILEMAS DA MODERNIDADE BRASILEIRA


                                                                                                                 Prof.ª Dr.ª Greicy Pinto Bellin*

Em “Pai contra mãe”, escrito em 1906, Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras e um dos mais importantes escritores brasileiros, retrata a difícil situação das classes desfavorecidas no século XIX, marcado pelo auge do imperialismo britânico e por seu principal efeito na economia brasileira oitocentista: a escravidão. A cessação do tráfico negreiro por pressões inglesas no ano de 1850, expressa na famosa lei Eusébio de Queirós, fez surgir uma verdadeira anomalia no mercado brasileiro de profissões destinadas ao que Maria Sylvia de Carvalho Franco, em estudo relevante publicado em 1969, chamou de “homens livres na ordem escravocrata”. Trata-se do capitão-do-mato urbano, que retirava seu sustento da captura de escravos fugidos em troca de gratificações que nem de longe conseguiam substituir um salário regular, dada a irregularidade e extrema flexibilidade da ocupação.
Cândido Neves, o protagonista de “Pai contra mãe”, tinha, na visão do narrador machadiano, um defeito grave: o caiporismo, denominação que emerge da mitologia popular indígena para qualificar o homem avesso às obrigações do trabalho ou, melhor dizendo, o “malandro”, conforme expresso por Antonio Candido em outro célebre ensaio, “Dialética da malandragem”. A narrativa machadiana torna claras as diferenças entre a ordem escravocrata brasileira, marcada pelo “jeitinho” e por demais arranjos que objetivavam liberar o homem das obrigações trabalhistas impostas pela hegemonia do capital britânico, e a sociedade norte-americana, que Candido percebia, não sem razão, como uma “sociedade moral” onde a religião protestante não admitia o relativismo ético. Apenas a sociedade brasileira poderia comportar a existência de um indivíduo como Cândido Neves ou Candinho, como é chamado no decorrer da narrativa. Tendo perdido o ofício de entalhador e se casado com a ingênua Clara, sofre a pressão de tia Mônica para arrumar um “trabalho certo”. O único que lhe apetece é o de caçador de escravos, que não o obriga a “ficar horas sentado” e lhe permite conversar horas na esquina até perceber a presença de sua vítima. Torna-se um óbvio ululante afirmar que Machado de Assis estava lançando mão desta representação para criticar o jeitinho brasileiro, bem como a falta de perspectivas de um homem ainda jovem e com força produtiva, mas que se vê impelido ao que Nicolau Sevcenko, em Literatura como Missão, chamou de “vagabundagem delituosa”, tendo em vista que a profissão de Cândido implicava em uma violência extrema contra os escravos. Tratava-se, por outro lado, de uma violência legitimada pelo poder senhorial, à qual Cândido recorre para afirmar um poder que não existe e que, ao fim e a cabo, apenas corrobora a sua inferioridade como homem branco e livre inserido em uma ordem escravocrata.
O problema maior aparece quando Cândido descobre que sua esposa está grávida, o que ocorre concomitantemente ao surgimento de “mãos mais fortes e ágeis” para realizar o seu trabalho. Em uma narrativa vertiginosamente cruel, que mistura o grotesco à desconstrução da idealização da pobreza, o narrador machadiano nos faz assistir cada passo da derrocada material de Cândido e sua família, desde o aparecimento do credor que ameaça o despejo até a constatação, por parte de tia Mônica, de que o filho do casal teria de ser entregue à Roda dos Enjeitados, instrumento criado com a finalidade de sanar os problemas de aborto e infanticídio decorrentes da promiscuidade sexual no Brasil do século XIX. O nascimento da criança em meio à penúria acaba por conduzir Cândido a entregar a criança, atitude para a qual ele vê possibilidade de salvação ao identificar, na Rua da Ajuda, a escrava fugida de nome Arminda, cuja captura lhe daria os cem mil-réis que resolveria, pelo menos temporariamente, a situação financeira lastimável de sua família. Um contundente paradoxo se instala quando Cândido, ao capturar a escrava, percebe que ela está grávida. Arminda tenta barganhar sua captura se oferecendo para ser escrava de Cândido, ao que ele obviamente nega, devido à necessidade premente pelo dinheiro. Ao lançar mão de sua condição de gestante para implorar a compaixão do caçador de escravos, Arminda escuta algo que poderia se aplicar ao próprio Cândido: “Quem lhe mandou fazer filhos e fugir depois?” (ASSIS, 2008, p. 638). O conto se encerra com a entrega da escrava a seu dono, acompanhado pelo pagamento da gratificação e pelo grotesco aborto no meio da rua, o que ratifica a existência de uma ordem social baseada no que o próprio Machado chamou de struggle for life, isto é, a luta pela sobrevivência, que implica na desgraça de uns para o regalo dos outros. Até porque, segundo as palavras do próprio Cândido Neves ao final da narrativa, “nem todas as crianças vingam – bateu-lhe o coração” (ASSIS, 2008, p. 638).
A ideia da modernidade econômica brasileira como simulacro, ou melhor dizendo, uma imitação dos padrões europeus é largamente aceita pela fortuna crítica machadiana, encontrando na expressão “ideias fora do lugar” a sua maior realização. No entanto, Roberto Schwarz, um dos desconstrutores da ideia segundo a qual a obra de Machado não possuiria qualquer relação com o social, simplifica o problema do simulacro apontando para um deslocamento das ideias europeias quando, na realidade, tais ideias simplesmente não eram adequadas a um contexto de independência recente, como era o caso do Brasil no século XIX, e a uma literatura que estava buscando sua própria identidade. “Pai contra mãe” nos dá mostras de que a modernidade brasileira engatinhava no ano de 1906, marcado pela euforia da reforma do engenheiro e prefeito Francisco Pereira Passos, pela Abolição da Escravatura e pela Proclamação da República, fatos estes que, pelo menos teoricamente, marcariam a entrada do Brasil na modernidade. Modernidade esta que, todavia, jamais poderia ser atingida com base na imitação de modelos culturais, literários e arquitetônicos franceses, e também com base na cópia do struggle for life britânico, que fazia com que homens como Cândido Neves, no auge de sua força de trabalho, permanecessem na eterna dependência de sistemas de dominação para garantir a sua própria sobrevivência.

Referências                                                                                                                                ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.                                      CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. Revista de Estudos Brasileiros, n. 8, 1970, São Paulo, p. 67-89.                                                                                                                                  FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres em uma ordem escravocrata. São Paulo: Editora UNESP, 1997.                                                                                                                          SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 2000.                          SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 
                                                                                                             *Professora do Curso de  
                                                                                     Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

WILLIAM BLAKE: O GÊNIO INTERMIDIÁTICO SETECENTISTA NO ROMANCE INDIANO DO SÉCULO XXI.¹


Mail Marques de Azevedo*

Pintor, desenhista e gravurista notável, William Blake (1757-1827) desenvolve em seu verso fulgurante o pensamento profético de um visionário. Artífice antes de poeta, − aos 15 anos o jovem Blake torna-se aprendiz do gravurista James Basire que lhe transmitiu o conhecimento completo de sua arte − é na associação da arte de engraving com a poesia que Blake vai encontrar o meio ideal para expressar sua genialidade. O desejo de gravar, ao invés de imprimir, texto e ilustração de seus poemas concretizou-se na invenção notável do que ele próprio denominou “impressão iluminada” (illuminated printing).
Observa-se na impressão iluminada de Blake a presença dos imperativos de immediacy e hypermediacy – exigidos mais enfaticamente pela cultura midiática de nossos dias. Nenhum evento midiático em si, afirmam Bolton e Grusin − na obra Remediation. Understanding New Media − parece desempenhar sua tarefa cultural isolado de outras mídias. Mais ainda, a remediação de mídias anteriores, que caracteriza a mídia digital de hoje, está presente nos últimos séculos da representação visual no ocidente. Blake constitui, de fato, referência quando se trata da associação entre literatura e pintura.  Em texto de 1787, uma fantasia em prosa intitulada pelos editores An Island in the Moon, quando de sua publicação em 1923, Blake prevê a possibilidade de produzir livros em que “toda a escrita seria gravada ao invés de impressa” com “uma figura de fino acabamento em folhas alternadas.”
Seguindo uma técnica especial de gravação em relevo em placa de cobre, contendo texto e ilustração, cada página do livro era impressa em monocromo e posteriormente colorida com aquarela por Blake e sua esposa, Catherine, ou impressa em cores. O resultado era “encadernado” por ambos em capas de papelão e vendido a preços ínfimos. Compreensivelmente, era reduzido o número de exemplares que chegavam ao público. Com exceção de The French Revolution, todas as obras escritas depois dos Poetical Sketches foram gravadas e “publicadas” dessa maneira. Blake mostra-se um criador pluridisciplinar – poeta e pintor, gravador, impressor e editor, o que o inscreve na tradição dos livros iluminados da Idade Média, com a diferença de que monta uma pequena unidade de produção mecânica inteiramente autônoma.

A arte intermidiática de William Blake
A busca de novos caminhos é intrínseca à paixão de Blake pela originalidade e à repulsa pela imitação. No capítulo XXIX da biografia do Pictor Ignotus, Alexander Gilchrist relata opiniões de Blake sobre poetas e pintores que considera como “escória” (dross): “Eu abomino imitar eu me ligo obstinadamente ao verdadeiro Estilo da Arte tal como Miguel Ângelo Rafael (...) o deixaram”. (...) Imaginação é o meu mundo este mundo de escória fica abaixo de minha atenção e abaixo da atenção do público.”
Na impressão iluminada do poema “The Sick Rose”, um dos mais conhecidos das Songs of Experience, a percepção simultânea de texto e imagem produz no receptor violento impacto provocado pela tradução imagética das oito linhas do texto.


Saltam aos olhos a agudeza agressiva dos espinhos e a voracidade da lagarta que devora as folhas. Os tons esmaecidos de violeta na representação da “alegria escarlate” (crimson joy) da rosa repetem-se nos estranhos seres, de incongruentes traços humanos, que causam a destruição da flor.
. Para obter o efeito de immediacy, Blake se vale de seus múltiplos talentos de poeta, pintor e gravurista, ou seja, de hypermediacy, a conjunção de diferentes mídias. Na conclusão de Bolter e Grusin, as lógicas aparentemente contraditórias de immediacy e hypermediacy são mutuamente dependentes. O efeito conjunto da reunião de mídias tanto hoje, quando se permite acompanhar ao vivo um voo de asa delta, como na apreciação de um poema-gravura de Blake, é o de mergulhar o espectador no contexto da experiência.

Blake-personagem no romance indiano do século XXI
Fatos da vida de Blake e traços de sua personalidade, a um tempo mística e intempestiva, são apropriados pela escritora indiana Rukmini Bhaya Nair que o transforma em personagem do romance Mad Girl’s Love Song (2013), em cujo enredo convive com Sylvia Plath e D.H. Lawrence. A narradora em primeira pessoa, uma jovem indiana esquizofrênica, que acredita ser capaz de voar em asas de vidro, invade a vida de Blake na forma de um anjo que o protege e inspira. Da consideração das obras de Blake introduzidas no romance, deduz-se o pensamento do artista sobre a liberdade física e espiritual do ser humano, que Bhaya Nair canaliza para colocar em evidência a negação desse direito aos povos colonizados.
Mad Girl’s Love Song cria um relacionamento de amor apaixonado em que a jovem indiana Parineeta se torna a musa de Blake, a heroína no coração de sua poesia. No capítulo intitulado “Tipu’s Tiger” Pari’s History Book, written in the Eighteenth Century, o leitor é levado para 1757, ano de nascimento de Blake, que marca também acontecimento momentoso para a Inglaterra colonial, com a conquista de Calcutá. “E lentamente as riquezas fabulosas das Índias caíram como ameixas maduras nas mãos da Companhia e da Coroa” (NAIR, 2013, p. 152). A lição de história é destinada a apresentar ao leitor a situação que assegurou que o poema “Tyger” se tornasse imortal, imortal até mesmo na Natureza.

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

Os versos encantatórios haveriam de hipnotizar crianças de pele escura nas escolas da Índia, em toda a largura e comprimento do país, séculos no futuro, enquanto milhares de tigres de verdade desapareciam anualmente ao som de tiros ouvidos nas florestas de Bengala (NAIR, 2013, p. 155).
O poema imortal é usado pela romancista para documentar o impacto da colonização inglesa sobre uma das civilizações mais antigas e diversificadas do mundo. Como diz Parineeta, a jovem narradora: “A tirania colonial não é material para riso!”
Diante da “feroz simetria” da imagem que criara, atribuem-se a Blake-personagem reflexões sobre a invencibilidade do tigre: “Ele me diz que está aqui porque quer. Ninguém conseguiria capturá-lo. Ele só veio me ver e amanhã vai embora, de volta a seu Reino.” Bem diferentes são outros reis, os Reis da Ásia, em Song of Los, que clamam amargurados e impotentes contra a fome que devasta a terra. Historicamente, logo depois do estabelecimento do “governo da lei e da liberdade” em Bengala “uma grande fome – não inteiramente natural – eliminou dez milhões de pessoas, ou seja, um terço daquela província edênica” (NAIR, 2013, p. 160).
Contra o trauma que sobrevive na psique do sujeito pós-colonial, Rukmini Bhaya Nair, declaradamente apaixonada pela literatura inglesa, utiliza-se de um de seus ídolos para veicular seu protesto.


Referências
BOLTER, J.D.; GRUSIN, R. Remediation. Understanding  New Media. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002.
MARKS, D. (Ed.)   William Blake Complete Works Ultimate Collection. Poems, Prose, Letters – circa 1803-1827. Pictor Ignotus. Life of William Blake. Alexander Gilchrist - 1863. William Blake. A Critical Essay. Algernon Charles Swinburne – 1868. Edição Kindle.
NAIR, R. B.  Mad Girl’s Love Song. Noida, Uttar Pradesh: Harper Collins, 2013. 
_________________________
¹ Excerto da comunicação apresentada no Colóquio Internacional Escrita, som, imagem e VI Jornada intermídia, na UFMG. Maio de 2017. 

    *Professora do Curso de  
                                                                                     Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Coisas que as capas e as orelhas dos livros (não) dizem


                                                                                                             Prof.ª Drª Adriana Baggio*
                                                           
Dizem por aí que não se deve julgar um livro pela capa. É uma metáfora usada especialmente para alertar que não devemos avaliar as pessoas pelas aparências. Afinal – e aí vem outro dito popular –, as aparências enganam.
É verdade que as pessoas são muito mais do que a informação que colhemos delas quando temos acesso apenas à sua aparência. E quando precisamos avaliar rápido, adotamos procedimentos que economizam tempo. É por isso que julgamos conforme nossas experiências anteriores, nossos preconceitos, nossas normatizações culturais. Podemos acertar ou errar; mas, principalmente, devemos aprender com o resultado de cada "avaliação", especialmente para evitar a repetição de deduções que resultaram decisões injustas.
A semiótica discursiva é uma das teorias que estuda os processos de significação – ou seja, que investiga como o ser humano dá sentido à sua vida e ao mundo. E a semiótica considera a aparência como um material bastante válido para o entendimento das coisas. Pode-se argumentar que uma pessoa que disfarça sua aparência está escondendo a verdade. Será mesmo? Se vou a uma festa à fantasia e me disfarço, o personagem que escolhi como disfarce – "Mulher Maravilha ou Mulher Gato?" – pode dizer bastante sobre mim.
Ainda que em sua indiscutível imperfeição (GREIMAS, 2002), é pelo "parecer" que temos alguma aproximação com o "ser" de alguém ou de algo. Mais precisamente, são os procedimentos de construção do parecer diante dos nossos olhos que nos permitem chegar a entender um pouco sobre as mensagens que a pessoa ou objeto, querendo ou não, comunicam ao mundo.
As escolhas para composição do parecer são feitas mediante dois procedimentos: tendo em mente aquilo que desejamos ou não comunicar aos outros e utilizando, para isso, os elementos e conceitos disponíveis em nosso repertório cultural. Podemos nunca saber a intenção de alguém, mas podemos "ler" as mensagens que se revelam nas escolhas de palavras, de cores e de formas.
Dito desta forma, talvez possamos sim julgar um livro pela capa. E, neste caso, estou abordando o sentido literal do ditado popular. Afinal, quando nos aproximamos de uma publicação em uma livraria, sem conhecimento prévio do autor ou da obra, é a capa que terá a função de transmitir aquilo que autor e editor acreditam que nos fará escolher aquele livro.
Algum tempo atrás, uma livraria de Curitiba realizou uma ação de troca de agasalhos por livros. Entreguei minha doação e tive direito de escolher alguns títulos. Olhando a capa, lendo orelhas e sumários, folheando algumas páginas, defini os que levaria comigo. Mostrei-os à pessoa responsável por autorizar a troca e ela disse: "pelas escolhas que fez, acho que você iria gostar deste aqui".
Ela apontava para um volume com capa em tons marrons, com a fotografia de um bibelô em forma de lebre sobre uma superfície de madeira; este bibelô e o título do livro eram emoldurados por algumas linhas que simulavam terem sido desenhadas à mão; elas sobrepunham-se à foto e contrastavam com a textura lisa e brilhante por seu estilo mais irregular. Abaixo da moldura, na parte inferior da capa, vinha a citação de uma recomendação positiva de um jornal.
Tinha visto este livro e já o havia deixado de lado. A capa não tinha me agradado. A moldura sobre a fotografia me pareceu uma tentativa forçada de conferir algum caráter de mistério ou enigma, como se quisessem atrair leitores que se interessam por isso, mas sem que isso efetivamente consistisse em um aspecto essencial da obra.
À implicância com os elementos visuais juntou-se aquela dirigida à citação da resenha do jornal. É uma idiossincrasia, mas sempre penso que uma boa obra não precisa ficar dizendo que foi elogiada aqui e ali. A implicância transformou-se em decidida rejeição quando vi que não só a quarta capa trazia mais trechos de resenhas hiperbólicas, como elas também enchiam duas das primeiras páginas do livro!
Passei as páginas de citações e, mesmo assim, não encontrei a ficha catalográfica; ela fora jogada para o final do livro. Em seu lugar, ou seja, logo no início, haviam colocado uma frase-teaser, talvez pensando que isso continuaria mantendo o interesse de quem chegasse até ali.
Juntando todos esses elementos, tive a impressão de que a obra se esforçava demais para passar uma ideia que não emergia naturalmente das construções paratextuais e da capa. Ela tentava desesperadamente agradar, mas a mim essa tentativa causou irritação. Me senti subestimada como leitora. Li os resumos das "orelhas" e da quarta capa, mas não conseguiram me tocar. Os outros recursos haviam me deixado desconfiada. Foi por achar que estava sendo enganada é que deixei este livro de lado.
Não fosse a recomendação da moça da livraria, minha atitude teria sido, literalmente: "esse eu não quero nem de graça". Mas, ao contrário do que acontecia com a obra, a indicação pessoal me pareceu confiável. Como eu disse, ela sugeriu depois de ver os outros títulos que eu havia pego. E assim, levei-o comigo.
Talvez para verificar quem estava com a razão – ela ou eu –, não demorei muito para iniciar a leitura. E, no fim das contas, "A lebre com olhos de âmbar", de Edmund de Waal (Intrínseca, 2011), traduzido por Alexandre Barbosa de Souza, é um livro interessantíssimo! De Waal, um importante ceramista britânico, traça a história de sua família desde o século XIX, em Odessa, até os dias atuais, tendo como "fio" condutor um pequeno objeto: a lebre que ilustra a capa e dá título à obra. Esta pequeníssima escultura japonesa, chamada netsuquê, faz parte de uma coleção de mais de 200 peças que, miraculosamente, sobreviveu a viagens pela Europa, Estados Unidos e Japão, a duas guerras mundiais e à dilapidação e ao confisco dos bens de famílias judias na Áustria em 1938.
"A lebre com olhos de âmbar" é um belíssimo trabalho historiográfico realizado por um não-historiador, que comparou documentos pessoais de sua família a fontes de arquivos públicos e jornais de diversos países. A obra traz muito mais que a trajetória de uma família, na medida em que, por meio dos efeitos das migrações, das perseguições e das guerras nessa família, podemos entender melhor a própria História.
Quanto à avaliação do livro pela capa, acho que tinha razão: o livro tenta parecer o que não é. Ele tenta parecer superficial quando, na verdade, é bastante profundo. Mas a moça da livraria tinha igualmente razão: a partir dos livros que eu escolhera, parecia que eu gostaria deste.
Não só gostei como, ao falar dele neste texto, realizo a profecia expressa na frase-teaser da primeira página do livro: "tire um objeto do bolso e o coloque diante de si. Você começa a contar uma história."

Referência:
GREIMAS, A. J. Da imperfeição. Prefácio e tradução de Ana Claudia de Oliveira; apresentação de Paolo Fabri, Raúl Dorra e Eric Landowski. São Paulo: Hacker Editores, 2002.

                        Capa do livro "A lebre com olhos de âmbar", de Edmund de Waal (Intrínseca, 2011).Fonte da imagem: 
                        Editora Intrínseca.Disponível em: <http:// www.intrinseca.com.br/livro/183/>. Acesso em: 23 out. 2017.



*Professora do Curso de  
                                                                                     Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE




segunda-feira, 13 de novembro de 2017

NU DESDE O NADA: O PERIGO DA NUDEZ COMO POSSIBILIDADE ESTÉTICA



Prof. Dr. Edson Ribeiro*

                                                             Victor Meirelles, Moema, óleo sobre tela, cerca de 1866. 
                                                                                            Museu de Arte de São Paulo, São Paulo


Quando Victor Meirelles pintou Moema, em 1866, o nu nas artes plásticas era uma prática corriqueira havia séculos. Milênios até. Talvez o nicho que reconhecesse a arte fosse bastante estreito para que uma tela representando uma cena de clássico da literatura brasileira pudesse causar escândalo. Pelo menos, ali entre os iniciados. Pois foi uma reprodução dessa tela que ilustrou uma reportagem de O Globo, em 17 de outubro, acerca da exposição “Histórias da sexualidade”, a ser realizada no Masp. A intenção, agora, era que um nu feito há cerca de 150 anos incomodasse. Ou que, pelo menos, parecesse ambíguo àquele público que não sabe ainda diferenciar o nu da pornografia comercial.
Trata-se, sem dúvida, de um retrocesso na cultura do país colocar em discussão questões que pareciam devidamente esclarecidas havia muito tempo. Afinal, que leitor pensaria em proibir obras como Lolita ou Dona Flor e seus dois maridos baseado na existência de cenas de sexo? Certamente, o leitor que não lê, apenas ouve falar. Outra vez, a arte respira com a existência de um nicho que compreende obras devidamente conhecidas, já antigas. E sofre com o desconhecimento, por parte de uma parte da população, da existência de obras de arte como aquelas. A invasão do senso comum nas mídias em que essa parte da população pode se manifestar faz com que os valores que dão origem à obra de arte fiquem distorcidos. Outra vez, ouve-se que arte plástica é para decorar e a ficção, em todas as suas formas, para entreter. O senso comum acredita que a regra tenha sido exatamente a assimilação de valores não-estéticos, ou seja, da moralidade convencional, com seu atrelado gosto pelo belo sensível como clichê, e não a experimentação formal e o questionamento dessa mesma convencionalidade.
Parece estranho, agora, que uma exposição que traga ao Brasil artistas como Ingres ou Renoir tenha que passar pelo crivo do impedimento do acesso de jovens e crianças. É como supor que aqueles mesmos pintores, nas suas juventudes, não tivessem tido acesso aos grandes museus europeus. Não tivessem visto obras de arte de verdade, de artistas fundamentais. Não tivessem podido reconhecer o nu como prática artística recorrente desde a Antiguidade em povos de culturas díspares e diversos níveis de desenvolvimento.
Milhares de anos depois de artistas antigos, como Miron e Praxíteles, terem esculpido nus famosos até agora, ou de outros terem pintado paredes de palácios e templos com faunos e outras criaturas em sua nudez inocente ou provocadora, aparece agora uma horda de pessoas que desconhecem a arte como tal. Querem impor aquilo que reconhecem na sua completa desinformação. Como aceitar que um nu como O escravo agonizante, de Michelangelo, não seja uma obra de arte, mas batatas ou melancias entalhadas, representando os mesmos temas de bibelôs kitsch, o sejam? Ou como aceitar que a obra de Michelangelo, que representa o exato momento da morte de um escravo, provavelmente atingido por arma, seja entendida como mau exemplo para os jovens? Ou que um escultor em desenvolvimento, jovem ou criança, não possa vê-la ao vivo?

Michelangelo Buonaroti, O escravo agonizante, mármore, cerca de 1513-1515. 
Museu do Louvre, Paris.

Em Moema e O escravo agonizante, existe a narrativa. Há fatos ocorrendo e cada obra representa um momento deles. É comum que se use o fato como forma de se contextualizar o nu em uma cena, talvez de uma obra mais extensa, como peças ou epopeias, como se, apenas assim, a nudez pudesse encontrar uma justificativa. Ou seja, algo que desse a ela uma clara justificativa que não fosse uma cena de sexo. Tal pretexto, evidentemente, já apontava para um certo tipo de preconceito, aquele que precisa ver na imagem nua uma justificativa que a afaste da realização do sexo. O fato de que o nu por si mesmo, como possibilidade estética, seja colocado sob a dependência de uma cena, quase sempre reconhecível pelo público, significa um nível pobre de compreensão da arte e do que significa o belo artístico. O belo como conceito, como produto do intelecto, algo que suplanta o puramente sensível e se realiza como coisa mental, como dizia Leonardo da Vinci, é algo que não chega a uma população ausente dos contextos de produção e recepção de obras de arte. Essa visão empobrecedora coloca a arte sob a dependência de fatores extra-artísticos, como os valores moral, histórico, civil, religioso daquilo que a obra representa, para que ela seja avaliada como boa ou ruim, passível de ser vista ou não por todas as idades. O desentendido só é capaz de ver a coisa representada, só enxerga a mímesis como cópia.
Quando se está diante de uma nudez anódina, ou seja, que não representa uma cena, mas vale como beleza em si própria, é mais frequente que ela seja vista como mau exemplo. O caso talvez mais notório é o de Olympia, de Édouard Manet, em que a modelo posa para a pintura. Não há como reduzir a pose da modelo nem o contexto que a cerca a uma cena. Pelo menos, não a uma cena de sexo. No entanto, os relatos sobre a primeira exposição da obra indicam que parte do público procurava na imagem uma narrativa. Assim, surgiam as hipóteses que atrelavam a modelo à vida de cortesã: ela estaria nua expondo-se a um provável amante, recebe flores dele. O fato de o público atrelar a imagem a sexo a coloca em uma condição de questionável; a obra estaria justificando os ataques a bengaladas feitos a ela. Era como se fosse inquestionável que, falando sobre sexo, ela justificasse os ataques. Para a época, seria mau exemplo não apenas para jovens, mas para a população que assimilava e adotava os valores morais convencionais. Algo de que, historicamente, a arte tantas vezes se desatrela.


Édouard Manet, Olympia, óleo sobre tela, cerca de 1863. 
Museu d’Orsay, Paris.


Quando se adentra o anódino, sejam o clássico ou o da vanguarda, a nudez torna-se tema único de certas obras. Já não se precisa da representação de uma cena. Basta que se pense em Náiade, de Antonio Canova, esculpida por volta de 1820. A beleza vale por si. E quando se fala em beleza, não é apenas a da coisa representada que se fala, mas sobretudo a da representação. Canova, como um neoclássico, buscava o equilíbrio também procurado por gregos e renascentistas. O nu, no caso, vale como beleza da coisa e da obra. Belo sensível, sim, mas sobretudo intelectivo. E, também por isso, merece que o público o veja como grande obra. Tratava-se, naquele momento, exatamente dos ideais da arte burguesa, voltada para um público que se considerava de bom gosto; por isso, era reconhecida por aquelas parcelas da população que teriam acesso a obras assim apenas em espaços coletivos, como praças e museus, mesmo que o nu as desconcertasse. Tal parcela da população se excluiria do universo dessa obra, mas não a excluiria dele; não faria julgamentos de valor, mas apenas os seus rudes julgamentos de gosto de desinformado. O perigo, agora, talvez resida na possibilidade de julgamento de valor por quem não sabe do que se trata.



                                   Antonio Canova, Náiade, mármore, cerca de 1820. 
                                                          National Gallery of Art, Washington.


Antonio Canova, Psyché reanimada por um beijo de Cupido, mármore, 
cerca de 1786-1793. Museu do Louvre, Paris.


Na representação de Canova de uma cena tantas vezes narrada em clássicos de inspiração na mitologia greco-romana, Psyché reanimada por um beijo de Cupido, do final do século XVIII, a sensualidade é motivo para o virtuosismo do escultor, percebida na representação dos toques entre os corpos. Trata-se de uma cena. Há uma narrativa, inclusive conhecida por pertencer à mitologia greco-romana. Essa condição de pertencer à cultura ocidental elevada, de penetrar em segmentos mais bem-informados, faz com que a obra, mesmo representando uma cena de sexo, seja assimilada pela moralidade convencional. Mesmo que seja apreciada apenas por iniciados, o reconhecimento faz da obra um bem cultural. Tradicionalmente, não é algo que seja escondido de jovens e crianças. A cena não é vista como um mau exemplo a ser censurado em museus. Não necessita de tarjas ou tapumes.
Da mesma forma, O sono, de Gustave Courbet, representa uma cena que pode ser considerada sensual. No entanto, trata-se de obra reconhecida. Não é vista como pornográfica. Nem como atentado ao pudor, pelo fato de o público saber que o acesso a ela é facultado a quem por ela se interessa. O público acostumado à arte, seja a literatura, a pintura, a escultura, o cinema, sabe que a pornografia é uma forma comercial, kitsch, de utilização do sexo como pretexto para vendas de produtos. Mesmo havendo representação de sexo, ou sugestão, não se vê a obra de Courbet como produto comercial, para vendas. Ao contrário, foi preciso esperar pelo reconhecimento para que a obra se tornasse importante comercialmente. Assim, o fato de não pertencer ao âmbito da pornografia faz a obra integrar-se a um nicho que, historicamente, reconhece as obras audaciosas e as torna bens culturais que são motivos de visitação pelo público. 


Gustave Courbet, O sono, óleo sobre tela, cerca de 1866. 
Museu d’Orsay, Paris.

No entanto, a situação se torna assustadora porque é possível prever-se o atentado contra obras que representam o nu e o sexo, em um futuro já pressentido agora em 2017. Não se trata mais de ver a arte como algo restrito a quem entende, a quem procura. Dessa forma, estando protegida daqueles segmentos que apenas a ignoram. A posição irônica do desentendido, ao dizer que ele mesmo pintaria um Pollock, protegia a arte e garantia sua intocabilidade. A possibilidade de ataques a obras reconhecidas fica cada vez mais evidente. Torna-se um retrocesso em uma atitude que já era um sintoma de desconhecimento. A direção agora é no sentido da barbárie, da preocupação com a segurança de obras de arte.
O fato de o conceito de arte, assim como o de beleza, não estarem formados na sociedade brasileira passa pelo fracasso do ensino de artes, mas também, evidentemente, pelo desinteresse que leva à desinformação. O mesmo público que não sabe que existe um romance chamado Ulisses e que, provavelmente, o rasgaria, defendendo quem o proibiu há quase 100 anos, caso viesse a conhecê-lo, fica escandalizado ao descobrir que a arte não era o que ele imaginava, não se refere a batatas ou melancias, nem ao bibelô que se compra em aeroporto, mas a algo complexo e que, por não se poder entendê-lo, opta-se por sua exclusão ou destruição. Em 1996, quando a Folha de S. Paulo fez um caderno especial reunindo 15 poetas brasileiros modernos escrevendo sobre vagina, muitos leitores cancelaram a assinatura do jornal. Não interessa quem são Arnaldo Antunes ou Glauco Mattoso; aquilo é indecente, merece ser rasgado. Para estes, mesmo o tema já é motivo para atitudes de exclusão, talvez de violência. O que faz com que a própria sugestão, a imagem mentalizada, ou a palavra por si mesma já revoltem esse público desinformado. Ou mal formado: vê em todas as representações da nudez ou do sexo os tabus relacionados à libido. Um perigo para a própria literatura em pleno ano de 2017. Perigo para Lawrence, para Nabokov, para Jelinek.
A desvantagem da arte plástica em relação à literatura é que ela se expõe como visível de imediato. É arte do espaço. A literatura ainda respira com a possibilidade de estar oculta às multidões e se manifestar apenas ao leitor. A arte plástica acaba, seja por uma mídia ou outra, mostrando suas reproduções, que irritam aquela parcela desinformada e cada vez menos familiarizada com o que a civilização ocidental veio construindo e que considera como já pronto, como é o caso da condição do nu como possibilidade de realização estética. E, de uma forma ou de outra, aquela parcela antes indiferente torna-se agressiva e empoderada graças ao senso comum compartilhado nas mídias.
Para elas, Lucian Freud pinta. O neto do principal teórico dos tabus relacionados à nudez e ao sexo produz seus nus como forma de provocação ao senso comum. Trata-se daquela beleza como produto do intelecto e que torna a arte algo tão distante da assimilação de regras.


Lucian Freud, Benefits Supervisor Sleeping, óleo sobre tela, cerca de 1995. 
Coleção particular.



*Professor do Curso de  
                                                                                     Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE


segunda-feira, 16 de outubro de 2017

A NOVA VERSÃO DA MULHER-MARAVILHA



Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*

O primeiro semestre foi marcado pela estreia do filme Mulher-maravilha (EUA, 2017), de Patty Jenkins, com Gal Gadot e Chris Pine nos papéis principais. O longa, nos Estados Unidos, no fim de semana de 23 a 25 de junho, conquistou o 3o lugar no ranking, tendo arrecadado $ 25,175, o quíntuplo do valor obtido por A múmia, no mesmo período (OMELETE, 2017). De fato, a nova história da heroína amazona, personagem criada em 1941, por William M. Marston, surpreende tanto pela produção quanto pelos temas que compõem o enredo. A história cinematográfica de Diana Prince e Steve Trevor tem início na ilha de Temiscira, para explicar a infância de Diana, sua missão contra o deus Ares e para mostrar o encontro do casal protagonista. São muitos os pontos comuns entre o filme e a HQ. É evidente que a personagem, tendo sido criada durante a Segunda Guerra, é inserida em outro cenário bélico, anterior àquele que lhe originou. Apesar disso, sua função e seu perfil mantêm-se coerentes com a história da personagem. Outro ponto bastante respeitado na versão cinematográfica refere-se à chegada de Steve na ilha das amazonas, a exemplo do que ocorreu na HQ.
As qualidades do longa vão aparecendo, à medida em que a história se desenrola. Nas cenas de luta, o ritmo, os close-ups e o enquadramento têm grande importância, pois mostram a coreografia da batalha em detalhes, além de a ação ser desacelerada em alguns momentos, enfatizando ainda mais o tom descritivo. No enquadramento, verifica-se a tentativa de aproximar as cenas do filme às da HQ, já que, nessa mídia específica, o modo de enquadrar ações e personagens equivale às noções de perspectiva e proximidade provocadas pelo uso da câmera, no cinema. A principal vilã, Doutora Veneno, arquiinimiga da Mulher-maravilha, também não é inventada; ela é resgatada da HQ e adaptada para a grande tela. Porém, a diretora não faz referências apenas ao mundo da heroína do universo DC. Seus companheiros e também a formação da Liga da Justiça integram a história, dando espaço à intratextualidade, no que se refere às produções da DC, tanto nas HQs como nos filmes lançados pela marca, nos dois últimos anos, com ênfase especial ao longa Batman vs. Superman (EUA, 2016). Aliás, ressalte-se que, em 2014, a DC iniciou, no Brasil e nos EUA, um projeto massivo de retomada de marca, intitulado DC Universe Rebirth. Entre as ações previstas para o resgate de histórias e personagens, estão os lançamentos: de Batman vs. Superman, Esquadrão suicida e Mulher-maravilha, nos cinemas; e de Supergirl, Arrow, Flash, Legends of tomorrow e Gotham, na TV, sendo que todas as séries são exibidas no Brasil, pela Warner.
Em se tratando da evolução da personagem Mulher-maravilha, ao longo das décadas, pode-se afirmar que o filme tenta corresponder às diversas fases da heroína. O primeiro exemplo disso é o figurino de batalha. Depois de ter deixado a terra das amazonas, Diana usa uma saia muito curta, contrariando o short justo e cavado que eternizou a personagem de Lynda Carter e homenageando o desenho original, tal como mostra a Figura 1, na qual a super-heroína aparece com uma saia mais longa. Da fase de 1970, quando Diana perde seus poderes, na HQ, a protagonista do filme mantém o perfil filosófico, pois, no longa, ela reflete bastante sobre o mundo dos homens, a vulnerabilidade e a oposição do bem contra o mal. Em 1980, a personagem passou por alteração significativa, na parte física, na HQ. Em conformidade com o culto ao corpo, Diana ganhou um perfil mais musculoso. Esse critério com certeza foi determinante para a escolha de Gal Gadot como atriz principal do filme. Já no século XXI, a heroína inovou no figurino e ganhou uma armadura, para combinar com o escudo e a espada, acessórios que foram inseridos em 1980, mais de 40 anos depois dos originais (o laço da verdade e os braceletes). Esse detalhe foi levado em conta pela produção do filme.
Por fim, chegamos à característica mais importante do filme, a qual justifica o “renascimento” da Mulher-maravilha, em pleno século XXI. Trata-se do empoderamento, assunto atual e que orienta toda a trajetória de Diana, que passa por vários estágios, respectivamente: “power within”, “power over” e “power to” (MOSEDALE, 2016), demonstrando que “empowerment is an ongoing process rather than a product” (MOSEDALE, 2016). Por meio de autoconfiança e autoestima, a personagem se sobrepõe à vontade da mãe, de Steve e dos demais companheiros, para assumir o comando de seu destino e da guerra, ajudando a salvar muitas vidas. “People are empowered, or disempowered, relative to others or, importantly, relative to themselves at a previous time” (MOSEDALE, 2016). Dessa forma, a personagem faz com que as mudanças individuais tenham um efeito coletivo. Com relação a esse tema, é evidente que a origem de Diana já diz muito. Filha de Hipólita e sobrinha de Antíope, ela cresceu na ilha das amazonas. Essa condição pode ser facilmente associada ao empoderamento feminino. Com base em Bachofen, Junito Brandão menciona o amazonismo como a “segunda etapa da ginecocracia”, definida como “o poder” ou “o governo da mulher” (BRANDÃO, 2000, v. II, p. 231). Em razão disso, conforme o mito, acreditava-se que as amazonas “mutilavam o seio direito para que pudessem manejar com mais destreza o arco” (BRANDÃO, 2000, v. II, p. 231). Os objetivos eram bem claros: “[...] combater como um homem em sua luta com o masculino pela independência” e “fortalecer a Grande deusa da matrilinhagem” (BRANDÃO, 2000, v. II, p. 232).
A partir desses pressupostos, percebe-se que o empoderamento feminino é representado, no filme, em dois momentos principais: no início, quando Steve descobre ser o único homem entre as amazonas da ilha; e em Londres, quando Diana é subestimada pelos homens, nas ruas, nos pubs, nos conselhos militares e depois, na frente de batalha. Em uma cena, Steve diz a Diana que não acredita existir um homem capaz de derrotar Ares, o deus da guerra, ao que ela responde: “Eu sou o homem que pode” (MULHER-MARAVILHA, 2017). Esse comportamento de Diana surge também em outros momentos da história, como na sequência em que ela tenta escolher uma roupa mais adequada à tradicional e austera sociedade europeia. Observando os modelos disponíveis, Diana se surpreende com a saia justa e com o espartilho, perguntando: “O que as mulheres usam nas batalhas?” (MULHER-MARAVILHA, 2017). Com essa fala, chegamos ao ápice da representação do empoderamento feminino, no longa: a atuação de Diana no campo de batalha. Conforme observado anteriormente, a adaptação fílmica usou como pano de fundo a Primeira Guerra Mundial, em vez da Segunda. Porém, a alteração não impediu que a diretora tentasse representar a realidade das mulheres na Segunda Guerra, em uma homenagem dupla: à importância das mulheres, nesse período fundamental da história mundial, e à origem da personagem, criada em 1941, em meio ao conflito bélico.


Figura 1: Cena do filme que mostra Diana, em plena guerra, com Steve e o resto  do grupoimagem disponível em: <http://www.planocritico.com>

A cena acima representa a participação ativa das mulheres, na Segunda Guerra Mundial, quando trabalharam “em setores auxiliares, de serviços públicos; como mecânicas, operárias e até mesmo em construções de navios e aviões” (MELLO, 2012). Inclusive, as russas chegaram a servir o exército: “[...] mais de oitocentas mil russas serviam nos exércitos de Stalin. […]. Algumas mulheres serviram como atiradoras […] e, em 1943, um grande número delas concluiu cursos como atiradoras de elite” (HASTINGS, 2012, p. 373). Cite-se, ainda, o depoimento de um membro do exército vermelho russo, o comandante Vasily Grossman, que assim resumiu a Hastings o papel da mulher em tempos de guerra:


                                                  Elas dirigem tratores, cuidam de armazéns, entram em filas para beber vodca. Moças 
                                                  um pouco bêbadas cantam lá fora - despedem-se de uma amiga que servira o 
                                                  exército. As mulheres carregam nos ombros o grande fardo do trabalho. Asmulheres                                                                                dominam. Agora, elas nos alimentam e nos amam. 
                                                  Nós combatemos. E não combatemos bem.(HASTINGS, 2012, p. 374)


A citação encaixa-se perfeitamente no perfil da personagem, no filme. Diana vai à guerra e obriga que os homens lutem e avancem na batalha, conquistando algo que eles esperavam há meses. Vale lembrar que, no final da década de 1970, o Brasil teve sua versão própria da heroína, chamada de Maria Maravilha. A personagem era representada pela atriz Betty Faria, no programa Brasil pandeiro, veiculado na Globo, em 1978. Maria Maravilhava era uma resposta à onda feminista da época. Ela não chegou a lutar em plena guerra, porque o contexto nem permitia isso, mas ela enfrentava filas imensas, sob o sol escaldante e se equilibrando e no salto de sua bota dourada, para sobreviver e garantir o sustento da família.
            De 1941 a 2017, as transformações foram muitas, sempre com o propósito de atender ao contexto e às exigências do público, que abrange várias gerações. Esse vasto período e a legião de fãs que a personagem conquistou, em mais de 70 anos, revelam um dado importante: a permanência da super-heroína, que se reinventa e ressurge, de tempos em tempos. Vida longa à Mulher-maravilha.

REFERÊNCIAS:BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vols. I e II. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.HASTINGS, M. Inferno: o mundo em guerra 1939-1945. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.
MELLO, A. As mulheres na Segunda Guerra Mundial: uma breve análise sobre as combatentes soviéticas. Disponível em: <http://www.historiamilitar.com.br/artigo5rbhm9.pdfl>. Acesso em: 24 jul. 2015.
MOSEDALE, S. Policy arena. Assessing women’s empowerment: Towards a conceptual framework. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/261727075 Mosedale_Assessing_women's_empowerment>. Acesso em: 10 out. 2016.
MULHER-MARAVILHA. Direção de Patty Jenkins. EUA: Warner Bros., DC Entertainment, Atlas Entertainment e Cruel & Unusual Films; Warner Bros., 2017. 1 DVD (141 min); son.; 12 mm.
OMELETE. Bilheteria USA. Disponível em: <https://omelete.uol.com.br/bilheteria-usa/>. Acesso em: 26 jun. 2017.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: veronica.kobs@fae.edu