Prof. Dr. Edson Ribeiro*
Museu de Arte de São Paulo, São Paulo
Quando Victor
Meirelles pintou Moema, em 1866, o nu
nas artes plásticas era uma prática corriqueira havia séculos. Milênios até. Talvez
o nicho que reconhecesse a arte fosse bastante estreito para que uma tela
representando uma cena de clássico da literatura brasileira pudesse causar
escândalo. Pelo menos, ali entre os iniciados. Pois foi uma reprodução dessa
tela que ilustrou uma reportagem de O Globo, em 17 de outubro, acerca da
exposição “Histórias da sexualidade”, a ser realizada no Masp. A intenção,
agora, era que um nu feito há cerca de 150 anos incomodasse. Ou que, pelo
menos, parecesse ambíguo àquele público que não sabe ainda diferenciar o nu da
pornografia comercial.
Trata-se, sem
dúvida, de um retrocesso na cultura do país colocar em discussão questões que
pareciam devidamente esclarecidas havia muito tempo. Afinal, que leitor
pensaria em proibir obras como Lolita ou
Dona Flor e seus dois maridos baseado
na existência de cenas de sexo? Certamente, o leitor que não lê, apenas ouve
falar. Outra vez, a arte respira com a existência de um nicho que compreende
obras devidamente conhecidas, já antigas. E sofre com o desconhecimento, por
parte de uma parte da população, da existência de obras de arte como aquelas. A
invasão do senso comum nas mídias em que essa parte da população pode se manifestar
faz com que os valores que dão origem à obra de arte fiquem distorcidos. Outra
vez, ouve-se que arte plástica é para decorar e a ficção, em todas as suas
formas, para entreter. O senso comum acredita que a regra tenha sido exatamente
a assimilação de valores não-estéticos, ou seja, da moralidade convencional, com
seu atrelado gosto pelo belo sensível como clichê, e não a experimentação
formal e o questionamento dessa mesma convencionalidade.
Parece estranho,
agora, que uma exposição que traga ao Brasil artistas como Ingres ou Renoir
tenha que passar pelo crivo do impedimento do acesso de jovens e crianças. É
como supor que aqueles mesmos pintores, nas suas juventudes, não tivessem tido
acesso aos grandes museus europeus. Não tivessem visto obras de arte de
verdade, de artistas fundamentais. Não tivessem podido reconhecer o nu como
prática artística recorrente desde a Antiguidade em povos de culturas díspares
e diversos níveis de desenvolvimento.
Milhares de anos
depois de artistas antigos, como Miron e Praxíteles, terem esculpido nus
famosos até agora, ou de outros terem pintado paredes de palácios e templos com
faunos e outras criaturas em sua nudez inocente ou provocadora, aparece agora
uma horda de pessoas que desconhecem a arte como tal. Querem impor aquilo que
reconhecem na sua completa desinformação. Como aceitar que um nu como O escravo agonizante, de Michelangelo,
não seja uma obra de arte, mas batatas ou melancias entalhadas, representando
os mesmos temas de bibelôs kitsch, o
sejam? Ou como aceitar que a obra de Michelangelo, que representa o exato
momento da morte de um escravo, provavelmente atingido por arma, seja entendida
como mau exemplo para os jovens? Ou que um escultor em desenvolvimento, jovem
ou criança, não possa vê-la ao vivo?
Michelangelo
Buonaroti, O escravo agonizante,
mármore, cerca de 1513-1515.
Museu do Louvre, Paris.
Em Moema e O escravo agonizante, existe a narrativa. Há fatos ocorrendo e cada
obra representa um momento deles. É comum que se use o fato como forma de se
contextualizar o nu em uma cena, talvez de uma obra mais extensa, como peças ou
epopeias, como se, apenas assim, a nudez pudesse encontrar uma justificativa.
Ou seja, algo que desse a ela uma clara justificativa que não fosse uma cena de
sexo. Tal pretexto, evidentemente, já apontava para um certo tipo de
preconceito, aquele que precisa ver na imagem nua uma justificativa que a
afaste da realização do sexo. O fato de que o nu por si mesmo, como possibilidade
estética, seja colocado sob a dependência de uma cena, quase sempre
reconhecível pelo público, significa um nível pobre de compreensão da arte e do
que significa o belo artístico. O belo como conceito, como produto do
intelecto, algo que suplanta o puramente sensível e se realiza como coisa
mental, como dizia Leonardo da Vinci, é algo que não chega a uma população
ausente dos contextos de produção e recepção de obras de arte. Essa visão
empobrecedora coloca a arte sob a dependência de fatores extra-artísticos, como
os valores moral, histórico, civil, religioso daquilo que a obra representa,
para que ela seja avaliada como boa ou ruim, passível de ser vista ou não por
todas as idades. O desentendido só é capaz de ver a coisa representada, só
enxerga a mímesis como cópia.
Quando se está
diante de uma nudez anódina, ou seja, que não representa uma cena, mas vale
como beleza em si própria, é mais frequente que ela seja vista como mau
exemplo. O caso talvez mais notório é o de Olympia, de Édouard Manet, em que a
modelo posa para a pintura. Não há como reduzir a pose da modelo nem o contexto
que a cerca a uma cena. Pelo menos, não a uma cena de sexo. No entanto, os
relatos sobre a primeira exposição da obra indicam que parte do público
procurava na imagem uma narrativa. Assim, surgiam as hipóteses que atrelavam a
modelo à vida de cortesã: ela estaria nua expondo-se a um provável amante,
recebe flores dele. O fato de o público atrelar a imagem a sexo a coloca em uma
condição de questionável; a obra estaria justificando os ataques a bengaladas
feitos a ela. Era como se fosse inquestionável que, falando sobre sexo, ela
justificasse os ataques. Para a época, seria mau exemplo não apenas para
jovens, mas para a população que assimilava e adotava os valores morais convencionais.
Algo de que, historicamente, a arte tantas vezes se desatrela.
Édouard Manet, Olympia, óleo sobre tela, cerca de 1863.
Museu d’Orsay, Paris.
Quando se adentra
o anódino, sejam o clássico ou o da vanguarda, a nudez torna-se tema único de
certas obras. Já não se precisa da representação de uma cena. Basta que se
pense em Náiade, de Antonio Canova,
esculpida por volta de 1820. A beleza vale por si. E quando se fala em beleza,
não é apenas a da coisa representada que se fala, mas sobretudo a da
representação. Canova, como um neoclássico, buscava o equilíbrio também
procurado por gregos e renascentistas. O nu, no caso, vale como beleza da coisa
e da obra. Belo sensível, sim, mas sobretudo intelectivo. E, também por isso,
merece que o público o veja como grande obra. Tratava-se, naquele momento,
exatamente dos ideais da arte burguesa, voltada para um público que se
considerava de bom gosto; por isso, era reconhecida por aquelas parcelas da
população que teriam acesso a obras assim apenas em espaços coletivos, como
praças e museus, mesmo que o nu as desconcertasse. Tal parcela da população se
excluiria do universo dessa obra, mas não a excluiria dele; não faria
julgamentos de valor, mas apenas os seus rudes julgamentos de gosto de
desinformado. O perigo, agora, talvez resida na possibilidade de julgamento de
valor por quem não sabe do que se trata.
Antonio Canova, Náiade, mármore, cerca de 1820.
National Gallery of Art, Washington.
Antonio Canova, Psyché reanimada por um beijo de Cupido,
mármore,
cerca de 1786-1793. Museu do Louvre, Paris.
Na representação
de Canova de uma cena tantas vezes narrada em clássicos de inspiração na
mitologia greco-romana, Psyché reanimada
por um beijo de Cupido, do final do século XVIII, a sensualidade é motivo
para o virtuosismo do escultor, percebida na representação dos toques entre os
corpos. Trata-se de uma cena. Há uma narrativa, inclusive conhecida por pertencer
à mitologia greco-romana. Essa condição de pertencer à cultura ocidental elevada,
de penetrar em segmentos mais bem-informados, faz com que a obra, mesmo
representando uma cena de sexo, seja assimilada pela moralidade convencional. Mesmo
que seja apreciada apenas por iniciados, o reconhecimento faz da obra um bem
cultural. Tradicionalmente, não é algo que seja escondido de jovens e crianças.
A cena não é vista como um mau exemplo a ser censurado em museus. Não necessita
de tarjas ou tapumes.
Da mesma forma, O sono, de Gustave Courbet, representa
uma cena que pode ser considerada sensual. No entanto, trata-se de obra
reconhecida. Não é vista como pornográfica. Nem como atentado ao pudor, pelo
fato de o público saber que o acesso a ela é facultado a quem por ela se
interessa. O público acostumado à arte, seja a literatura, a pintura, a
escultura, o cinema, sabe que a pornografia é uma forma comercial, kitsch, de utilização do sexo como
pretexto para vendas de produtos. Mesmo havendo representação de sexo, ou
sugestão, não se vê a obra de Courbet como produto comercial, para vendas. Ao
contrário, foi preciso esperar pelo reconhecimento para que a obra se tornasse
importante comercialmente. Assim, o fato de não pertencer ao âmbito da
pornografia faz a obra integrar-se a um nicho que, historicamente, reconhece as
obras audaciosas e as torna bens culturais que são motivos de visitação pelo
público.
Gustave Courbet, O sono, óleo sobre tela, cerca de 1866.
Museu d’Orsay, Paris.
No entanto, a
situação se torna assustadora porque é possível prever-se o atentado contra
obras que representam o nu e o sexo, em um futuro já pressentido agora em 2017.
Não se trata mais de ver a arte como algo restrito a quem entende, a quem
procura. Dessa forma, estando protegida daqueles segmentos que apenas a
ignoram. A posição irônica do desentendido, ao dizer que ele mesmo pintaria um
Pollock, protegia a arte e garantia sua intocabilidade. A possibilidade de
ataques a obras reconhecidas fica cada vez mais evidente. Torna-se um
retrocesso em uma atitude que já era um sintoma de desconhecimento. A direção
agora é no sentido da barbárie, da preocupação com a segurança de obras de
arte.
O fato de o
conceito de arte, assim como o de beleza, não estarem formados na sociedade
brasileira passa pelo fracasso do ensino de artes, mas também, evidentemente,
pelo desinteresse que leva à desinformação. O mesmo público que não sabe que
existe um romance chamado Ulisses e
que, provavelmente, o rasgaria, defendendo quem o proibiu há quase 100 anos,
caso viesse a conhecê-lo, fica escandalizado ao descobrir que a arte não era o
que ele imaginava, não se refere a batatas ou melancias, nem ao bibelô que se
compra em aeroporto, mas a algo complexo e que, por não se poder entendê-lo,
opta-se por sua exclusão ou destruição. Em 1996, quando a Folha de S. Paulo fez
um caderno especial reunindo 15 poetas brasileiros modernos escrevendo sobre
vagina, muitos leitores cancelaram a assinatura do jornal. Não interessa quem
são Arnaldo Antunes ou Glauco Mattoso; aquilo é indecente, merece ser rasgado.
Para estes, mesmo o tema já é motivo para atitudes de exclusão, talvez de
violência. O que faz com que a própria sugestão, a imagem mentalizada, ou a
palavra por si mesma já revoltem esse público desinformado. Ou mal formado: vê
em todas as representações da nudez ou do sexo os tabus relacionados à libido.
Um perigo para a própria literatura em pleno ano de 2017. Perigo para Lawrence,
para Nabokov, para Jelinek.
A desvantagem da
arte plástica em relação à literatura é que ela se expõe como visível de
imediato. É arte do espaço. A literatura ainda respira com a possibilidade de
estar oculta às multidões e se manifestar apenas ao leitor. A arte plástica
acaba, seja por uma mídia ou outra, mostrando suas reproduções, que irritam
aquela parcela desinformada e cada vez menos familiarizada com o que a
civilização ocidental veio construindo e que considera como já pronto, como é o
caso da condição do nu como possibilidade de realização estética. E, de uma
forma ou de outra, aquela parcela antes indiferente torna-se agressiva e
empoderada graças ao senso comum compartilhado nas mídias.
Para elas, Lucian
Freud pinta. O neto do principal teórico dos tabus relacionados à nudez e ao
sexo produz seus nus como forma de provocação ao senso comum. Trata-se daquela
beleza como produto do intelecto e que torna a arte algo tão distante da
assimilação de regras.
Lucian Freud, Benefits
Supervisor Sleeping, óleo sobre tela, cerca de 1995.
Coleção particular.
*Professor do Curso de
*Professor do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
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