Mail Marques de Azevedo*
Pintor, desenhista
e gravurista notável, William Blake (1757-1827) desenvolve em seu verso
fulgurante o pensamento profético de um visionário. Artífice antes de poeta, − aos
15 anos o jovem Blake torna-se aprendiz do gravurista James Basire que lhe
transmitiu o conhecimento completo de sua arte − é na associação da arte de engraving com a poesia que Blake vai
encontrar o meio ideal para expressar sua genialidade. O desejo de gravar, ao
invés de imprimir, texto e ilustração de seus poemas concretizou-se na invenção
notável do que ele próprio denominou “impressão iluminada” (illuminated printing).
Observa-se na impressão iluminada de Blake a presença dos imperativos de immediacy e hypermediacy – exigidos
mais enfaticamente pela cultura midiática de nossos dias. Nenhum evento
midiático em si, afirmam Bolton e Grusin − na obra Remediation. Understanding New Media − parece desempenhar sua
tarefa cultural isolado de outras mídias. Mais ainda, a remediação de mídias anteriores, que caracteriza a mídia digital de
hoje, está presente nos últimos séculos da representação visual no ocidente. Blake constitui, de fato, referência quando se trata
da associação entre literatura e pintura.
Em texto de 1787, uma fantasia em prosa intitulada pelos editores An Island in the Moon, quando de sua
publicação em 1923, Blake prevê a possibilidade de produzir livros em que “toda
a escrita seria gravada ao invés de impressa” com “uma figura de fino
acabamento em folhas alternadas.”
Seguindo uma
técnica especial de gravação em relevo em placa de cobre, contendo texto e
ilustração, cada página do livro era impressa em monocromo e posteriormente
colorida com aquarela por Blake e sua esposa, Catherine, ou impressa em cores.
O resultado era “encadernado” por ambos em capas de papelão e vendido a preços
ínfimos. Compreensivelmente, era reduzido o número de exemplares que chegavam
ao público. Com exceção de The French
Revolution, todas as obras escritas depois dos Poetical Sketches foram gravadas e “publicadas” dessa maneira.
Blake mostra-se um criador pluridisciplinar – poeta e pintor, gravador,
impressor e editor, o que o inscreve na tradição dos livros iluminados da Idade
Média, com a diferença de que monta uma pequena unidade de produção mecânica
inteiramente autônoma.
A
arte intermidiática de William Blake
A busca de novos
caminhos é intrínseca à paixão de Blake pela originalidade e à repulsa pela
imitação. No capítulo XXIX da biografia do Pictor
Ignotus, Alexander Gilchrist relata opiniões de Blake sobre poetas e
pintores que considera como “escória” (dross):
“Eu abomino imitar eu me ligo obstinadamente ao verdadeiro Estilo da Arte tal
como Miguel Ângelo Rafael (...) o deixaram”. (...) Imaginação é o meu mundo
este mundo de escória fica abaixo de minha atenção e abaixo da atenção do
público.”
Na impressão iluminada do poema “The Sick
Rose”, um dos mais conhecidos das Songs
of Experience, a percepção simultânea de texto e imagem produz no receptor
violento impacto provocado pela tradução imagética das oito linhas do texto.
Saltam aos olhos a
agudeza agressiva dos espinhos e a voracidade da lagarta que devora as folhas.
Os tons esmaecidos de violeta na representação da “alegria escarlate” (crimson joy) da rosa repetem-se nos
estranhos seres, de incongruentes traços humanos, que causam a destruição da
flor.
. Para obter o
efeito de immediacy, Blake se vale de
seus múltiplos talentos de poeta, pintor e gravurista, ou seja, de hypermediacy, a conjunção de diferentes
mídias. Na conclusão de Bolter e
Grusin, as lógicas aparentemente contraditórias de immediacy e hypermediacy
são mutuamente dependentes. O efeito conjunto da reunião de mídias tanto hoje,
quando se permite acompanhar ao vivo um voo de asa delta, como na apreciação de
um poema-gravura de Blake, é o de mergulhar o espectador no contexto da
experiência.
Blake-personagem
no romance indiano do século XXI
Fatos da vida de
Blake e traços de sua personalidade, a um tempo mística e intempestiva, são
apropriados pela escritora indiana Rukmini Bhaya Nair que o transforma em
personagem do romance Mad Girl’s Love
Song (2013), em cujo enredo convive com Sylvia Plath e D.H. Lawrence. A narradora em primeira pessoa, uma jovem indiana esquizofrênica, que
acredita ser capaz de voar em asas de vidro, invade a vida de Blake na forma de
um anjo que o protege e inspira. Da consideração das obras de Blake
introduzidas no romance, deduz-se o pensamento do artista sobre a liberdade
física e espiritual do ser humano, que Bhaya Nair canaliza para colocar em
evidência a negação desse direito aos povos colonizados.
Mad Girl’s Love Song cria um
relacionamento de amor apaixonado em que a jovem indiana Parineeta se torna a
musa de Blake, a heroína no coração de sua poesia. No capítulo intitulado “Tipu’s
Tiger” Pari’s History Book, written in
the Eighteenth Century, o leitor é levado para 1757, ano de nascimento de
Blake, que marca também acontecimento momentoso para a Inglaterra colonial, com
a conquista de Calcutá. “E lentamente as riquezas fabulosas das Índias caíram
como ameixas maduras nas mãos da Companhia e da Coroa” (NAIR, 2013, p. 152). A
lição de história é destinada a apresentar ao leitor a situação que assegurou
que o poema “Tyger” se tornasse imortal, imortal até mesmo na Natureza.
Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
Os versos encantatórios
haveriam de hipnotizar crianças de pele escura nas escolas da Índia, em toda a
largura e comprimento do país, séculos no futuro, enquanto milhares de tigres
de verdade desapareciam anualmente ao som de tiros ouvidos nas florestas de
Bengala (NAIR, 2013, p. 155).
O poema imortal é usado
pela romancista para documentar o impacto da colonização inglesa sobre uma das
civilizações mais antigas e diversificadas do mundo. Como diz Parineeta, a
jovem narradora: “A tirania colonial não é material para riso!”
Diante da “feroz
simetria” da imagem que criara, atribuem-se a Blake-personagem reflexões sobre
a invencibilidade do tigre: “Ele me diz que está aqui porque quer. Ninguém
conseguiria capturá-lo. Ele só veio me ver e amanhã vai embora, de volta a seu
Reino.” Bem diferentes são outros reis, os Reis da Ásia, em Song of Los, que clamam amargurados e
impotentes contra a fome que devasta a terra. Historicamente, logo depois do
estabelecimento do “governo da lei e da liberdade” em Bengala “uma grande fome
– não inteiramente natural – eliminou dez
milhões de pessoas, ou seja, um terço daquela província edênica” (NAIR,
2013, p. 160).
Contra o trauma que
sobrevive na psique do sujeito pós-colonial, Rukmini Bhaya Nair, declaradamente
apaixonada pela literatura inglesa, utiliza-se de um de seus ídolos para
veicular seu protesto.
Referências
BOLTER, J.D.; GRUSIN, R. Remediation. Understanding New Media. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002.
MARKS, D. (Ed.)
William Blake Complete Works
Ultimate Collection. Poems, Prose, Letters – circa 1803-1827. Pictor Ignotus. Life of William Blake.
Alexander Gilchrist - 1863. William Blake. A Critical Essay. Algernon Charles
Swinburne – 1868. Edição Kindle.
NAIR, R. B. Mad Girl’s Love Song. Noida, Uttar
Pradesh: Harper Collins, 2013.
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¹ Excerto
da comunicação apresentada no Colóquio
Internacional Escrita, som, imagem e
VI Jornada intermídia, na UFMG. Maio de 2017.
*Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE