Greicy Pinto Bellin*
Há quase um ano, foi
publicado neste blog um texto de minha autoria em que eu apontava para os
descompassos do feminismo na academia brasileira, com base em textos da teoria
e da crítica literária feministas. Gostaria de retomar alguns pontos daquela
discussão, a fim de aprofundá-los e até mesmo, consolidar algumas ideias
levantadas naquela época com base no que tenho visto tanto em discussões
acadêmicas, quanto nas redes sociais de um ano para cá.
Já é lugar comum afirmar
que o feminismo foi um dos responsáveis por uma inegável ruptura epistemológica
no interior da academia, procurando desconstruir um cânone que as feministas
consideram como baseado em valores masculinos e, portanto, patriarcais que
excluiriam o sujeito feminino das representações de leitura e autoria.
Criou-se, desta forma, uma verdadeira batalha contra a misoginia literária, com
variadas genealogias da submissão feminina ao longo dos séculos, responsáveis
por, de um lado, levar a uma compreensão mais ampla da dominação patriarcal, e
de outro, delimitar um espaço próprio para a mulher, aspecto sobre o qual irá
se debruçar a reflexão de Elaine Showalter em A room of one’s own. Ao mesmo tempo em que conduz a uma nova forma
de pensar a literatura, que passa a ser vista como marcada por configurações de
gênero articuladas a questões políticas, econômicas e sociais, o feminismo,
mais especificamente o feminismo pós-moderno, instaura profundos
questionamentos em relação não mais ao ser mulher, mas ao ser feminista. O que
significaria, em última instância, ser feminista? O feminismo foi pensado como,
porque e para quem?
A primeira imagem que nos
vinha à mente há alguns anos quando se proferia o termo “feminista” era aquela
da mulher mal resolvida com sua condição feminina que levantava a bandeira do
feminismo para justificar suas frustrações amorosas e sexuais. Este estereótipo
encontra-se ultrapassado na pós-modernidade, que observou a emergência de um
novo tipo de feminismo entre mulheres que começaram a revalorizar a
maternidade, uma função tipicamente feminina e combatida pelo feminismo dos
anos 60 com o advento da pílula anticoncepcional. A primavera feminista de 2015
consiste em um momento crucial de libertação dos padrões impostos pelas
feministas mais radicais, denunciando a prisão criada pelo próprio feminismo em
seu desejo de emancipação da mulher. Trocando em miúdos, o que parecia ser
libertador na realidade não o era, percepção que se traduz nos movimentos de
retorno ao sagrado feminino e ginecologia natural, a partir dos quais as mulheres
e até mesmo a classe médica passaram a questionar o uso indiscriminado e pouco
consciente de métodos anticoncepcionais hormonais, base fundamental na qual se
assentaria o medo da maternidade justificado pela necessidade de ascensão
intelectual e profissional. Todas estas constatações nos dão margem para pensar
no movimento feminista como algo construído pelo próprio patriarcado, que teria
oferecido às mulheres um engodo que sabota suas próprias naturezas e as
conduzem a mistificações que não traduzem suas próprias essências, sejam elas
feministas ou não.
Com base neste
raciocínio, nos resta pensar em como a academia e a teoria literária respondem
a estas novas acepções. No texto publicado ano passado, eu perguntava: em que
medida o “ser feminista” pressupõe uma demonização de uma cultura tida como
patriarcal? Complemento este questionamento com a seguinte pergunta: o que esta
demonização teria a acrescentar para o feminismo, sendo que o que se busca é a
igualdade, e não a inferiorização do homem como uma revanche contra séculos de
dominação sobre a mulher? E como os textos literários representariam esta problemática,
considerando que nem todos os escritores, fossem eles homens ou mulheres,
estariam necessariamente preocupados com questões feministas e de gênero no
momento de escrita da obra? Tal preocupação não seria imposta pelos próprios
leitores (as), imbuídos (as) de um pensamento patriarcal disfarçado de
feminista? Não haveria um patriarcado teórico-literário por trás das
reivindicações das próprias feministas? À parte as teorias da conspiração, que
podem desviar o foco da discussão proposta aqui, o que tenciono é chamar a
atenção para o que se considera como feminismo, e, na esfera acadêmica, porque
e para quem este feminismo foi criado, e se ele realmente corresponde ao anseio
de libertação intelectual que pulsa no bojo das proposições feministas. O feminismo
pós-moderno já ensaia tentativas bem consistentes no sentido de abordar e
problematizar estas questões, seja a partir da teoria queer, que percebe a
ideia de feminismo como construída a partir de uma matriz discursiva
heterossexista e portanto, alienadora, seja com as representações do que Mary
Hawkesworth chama de “enterro prematuro” do feminismo, enterro que, a meu ver,
é fundamental e necessário para que novas percepções emerjam a fim de dar conta
dos questionamentos abordados aqui.
No artigo publicado
ano passado, citei Elaine Showalter e sua percepção da crítica literária
feminista como “território selvagem” a partir do qual se tornaria problemático
definir os objetivos e impasses desta crítica. Concluo este artigo afirmando
que o feminismo, seja lá o que isso significa, talvez pudesse assumir
abertamente este território selvagem como parte integrante de sua própria
constituição, instaurando, com isso, uma permanente dúvida e um constante
questionamento acerca do que possa ser este feminismo. Emergirá, desta forma,
não um feminismo construído pelo patriarcado e vendido às mulheres com a
promessa enganadora da emancipação, mas o feminismo dentro de cada um de nós,
homens e mulheres, um feminismo libertador por ser genuíno, e que se permite
ser questionado dentro de si mesmo e por sua própria natureza
Referências
SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de
(org.). Tendências e impasses: o
feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-55.
______. A literature of their own: British women
novelists from Brontë to Lessing. Princeton: Princeton University Press, 1999.
HAWKESWORTH,
Mary. A semiótica de um enterro prematuro: o feminismo em uma era
pós-feminista. Estudos Feministas:
Florianópolis, v. 14, n. 3, 2006, p. 737-763. Disponível em: www.scielo.br/pdf/ref/v14n3/a10v14n3.pdf Acesso em: 14/03/2018.
*Professora do Curso de Mestrado da UNIANDRADE
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