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terça-feira, 20 de março de 2018

Feminismo para quem?

Greicy Pinto Bellin*


Há quase um ano, foi publicado neste blog um texto de minha autoria em que eu apontava para os descompassos do feminismo na academia brasileira, com base em textos da teoria e da crítica literária feministas. Gostaria de retomar alguns pontos daquela discussão, a fim de aprofundá-los e até mesmo, consolidar algumas ideias levantadas naquela época com base no que tenho visto tanto em discussões acadêmicas, quanto nas redes sociais de um ano para cá.
Já é lugar comum afirmar que o feminismo foi um dos responsáveis por uma inegável ruptura epistemológica no interior da academia, procurando desconstruir um cânone que as feministas consideram como baseado em valores masculinos e, portanto, patriarcais que excluiriam o sujeito feminino das representações de leitura e autoria. Criou-se, desta forma, uma verdadeira batalha contra a misoginia literária, com variadas genealogias da submissão feminina ao longo dos séculos, responsáveis por, de um lado, levar a uma compreensão mais ampla da dominação patriarcal, e de outro, delimitar um espaço próprio para a mulher, aspecto sobre o qual irá se debruçar a reflexão de Elaine Showalter em A room of one’s own. Ao mesmo tempo em que conduz a uma nova forma de pensar a literatura, que passa a ser vista como marcada por configurações de gênero articuladas a questões políticas, econômicas e sociais, o feminismo, mais especificamente o feminismo pós-moderno, instaura profundos questionamentos em relação não mais ao ser mulher, mas ao ser feminista. O que significaria, em última instância, ser feminista? O feminismo foi pensado como, porque e para quem?
A primeira imagem que nos vinha à mente há alguns anos quando se proferia o termo “feminista” era aquela da mulher mal resolvida com sua condição feminina que levantava a bandeira do feminismo para justificar suas frustrações amorosas e sexuais. Este estereótipo encontra-se ultrapassado na pós-modernidade, que observou a emergência de um novo tipo de feminismo entre mulheres que começaram a revalorizar a maternidade, uma função tipicamente feminina e combatida pelo feminismo dos anos 60 com o advento da pílula anticoncepcional. A primavera feminista de 2015 consiste em um momento crucial de libertação dos padrões impostos pelas feministas mais radicais, denunciando a prisão criada pelo próprio feminismo em seu desejo de emancipação da mulher. Trocando em miúdos, o que parecia ser libertador na realidade não o era, percepção que se traduz nos movimentos de retorno ao sagrado feminino e ginecologia natural, a partir dos quais as mulheres e até mesmo a classe médica passaram a questionar o uso indiscriminado e pouco consciente de métodos anticoncepcionais hormonais, base fundamental na qual se assentaria o medo da maternidade justificado pela necessidade de ascensão intelectual e profissional. Todas estas constatações nos dão margem para pensar no movimento feminista como algo construído pelo próprio patriarcado, que teria oferecido às mulheres um engodo que sabota suas próprias naturezas e as conduzem a mistificações que não traduzem suas próprias essências, sejam elas feministas ou não.
Com base neste raciocínio, nos resta pensar em como a academia e a teoria literária respondem a estas novas acepções. No texto publicado ano passado, eu perguntava: em que medida o “ser feminista” pressupõe uma demonização de uma cultura tida como patriarcal? Complemento este questionamento com a seguinte pergunta: o que esta demonização teria a acrescentar para o feminismo, sendo que o que se busca é a igualdade, e não a inferiorização do homem como uma revanche contra séculos de dominação sobre a mulher? E como os textos literários representariam esta problemática, considerando que nem todos os escritores, fossem eles homens ou mulheres, estariam necessariamente preocupados com questões feministas e de gênero no momento de escrita da obra? Tal preocupação não seria imposta pelos próprios leitores (as), imbuídos (as) de um pensamento patriarcal disfarçado de feminista? Não haveria um patriarcado teórico-literário por trás das reivindicações das próprias feministas? À parte as teorias da conspiração, que podem desviar o foco da discussão proposta aqui, o que tenciono é chamar a atenção para o que se considera como feminismo, e, na esfera acadêmica, porque e para quem este feminismo foi criado, e se ele realmente corresponde ao anseio de libertação intelectual que pulsa no bojo das proposições feministas. O feminismo pós-moderno já ensaia tentativas bem consistentes no sentido de abordar e problematizar estas questões, seja a partir da teoria queer, que percebe a ideia de feminismo como construída a partir de uma matriz discursiva heterossexista e portanto, alienadora, seja com as representações do que Mary Hawkesworth chama de “enterro prematuro” do feminismo, enterro que, a meu ver, é fundamental e necessário para que novas percepções emerjam a fim de dar conta dos questionamentos abordados aqui.
No artigo publicado ano passado, citei Elaine Showalter e sua percepção da crítica literária feminista como “território selvagem” a partir do qual se tornaria problemático definir os objetivos e impasses desta crítica. Concluo este artigo afirmando que o feminismo, seja lá o que isso significa, talvez pudesse assumir abertamente este território selvagem como parte integrante de sua própria constituição, instaurando, com isso, uma permanente dúvida e um constante questionamento acerca do que possa ser este feminismo. Emergirá, desta forma, não um feminismo construído pelo patriarcado e vendido às mulheres com a promessa enganadora da emancipação, mas o feminismo dentro de cada um de nós, homens e mulheres, um feminismo libertador por ser genuíno, e que se permite ser questionado dentro de si mesmo e por sua própria natureza    
          
Referências

SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-55.

______. A literature of their own: British women novelists from Brontë to Lessing. Princeton: Princeton University Press, 1999.

HAWKESWORTH, Mary. A semiótica de um enterro prematuro: o feminismo em uma era pós-feminista. Estudos Feministas: Florianópolis, v. 14, n. 3, 2006, p. 737-763. Disponível em: www.scielo.br/pdf/ref/v14n3/a10v14n3.pdf Acesso em: 14/03/2018.  

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. O estranho horizonte da crítica feminista no Brasil. In: SUSSEKIND, Flora; DIAS, Tania; AZEVEDO, Carlito (org). Vozes femininas: gênero, mediações e práticas e escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. p. 15-25.


*Professora do Curso de Mestrado da UNIANDRADE

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