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quinta-feira, 19 de abril de 2018

NOVAS FORMAS DO TEXTO MÚLTIPLO E INTERMIDIÁTICO


Prof.ª. Dra. Verônica Daniel Kobs*

O primeiro texto a ser analisado é o livro S., de J. J. Abrams e Doug Dorst. Considerando apenas capas e contracapas, a duplicidade se faz complexa para o leitor: a caixa de S. traz um selo, que serve de lacre e que, quando rompido, dá acesso ao volume de Straka. Esse jogo entre ficção e realidade (na qual Straka é autor, mas ao mesmo tempo personagem) é próprio da metalinguagem e também será, nesta análise, um elemento-chave para o jogo estabelecido com o leitor e para a multiplicidade, temas que serão discutidos posteriormente.

Figura 1: Livro S., de J. J. Abrams e Doug Dorst: a caixa preta contém o exemplar de O navio de Teseu, de V. M. Straka (ABRAMS; DORST, 2013).
Em quase todas as páginas, a história divide espaço com anotações de duas pessoas, Eric e Jen. Ele estuda a obra de Straka desde os 15 anos e passou a investigar a identidade do autor com a ajuda de Jen. Os dois alunos trocam o livro constantemente e se comunicam pelas notas que fazem à margem, à caneta. Quanto à estrutura do livro, tomemos como base o conceito de transtextualidade, de Gerard Genette, que abrange o paratexto: “[...] título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios” (GENETTE, 2005, p. 9), além dos elementos já citados anteriormente, três assumem grade importância na história: as notas de rodapé e o prefácio, ambos assinados por Félix/Filomela, e as anotações de Jen e Eric, escritas à margem das páginas. Aliás, o livro traz 24 anexos, todos de caráter extraliterário e cada um em uma página adequada, já que a maioria deles é resultado de um comentário escrito por Eric ou Jen, quando há necessidade de comprovar ou mostrar algo. Evidentemente, os anexos também introduzem outros textos e outras artes ou mídias na narrativa, o que corresponde aos conceitos de intertextualidade (a exemplo de uma carta ou de um telegrama), interartes (como, por exemplo, quando o leitor encontra uma foto) e intermidialidade (cujo exemplo pode ser o artigo de jornal).
No aspecto estrutural, essa multiplicidade corresponde ao que Linda Hutcheon caracteriza como “that complex Chinese-box mise en abyme structure typical of so much metafiction” (HUTCHEON, 2014, p. 105, grifo no original). Wallace Martin corrobora essa afirmação, pois conceitua a metaficção como “embedded narration” (MARTIN, 1991, p. 135). Para demonstrar a estrutura múltipla e encadeada de S. e também para aproximá-la das considerações de Hutcheon e Martin, observem-se as figuras a seguir:
  
Figura 2: Caixa chinesa. Imagem disponível em: <https://niagaraatlarge.com>
 
 
 Ambas as imagens enfatizam o caráter múltiplo, no sentido literal do termo. Entretanto, o significado de usar essa estrutura, em um texto literário, hoje, vai muito além do nível quantitativo: “Metaficcional deconstruction [...] has also offered extremely accurate models for understanding the contemporary experience of the world as a construction, an artifice, a web of interdependent semiotic systems” (WAUGH, 1993, p. 9). Portanto, o esquema narrativo de S., plural e intricado, serve de metáfora para o mundo e para a vida, correspondendo perfeitamente à concepção de Italo Calvino (1998), no que diz respeito à multiplicidade.
O segundo exemplo analisado aqui é o filme Homens, mulheres & filhos, de Jason Reitman, que usou como base o romance de mesmo nome, de Chad Kultgen. A alternância, associada à narrativa rápida e aberta, relaciona-se, tanto no livro como no filme, ao dialogismo, à intertextualidade e ao aspecto multimidiático. O primeiro item pode ser exemplificado com os nomes de programas de TV (Two and a half men e American Idol, entre outros), a filosofia de Noam Chomsky e o jogo preferido de Tim (World of Warcraft). Como intertexto, a obra do astrônomo Carl Sagan (Pálido ponto azul) tem importância decisiva, principalmente no filme. Enquanto, no romance, trechos desse livro são frequentes na história de Tim Mooney e na epígrafe, no filme a interferência deles é maior. Outro exemplo de intertextualidade, mas agora vinculado às diversas mídias, é a comunicação dos personagens por meio de aplicativos de mensagens. Para isso, o diretor decidiu variar o layout das mensagens, a fim de enfatizar a verossimilhança. Gareth Smith, designer chefe do filme, explicou essa escolha da equipe de produção: “[...] cada app de mensagem de texto tem um visual. Então, queríamos refletir isso na tela [...]” (HOMENS, 2014).
Devido ao fato de o enredo ser atual e representar o cotidiano (de casais, famílias, adolescentes em casa e na escola), e considerando o predomínio da tecnologia hoje, livro e filme apresentam situações em que a convivência “física” sofre interferência de mídias diversas, que remodelam as relações interpessoais, fragmentando-as, anulando-as ou estabelecendo contatos paralelos e virtuais. Tal variedade justifica uma afirmação de Italo Calvino, que se referiu ao século XXI como uma “época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58, grifo no original).
Segundo o designer do filme, desde o início o projeto do diretor foi refletir, na tela, o modo como as pessoas utilizam o computador e o celular hoje em dia. Isso resultou em uma nova “geografia da tela”, transformando-a “em uma espécie de área de trabalho” (HOMENS, 2014). Assim, os elementos tradicionais da cena, no cinema, tornam-se acessórios. Nos exemplos abaixo, as imagens da tela do computador interferem de modo decisivo no processo de filmagem, exigindo que o set fosse disposto de modo distinto. Dessa forma, posteriormente, a cena teria um lugar adequado para receber a sobreposição da imagem da tela do computador. Utilizando o mesmo recurso técnico, também a tela do celular ganha destaque no filme, de modo que o espectador possa visualizar em primeiro plano uma tela específica ou os textos das telas de vários aparelhos, simultaneamente.

  Figura 4: Cenas em que o diretor utiliza as telas dos computadores como imagens sobrepostas (HOMENS, 2014)

Figura 5: Cenas com sobreposições da telas de um celular e dos aparelhos de várias pessoas (HOMENS, 2014)
  
Na cena que mostra os vários aparelhos (acima, à direita), uma interface foi criada para cada personagem e para cada figurante: “Tivemos que criar a parte gráfica para cerca de 45 pessoas” (HOMENS, 2014). Esse exemplo demonstra que a intermidialidade sugeriu novas possibilidades à linguagem cinematográfica. Conforme Denise Guimarães: “[…] em grande parte da arte contemporânea, os recursos tecnológicos propiciam uma investigação criativa, uma vez que libertam os artistas do atrelamento a modelos e conceitos preexistentes. […] tal liberdade, inclusive, pode viabilizar interessantes trocas sígnicas entre arte e tecnologia.  (GUIMARÃES, 2007, p. 39)

REFERÊNCIAS

ABRAMS, J. J.; DORST, D. S. Rio de Janeiro: Intrínseca; Santa Mônica (Califórnia): Bad Robot; New York: Melcher Media, 2013.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
GENETTE, G. Palimpsestos. A literatura de segunda mão. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
HOMENS, mulheres & filhos. Direção de Jason Reitman. EUA: Paramount Pictures e Right of Way Films; Paramount Pictures, 2014. 1 DVD (119 min); son.
HUTCHEON, L. Narcissistic narrative: The metafictional paradox. Canadá: Wilfried Laurier University, 2014.
KULTGEN, C. Homens, mulheres & filhos. Rio de Janeiro: Record, 2014.MARTIN, W. Recent theories of narrative. Ithaca: Cornel University, 1991.
WAUGH, P. Metafictional: The theory and practice of self-conscious fiction. New York: Routledge, 1993.

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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

A POLÍTICA EM SÉRIES TELEVISIVAS BRITÂNICAS E NORTE-AMERICANAS


Brunilda T. Reichmann, PhD*

A maioria das séries televisivas disponíveis, quer no Brasil ou no exterior, trabalha seus conteúdos com primor, destacando-se na produção artística/midiática contemporânea. Algumas são celebrações, por meio de recriação, de romances/peças brasileiros ou estrangeiros. Quando são adaptações de outros textos, as séries, ao contrário das adaptações fílmicas, geralmente expandem o texto fonte, devido ao número de episódios. Entre elas, encontramos as séries políticas, que, na maioria das vezes, (re)constroem um panorama semelhante à “realidade” dos espectadores, mas nem sempre conhecida por eles. A maioria dela explora a sede insaciável pelo poder, a traição, a corrupção e a criminalidade, assunto bem conhecido na atualidade. Alguns títulos estão relacionados abaixo:
 
  • The House of Cards Trilogy (1990-1994 / Inglaterra: BBC; 3 partes, 12 episódios). Francis Urquhart, o protagonista, derruba o primeiro-ministro ficcional da Inglaterra, que sucede a Margaret Thatcher, para assumir seu lugar. É eleito primeiro-ministro várias vezes e permanece no cargo por cerca de 10 anos.
  • The Good Wife (2009-... / EUA: Netflix; 7 temporadas com 156 episódios). Alicia Florrick, protagonista da série, tem como pano de fundo a corrupção de seu marido, primeiro como promotor condenado por conduta imoral, depois como candidato ao governo de Ilinois.
  • Political Animals (2012 / EUA: USA Network: 1 temporada, 6 episódios). Elaine Barrish Hammond, protagonista da série, ex-primeira-dama e atual Secretary of State (Secretária de Estado do Exterior) dos Estados Unidos, tem que lidar com adversários políticos e problemas pessoais, na luta para manter seu trabalho e a família unida.
  • Scandal (2012-... / EUA: ABC; 5 temporadas, 90 episódios). Olivia Pope, gestora de conflitos de sucesso, é uma recriação da assessora Judy Smith, do governo George Bush.
  • House of Cards (2013-... / EUA: Netflix; 5 temporadas, 65 episódios). Francis e Claire Underwood são os protagonistas da série. Eles tramam o impedimento do ficcional presidente dos Estados Unidos e lançam, como um casal, sua candidatura à presidência e vice-presidência do país.
  • Madam Secretary (2014-… / EUA: CBS; 3 temporadas, 96 episódios). Secretary of State, Elizabeth McCord, tem que lidar com uma avalanche de desafios políticos e com o drama de não poder dar atenção suficiente aos filhos.
  • Designated Survivor (2016-... / EUA: Netflix; 1 temporada, 22 episódios). Tom Kirkman é Secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano e o sobrevivente designado e empossado imediatamente como presidente, quando uma explosão tira a vida do presidente e de todos os membros do Gabinete que exercem função superior à de Kirman nos Estados Unidos.

Dentre essas séries políticas, duas delas evocam os temas e atualizam o contexto e os personagens de peças de Shakespeare. A dissimulação, a corrupção, a violência e a criminalidade presentes em Ricardo III, Macbeth e Otelo são transpostas para outra época e/ou outro espaço. Elas são: The House of Cards Trilogy, da BBC da Inglaterra e House of Cards, da Netflix dos EUA.
 Desde os primeiros episódios é notável como os produtores/roteiristas/diretores fazem ressoar ecos de peças de Shakespeare nas séries e matizavam com DNA shakespeariano os seus desenvolvimentos. Macbeth, Ricardo III e Iago materializam-se em outra época e contexto diante de nossos olhos. Durante as temporadas, leitores de Shakespeare ficam mesmerizados diante da evocação da arte do dramaturgo inglês ao apreender a crueldade da alma humana e da capacidade dos idealizadores das séries de expandir, atualizar e recontextualizar essa inerente crueldade. Portanto, se dissermos que tanto The House of Cards Trilogy, da BBC da Inglaterra e House of Cards, da Netflix dos EUA têm início com a trilogia de Michael Dobbs, temos que retificar e dizer que tudo começa com Shakespeare, ou tudo começa muito antes... mas no final do século XX, são estes os três romances – House of Cards (1989), To Play the King (1992) e The Final Cut (1994) – que descrevem o panorama político da atualidade no Reino Unido e são adaptados para as duas séries televisivas políticas impactantes.
 


*Brunilda T. Reichmann é professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade
 

sexta-feira, 6 de abril de 2018

LIGEIRA DIVAGAÇÃO SOBRE MURAKAMI

 Edson Ribeiro da Silva*

Em 1987, Haruki Murakami publicou Norwegian wood. O romance foi sucesso imediato, vendeu milhões de exemplares. Ou seja, algo que, há trinta anos, possuía um significado ambíguo. Era uma década em que, de vez em quando, via-se um escritor de renome em meio a obras comerciais nas listas de mais vendidos.  
Murakami ainda não era o prestigiado segundo nome mais cotado nas listas anuais para o Prêmio Nobel de Literatura. A obra também não faria pensar em um escritor que se tornaria o maior nome vivo da língua japonesa dali a três décadas. Talvez ela lembre mais um retorno ao comparável A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, modelo de livro que vende milhões antes de o autor ser reconhecido. Kundera depois seria colocado em uma posição um pouco abaixo da de Murakami na lista citada acima.
O leitor, provavelmente, nos dois casos, ouvia falar de um romance que falava de amor. Que tratava dos conflitos dentro do relacionamento amoroso e do desempenho sexual dos amantes. Tudo narrado com um número satisfatório, para certo leitor-modelo, de cenas de sexo oral e genital. E longas conversas apimentadas a respeito disso. E, no entanto, era um tipo de livro que atraía o leitor que não procurava diretamente a obra erótica, daquelas que poderiam ser compradas em qualquer banca de revistas. Mistério dos grandes vendedores de livros, essa situação de uma obra ser comentada, recomendada, emprestada, tudo porque há nela cenas detalhadas de sexo. Mistério, talvez explicação.  
Tanto em Kundera quanto em Murakami, a narrativa segue um formato tradicional. Não há nenhuma elaboração do foco narrativo que faça a obra surpreender, causar estranhamento. A ordem da narrativa também não exige do leitor nenhum esforço para reconstituir uma cronologia; ela está lá, sem esforços para que a representação do tempo não seja a do calendário. Kundera tenta salvar seu livro pela representação de um momento tenso da história de seu país: a invasão soviética, com a consequente perseguição a quem se opusesse ao dominador. O livro de Murakami vem sendo chamado de “autoficção”, aparecendo nas listas de obras que exemplificam a tendência. Assim, falar de sexo fazendo disso uma espécie de confissão das próprias limitações pode aproximar o livro daquilo que muitos teóricos veem como um dos filões seguidos pela autoficção: falar de traumas pessoais como forma de purgá-los.
Norwegian wood pode ser autoficcional nas primeiras páginas. Algo que lembra obras do romance de formação: o estudante em seu contexto de estudos, sua rotina entre livros, salas de aula, refeitórios e alojamentos. Poderia ser tudo verdade, memorialístico. O nome Toru Watanabe lembra o do autor; assim, o protagonista apresenta traços autobiográficos. Mas quando a narrativa avança na direção da história de amor, os fatos vão ficando menos prováveis. O suicídio de um amigo, namorado da garota pela qual o narrador-protagonista é apaixonado. Tal suicídio desencadeia uma crise na garota, Naoko. A mistura da crise com o fato de o protagonista ter “avançado o sinal” em direção a assumir uma relação com a garota fazem com que ela se interne em uma espécie de sanatório. Na verdade, mais uma espécie de hotel-fazenda, onde os internos passam anos executando trabalhos de rotina e sem contatos com o mundo exterior ao local. Alguns decidem morar ali. Pagam caro por isso. Tal sanatório fica nas proximidades de Osaka, em uma área cercada por montanhas, prados e muitos bosques.
Os bosques justificam o nome do livro, uma música dos Beatles. Bosques nos quais neva fortemente no inverno.
 


A letra dos Beatles fala de separação, de um amor que passa rápido. Talvez ela pudesse lembrar que os amores passam, que não adianta insistir para que eles sejam permanentes. Lembra a cena de sexo entre o protagonista e a garota: quando amanhece, ele já foi embora. Ou seja:

Norwegian Wood

I once had a girl

Or should I say she once had me

She showed me her room

Isn't it good Norwegian wood?

She asked me to stay

And she told me to sit anywhere

So I looked around

And I noticed there wasn't a chair

I sat on a rug biding my time

Drinking her wine

We talked until two and then she said

"It's time for bed"

She told me she worked

In the morning and started to laugh

I told her I didn't

And crawled off to sleep in the bath

And when I awoke I was alone

This bird had flown

So I lit a fire
 
           Isn't it good Norwegian wood?


Afinal, essa garota pode ser Naoko, a moça que se interna no sanatório cercado por bosques, no romance. Essa garota, na infância, também viu o suicídio da irmã mais velha. Um excesso que começa a tirar o livro da órbita da autoficção e mostrar-se como drama romântico. Da mesma forma, a história contada por Reiko, a companheira de quarto de Naoko, no sanatório, contém aqueles excessos dramáticos que podem justificar que leitores comprem o livro. Uma cena longa de lesbianismo entre uma mulher e uma adolescente, quase criança. Muita ousadia nas descrições.
O romance aproveita a letra do Beatles na cena em que o protagonista e Naoko têm a primeira relação sexual. Na manhã seguinte, ela sumiu. Também remete à noite em que ele dorme no quarto das duas moças, no sanatório: de madrugada, Naoko aparece diante dele, no escuro, se despe, e depois some. São alusões frágeis, para o leitor apenas não achar que o nome da obra é exagero. A narrativa se passa no final da década de 1960, quando Beatles ainda era tocado nos rádios que aparecem na narrativa. Em 1968, anos de mudanças e de agitação no meio estudantil. O protagonista é um estudante dividido entre uma garota dócil e insegura e uma mulher de meia-idade, liberada sexualmente.

A alusão principal, que percorre de forma marcante grande parte do livro, na verdade, diz respeito a Thomas Mann. O romance A montanha mágica inspira toda a parte da narrativa de Norwegian wood que se passa no sanatório. Não se trata apenas de uma semelhança nas situações. Um sanatório refinado, em meio a montanhas, onde pessoas com problemas vivem afastadas do que ocorre no mundo lá fora. Um lugar que fica isolado pela neve, no inverno. E há bosques onde se pode passear, nos meses mais quentes. O capítulo que narra a passagem no sanatório ocupa cerca de cem páginas em um livro em que os capítulos, em média, ocupam trinta. Antes dele, o personagem já aparecia lendo A montanha mágica. A leitura o fazia parecer pedante em locais como o refeitório da universidade ou o alojamento dos estudantes. Ele também o lia em seu quarto. E, embora o personagem não pareça querer discutir o romance de Thomas Mann ou extrair dele procedimentos estéticos, falar dele serve para que o leitor reconheça, nas partes sobre o sanatório, que Murakami está se inspirando ali. Uma relação intertextual que o autor faz questão de que seja percebida. Por isso, não deixa o leitor esquecer. No sanatório, o personagem também lê A montanha mágica. Outra vez, seria uma alusão gratuita se a situação narrada não remetesse ao livro de Mann. No entanto, tal qual acontecia com a alusão à música dos Beatles, o efeito aqui parece de paralelismo, sem ir muito longe. O romance de Thomas Mann é uma das grandes obras sobre o tempo e o modo como ele é apreendido. A passagem lenta do tempo, para quem está em um sanatório, longe dos fatos do mundo exterior, é lenta, e Mann constrói a estrutura do romance a partir dessa sensação. Em Murakami, a passagem do tempo se acelera, porque é ali, naquele capítulo, que os fatos mais instigantes do passado dos personagens assomam, misturados a cenas de sexo. É como se aquele capítulo fosse o responsável pela atração exercida por um público mais consumidor que leitor. Thomas Mann está ali para que esse leitor menos atento ou que tenha lido menos os grandes clássicos tenha uma pista para a compreensão da estrutura mais superficial da obra. A montanha mágica está lá pela semelhança entre as tramas. Não se discute o tempo. Não se representa a passagem do tempo. Está lá também para garantir alguma profundidade, através do diálogo com os clássicos, algo que transcenda um lastro comercial aplicável ao livro.
 
 

Talvez essa relação intertextual frágil seja um sintoma de que se trata de um autor ainda imaturo, mas que vai exigir que sua obra dialogue com a grande literatura. Murakami amadureceu, fez romances mais densos, que perseguem efeitos estéticos mais complexos. É curioso ainda observar que o livro, êxito de público, motivou uma adaptação para o cinema, em 2011. Caso que ainda lembra o de A insustentável leveza do ser, de Kundera: uma trama que fala de amor em meio a conflitos resulta em filme. Em ambos os casos, sem grandes ambições estéticas. Está-se diante de histórias de amor. No caso da adaptação feita de Murakami, estão lá os prados e os bosques, motivando cenas de amor em meio à natureza. Seriam apenas chavões cinematográficos se não trouxessem nos créditos o nome de um escritor respeitado.
Talvez o nome do escritor seja, para o filme, o que a noção de autoficção seja para que uma obra pouco ambiciosa seja vista como uma audácia, pelo que possa haver nela de confessional.
A neve que cai não pode nos remeter à complexidade da personagem Hans Castorp, em A montanha mágica. Mann criou uma alegoria que representava a Europa no período entre-guerras. As vezes em que Murakami remete a um mundo complexo, agitado, como foi o ano de 1968, sobretudo para um protagonista inserido em um contexto universitário, apontam para um mundo em transformação. A sua própria transformação de rapaz em adulto, tema recorrente do romance de formação, agora reaproveitado em uma obra que é vista como autoficção, mesmo que apenas uma situação ligeira seja autobiográfica, existe como alusão ao personagem de Mann.
 
 



Evidentemente, esses temas de natureza psicológica, existencial, rendem pouco no cinema, se não estiverem atrelados a conflitos de impacto dramático. Fica difícil, em um filme, colocar personagens isolados do mundo, pensando sobre seus passados e purgando traumas relacionados a suicídios ou de natureza sexual, e representar tudo isso ao espectador sem cair numa representação didática. Aqui, percebe-se uma atenção para que a imagem e a música de fundo compensem a impossibilidade de o filme mostrar aquilo que aparece nos relatos dos personagens, no livro. Relatos longos, que demandariam outros filmes. O silêncio com a paisagem ao fundo ainda é chavão. A obra literária, que apoia sua densidade em relatos de personagens, perde sua essência, e se torna mais um filme sobre amor.
Não é só Murakami que sofre com esse empobrecimento de uma obra literária quando adaptada. Thomas Mann também teve A montanha mágica adaptado para o cinema. Um romance em que, como se costuma dizer, nada acontece, pois a intenção é mostrar o tédio. Acontece no plano existencial, acontece como alegoria do momento histórico, mas não como trama que possa construir uma empatia no público de cinema. Naquele público que foi ver o filme sem se importar com o livro. Com certeza, é uma experiência frustrante para ele.



Novamente, cabe perguntar se recursos como a música de Charles Aznavour podem criar algum tipo de efeito estético que remeta ao romance de Mann. Ou se as imagens de montanhas cobertas de neve podem representar o que o livro necessita de oitocentas páginas para fazer: a sensação de que o tempo não passa e que só é possível, para quem está fora do mundo, olhar para si mesmo. Mesmo quando as pessoas em redor conversam sobre os dilemas desse mundo.
Adaptações de clássicos interessam porque causam expectativas. É quase como uma necessidade de se conferir se é possível reconhecer o livro no filme. No caso de Mann, isso pode gerar certo respeito pelo filme, desde que se anuncia a sua feitura. No caso de Murakami, a adaptação ocorreu poucos anos após a publicação do livro. Ele não seria um clássico. Mas era um sucesso de vendas. Ou seja, o filme atrairia porque o livro fora um grande sucesso. O que talvez desse à adaptação uma liberdade maior de destoar, de reduzir a narrativa literária a paisagens e beijos de amor. Afinal, a liberdade de se narrarem cenas de sexo, em livro, é reduzida quando aquele vira filme e precisa atrair um público diverso.
Em ambos os casos, as obras literárias perdem como elaborações estéticas.
Murakami fez seu Norwegian wood a partir dessas alusões a outras obras. Não há nele uma arquitetura complexa. O modo como a música dos Beatles ou o romance de Mann são citados vale como pista para uma possibilidade de leitura. São alusões que iluminam apenas semelhanças no enredo, momentos específicos da narrativa. Mas não apontam para procedimentos estéticos assimilados ou transformados no romance. Ainda é uma forma simples, talvez imatura, de relação intertextual. Murakami se tornaria mais complexo em obras como Kafka à beira-mar ou O sono. Mas nas suas origens está uma história de amor simples, que remete a grandes obras como forma de produzir um efeito de profundidade e de complexidade que ainda não está nela.    
Algo que nos remete a um tempo em que os sucessos de venda continham um teor de romantismo, no que se refere a querer uma certa ingenuidade. Ingenuidade mesmo quando entremeada por erotismo.

*Professor do curso de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade 

terça-feira, 3 de abril de 2018

AUTOFICÇÃO OU AUTOBIOGRAFIA


Luiz Zanotti*

Autobiografia talvez seja um dos primeiros gêneros no mundo, pois as pessoas têm a tendência de querer registrar os seus feitos, e esta tendência é ainda mais exacerbada na sociedade dos indivíduos (Norbert Elias, 1994) que mostra como tendência a individualidade. Assim, alguns críticos, como por exemplo, Doubrousky, procura criar um novo gênero, a quem ele chama autoficção,
Este “novo” gênero tem sua gênese num debate entre Doubrousky e Philippe Lejeune que no seu livro Le pacte autobiographique  (1987, p. 31), problematizava a possibilidade de existir um romance onde o autor era a própria personagem, apesar de ser um assunto menor pois, como sabemos o resultado estético da obra está acima desta escolha.  Nesta perspectiva, Doubrovsky resolveu escrever um romance autoficcional, criando este neologismo, que consideramos longe de adquirir um caratê de gênero.
A verdade é que a autobiografia tem toda uma característica de descrição de fatos verdadeiros, o que nos lembra Hayden White na sua problematização entre história e literatura na busca da realidade.  O teórico inglês Hayden White que afirma que a narrativa histórica apenas se diferencia da narrativa literária pelo conteúdo, visto que os métodos de historiadores ou escritores literários são os mesmos. De acordo com ele, o trabalho histórico utiliza como “veículo” a narrativa, elaborada através de uma representação ordenada e coerente de acontecimentos. Assim, White conclui que toda explanação histórica é retórica e poética por natureza.
A meta-história − estudo referente à História enquanto historiografia − de White representa uma abordagem construtiva para a historiografia porque incentiva a reflexão sobre a questão da verdade. O conceito de História como narrativa põe em questão as pretensões de verdade e a objetividade do trabalho dos historiadores. Segundo Norman Wilson, White considera as narrativas históricas como ficções verbais, com seus conteúdos sendo tanto inventados quanto comprovados. Desta forma, as narrativas históricas seriam ficções que teriam mais relação com a literatura do que com a ciência.
Na contemporaneidade, essa constatação torna-se muito importante, pois a História abandona a pretensão de uma verdade “absoluta” que, supostamente, poderia ser obtida através de documentos históricos. O filósofo francês Michel Foucault em seu livro A arqueologia do saber (1969) apresenta essa antiga busca pelos documentos que diziam a verdade, e com que direito podiam pretendê-lo, se eram sinceros ou falsificadores, bem informados ou ignorantes, autênticos ou alterados.Essa posição acerca de um documento foi mudada. Agora a História considera como sua tarefa primordial não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo como uma materialidade documental, ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações.
Essa impossibilidade de se alcançar uma verdade insofismável é abordada pelo historiador francês François Dosse citar o processo de Maurice Papon[1], em que historiadores de ofício foram convocados ao pretório. Ele alerta contra o exagero e o grande risco de o historiador engajar-se no juramento jurídico de dizer toda a verdade, traduzindo uma situação de desconforto e de dúvida quanto ao seu estatuto.
Desta forma, a diferença fundamental entre a autobiografia e a autoficção seria o acordo com a verdade, que como vemos no ensaio Matéria e memória (1990) de Henry Bergson, é extremamente frágil, pois na relação entre imagens e lembranças é importante notar que tanto o passado como o presente continuam ativos, circunscrevendo os limites de nossa interpretação. Para Bergson (1990, p. 62), este conceito de imagens-lembrança identifica apenas a parte inteligível da relação com os objetos, onde, ao invés de experimentarmos as imagens, as identificamos, tentando recuperar sua claridade e, principalmente, sua utilidade em nossas vidas.
Assim, ao buscarmos as nossas memórias, identificamos um outro tipo de imagem, que não apenas reconhece por hábito uma atividade passada de nossa vida, mas que “recria” esse passado: as imagens-ação. Das imagens-ação, esperamos sempre ter uma atitude voltada para o presente, mas para um presente sensível, que tem a memória como uma forma criadora do passado.




[1] Oficial do governo francês de Vichy que colaborou com o Regime Nazista.
 

*Professor do Mestrado em Teoria Liteéria da UNIANDRADE