Edson Ribeiro da Silva*
Em 1987, Haruki
Murakami publicou Norwegian wood. O
romance foi sucesso imediato, vendeu milhões de exemplares. Ou seja, algo que,
há trinta anos, possuía um significado ambíguo. Era uma década em que, de vez
em quando, via-se um escritor de renome em meio a obras comerciais nas listas
de mais vendidos.
Murakami ainda
não era o prestigiado segundo nome mais cotado nas listas anuais para o Prêmio
Nobel de Literatura. A obra também não faria pensar em um escritor que se tornaria
o maior nome vivo da língua japonesa dali a três décadas. Talvez ela lembre
mais um retorno ao comparável A
insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, modelo de livro que vende
milhões antes de o autor ser reconhecido. Kundera depois seria colocado em uma
posição um pouco abaixo da de Murakami na lista citada acima.
O leitor,
provavelmente, nos dois casos, ouvia falar de um romance que falava de amor.
Que tratava dos conflitos dentro do relacionamento amoroso e do desempenho
sexual dos amantes. Tudo narrado com um número satisfatório, para certo leitor-modelo,
de cenas de sexo oral e genital. E longas conversas apimentadas a respeito
disso. E, no entanto, era um tipo de livro que atraía o leitor que não
procurava diretamente a obra erótica, daquelas que poderiam ser compradas em
qualquer banca de revistas. Mistério dos grandes vendedores de livros, essa
situação de uma obra ser comentada, recomendada, emprestada, tudo porque há
nela cenas detalhadas de sexo. Mistério, talvez explicação.
Tanto em Kundera
quanto em Murakami, a narrativa segue um formato tradicional. Não há nenhuma
elaboração do foco narrativo que faça a obra surpreender, causar estranhamento.
A ordem da narrativa também não exige do leitor nenhum esforço para
reconstituir uma cronologia; ela está lá, sem esforços para que a representação
do tempo não seja a do calendário. Kundera tenta salvar seu livro pela
representação de um momento tenso da história de seu país: a invasão soviética,
com a consequente perseguição a quem se opusesse ao dominador. O livro de
Murakami vem sendo chamado de “autoficção”, aparecendo nas listas de obras que
exemplificam a tendência. Assim, falar de sexo fazendo disso uma espécie de
confissão das próprias limitações pode aproximar o livro daquilo que muitos
teóricos veem como um dos filões seguidos pela autoficção: falar de traumas
pessoais como forma de purgá-los.
Norwegian wood pode ser autoficcional nas
primeiras páginas. Algo que lembra obras do romance de formação: o estudante em
seu contexto de estudos, sua rotina entre livros, salas de aula, refeitórios e alojamentos.
Poderia ser tudo verdade, memorialístico. O nome Toru Watanabe lembra o do
autor; assim, o protagonista apresenta traços autobiográficos. Mas quando a
narrativa avança na direção da história de amor, os fatos vão ficando menos
prováveis. O suicídio de um amigo, namorado da garota pela qual o
narrador-protagonista é apaixonado. Tal suicídio desencadeia uma crise na
garota, Naoko. A mistura da crise com o fato de o protagonista ter “avançado o
sinal” em direção a assumir uma relação com a garota fazem com que ela se
interne em uma espécie de sanatório. Na verdade, mais uma espécie de
hotel-fazenda, onde os internos passam anos executando trabalhos de rotina e
sem contatos com o mundo exterior ao local. Alguns decidem morar ali. Pagam
caro por isso. Tal sanatório fica nas proximidades de Osaka, em uma área
cercada por montanhas, prados e muitos bosques.
Os bosques justificam o nome do livro, uma música dos Beatles. Bosques nos quais neva fortemente no inverno.
A letra dos Beatles fala de separação, de um amor que passa rápido. Talvez ela pudesse lembrar que os amores passam, que não adianta insistir para que eles sejam permanentes. Lembra a cena de sexo entre o protagonista e a garota: quando amanhece, ele já foi embora. Ou seja:
Norwegian Wood
I once had a
girl
Or should I say
she once had me
She showed me her room
Isn't it good Norwegian wood?
She asked me to stay
And she told me to sit anywhere
So I looked
around
And I noticed
there wasn't a chair
I sat on a rug
biding my time
Drinking her
wine
We talked until
two and then she said
"It's time
for bed"
She told me she
worked
In the morning and started to laugh
I told her I
didn't
And crawled off
to sleep in the bath
And when I awoke
I was alone
This bird had
flown
So I lit a fire
Afinal, essa
garota pode ser Naoko, a moça que se interna no sanatório cercado por bosques,
no romance. Essa garota, na infância, também viu o suicídio da irmã mais velha.
Um excesso que começa a tirar o livro da órbita da autoficção e mostrar-se como
drama romântico. Da mesma forma, a história contada por Reiko, a companheira de
quarto de Naoko, no sanatório, contém aqueles excessos dramáticos que podem
justificar que leitores comprem o livro. Uma cena longa de lesbianismo entre
uma mulher e uma adolescente, quase criança. Muita ousadia nas descrições.
O romance aproveita a letra do Beatles na cena em que o protagonista e Naoko têm a primeira relação sexual. Na manhã seguinte, ela sumiu. Também remete à noite em que ele dorme no quarto das duas moças, no sanatório: de madrugada, Naoko aparece diante dele, no escuro, se despe, e depois some. São alusões frágeis, para o leitor apenas não achar que o nome da obra é exagero. A narrativa se passa no final da década de 1960, quando Beatles ainda era tocado nos rádios que aparecem na narrativa. Em 1968, anos de mudanças e de agitação no meio estudantil. O protagonista é um estudante dividido entre uma garota dócil e insegura e uma mulher de meia-idade, liberada sexualmente.
O romance aproveita a letra do Beatles na cena em que o protagonista e Naoko têm a primeira relação sexual. Na manhã seguinte, ela sumiu. Também remete à noite em que ele dorme no quarto das duas moças, no sanatório: de madrugada, Naoko aparece diante dele, no escuro, se despe, e depois some. São alusões frágeis, para o leitor apenas não achar que o nome da obra é exagero. A narrativa se passa no final da década de 1960, quando Beatles ainda era tocado nos rádios que aparecem na narrativa. Em 1968, anos de mudanças e de agitação no meio estudantil. O protagonista é um estudante dividido entre uma garota dócil e insegura e uma mulher de meia-idade, liberada sexualmente.
A alusão principal, que
percorre de forma marcante grande parte do livro, na verdade, diz respeito a
Thomas Mann. O romance A montanha mágica
inspira toda a parte da narrativa de Norwegian
wood que se passa no sanatório. Não se trata apenas de uma semelhança nas
situações. Um sanatório refinado, em meio a montanhas, onde pessoas com
problemas vivem afastadas do que ocorre no mundo lá fora. Um lugar que fica
isolado pela neve, no inverno. E há bosques onde se pode passear, nos meses
mais quentes. O capítulo que narra a passagem no sanatório ocupa cerca de cem
páginas em um livro em que os capítulos, em média, ocupam trinta. Antes dele, o
personagem já aparecia lendo A montanha
mágica. A leitura o fazia parecer pedante em locais como o refeitório da
universidade ou o alojamento dos estudantes. Ele também o lia em seu quarto. E,
embora o personagem não pareça querer discutir o romance de Thomas Mann ou
extrair dele procedimentos estéticos, falar dele serve para que o leitor
reconheça, nas partes sobre o sanatório, que Murakami está se inspirando ali.
Uma relação intertextual que o autor faz questão de que seja percebida. Por
isso, não deixa o leitor esquecer. No sanatório, o personagem também lê A montanha mágica. Outra vez, seria uma
alusão gratuita se a situação narrada não remetesse ao livro de Mann. No
entanto, tal qual acontecia com a alusão à música dos Beatles, o efeito aqui
parece de paralelismo, sem ir muito longe. O romance de Thomas Mann é uma das
grandes obras sobre o tempo e o modo como ele é apreendido. A passagem lenta do
tempo, para quem está em um sanatório, longe dos fatos do mundo exterior, é
lenta, e Mann constrói a estrutura do romance a partir dessa sensação. Em
Murakami, a passagem do tempo se acelera, porque é ali, naquele capítulo, que
os fatos mais instigantes do passado dos personagens assomam, misturados a
cenas de sexo. É como se aquele capítulo fosse o responsável pela atração
exercida por um público mais consumidor que leitor. Thomas Mann está ali para
que esse leitor menos atento ou que tenha lido menos os grandes clássicos tenha
uma pista para a compreensão da estrutura mais superficial da obra. A montanha mágica está lá pela semelhança
entre as tramas. Não se discute o tempo. Não se representa a passagem do tempo.
Está lá também para garantir alguma profundidade, através do diálogo com os
clássicos, algo que transcenda um lastro comercial aplicável ao livro.
Talvez essa
relação intertextual frágil seja um sintoma de que se trata de um autor ainda
imaturo, mas que vai exigir que sua obra dialogue com a grande literatura.
Murakami amadureceu, fez romances mais densos, que perseguem efeitos estéticos
mais complexos. É curioso ainda observar que o livro, êxito de público, motivou
uma adaptação para o cinema, em 2011. Caso que ainda lembra o de A insustentável leveza do ser, de
Kundera: uma trama que fala de amor em meio a conflitos resulta em filme. Em
ambos os casos, sem grandes ambições estéticas. Está-se diante de histórias de
amor. No caso da adaptação feita de Murakami, estão lá os prados e os bosques,
motivando cenas de amor em meio à natureza. Seriam apenas chavões
cinematográficos se não trouxessem nos créditos o nome de um escritor
respeitado.
Talvez o nome do
escritor seja, para o filme, o que a noção de autoficção seja para que uma obra
pouco ambiciosa seja vista como uma audácia, pelo que possa haver nela de
confessional.
A neve que cai não
pode nos remeter à complexidade da personagem Hans Castorp, em A montanha mágica. Mann criou uma
alegoria que representava a Europa no período entre-guerras. As vezes em que
Murakami remete a um mundo complexo, agitado, como foi o ano de 1968, sobretudo
para um protagonista inserido em um contexto universitário, apontam para um
mundo em transformação. A sua própria transformação de rapaz em adulto, tema
recorrente do romance de formação, agora reaproveitado em uma obra que é vista
como autoficção, mesmo que apenas uma situação ligeira seja autobiográfica,
existe como alusão ao personagem de Mann.
Evidentemente,
esses temas de natureza psicológica, existencial, rendem pouco no cinema, se
não estiverem atrelados a conflitos de impacto dramático. Fica difícil, em um
filme, colocar personagens isolados do mundo, pensando sobre seus passados e
purgando traumas relacionados a suicídios ou de natureza sexual, e representar
tudo isso ao espectador sem cair numa representação didática. Aqui, percebe-se
uma atenção para que a imagem e a música de fundo compensem a impossibilidade
de o filme mostrar aquilo que aparece nos relatos dos personagens, no livro.
Relatos longos, que demandariam outros filmes. O silêncio com a paisagem ao
fundo ainda é chavão. A obra literária, que apoia sua densidade em relatos de
personagens, perde sua essência, e se torna mais um filme sobre amor.
Não é só Murakami que
sofre com esse empobrecimento de uma obra literária quando adaptada. Thomas
Mann também teve A montanha mágica
adaptado para o cinema. Um romance em que, como se costuma dizer, nada
acontece, pois a intenção é mostrar o tédio. Acontece no plano existencial,
acontece como alegoria do momento histórico, mas não como trama que possa
construir uma empatia no público de cinema. Naquele público que foi ver o filme
sem se importar com o livro. Com certeza, é uma experiência frustrante para
ele.
Novamente, cabe
perguntar se recursos como a música de Charles Aznavour podem criar algum tipo
de efeito estético que remeta ao romance de Mann. Ou se as imagens de montanhas
cobertas de neve podem representar o que o livro necessita de oitocentas
páginas para fazer: a sensação de que o tempo não passa e que só é possível,
para quem está fora do mundo, olhar para si mesmo. Mesmo quando as pessoas em
redor conversam sobre os dilemas desse mundo.
Adaptações de
clássicos interessam porque causam expectativas. É quase como uma necessidade
de se conferir se é possível reconhecer o livro no filme. No caso de Mann, isso
pode gerar certo respeito pelo filme, desde que se anuncia a sua feitura. No
caso de Murakami, a adaptação ocorreu poucos anos após a publicação do livro.
Ele não seria um clássico. Mas era um sucesso de vendas. Ou seja, o filme
atrairia porque o livro fora um grande sucesso. O que talvez desse à adaptação
uma liberdade maior de destoar, de reduzir a narrativa literária a paisagens e
beijos de amor. Afinal, a liberdade de se narrarem cenas de sexo, em livro, é
reduzida quando aquele vira filme e precisa atrair um público diverso.
Em ambos os
casos, as obras literárias perdem como elaborações estéticas.
Murakami fez seu
Norwegian wood a partir dessas
alusões a outras obras. Não há nele uma arquitetura complexa. O modo como a
música dos Beatles ou o romance de Mann são citados vale como pista para uma
possibilidade de leitura. São alusões que iluminam apenas semelhanças no
enredo, momentos específicos da narrativa. Mas não apontam para procedimentos
estéticos assimilados ou transformados no romance. Ainda é uma forma simples,
talvez imatura, de relação intertextual. Murakami se tornaria mais complexo em
obras como Kafka à beira-mar ou O sono. Mas nas suas origens está uma
história de amor simples, que remete a grandes obras como forma de produzir um
efeito de profundidade e de complexidade que ainda não está nela.
Algo que nos remete a
um tempo em que os sucessos de venda continham um teor de romantismo, no que se
refere a querer uma certa ingenuidade. Ingenuidade mesmo quando entremeada por
erotismo.
*Professor do curso de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade
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