LITERATURA E SAMBA-ENREDO: PALAVRA MULTISSENSORIAL E IMAGEM
Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
Em 2019, o carnaval carioca mostrou ao público as obras literárias de
dois cearenses ilustres: José de Alencar e Rachel de Queiroz. A escola
responsável pela adaptação sonora e visual dos textos literários foi a União da
Ilha do Governador. O enredo, criado por Severo Luzardo Filho, já anunciava, a
um só tempo, o contexto literário clássico, a linguagem dialetal e a influência
do cordel. Sob o título A peleja poética
entre Rachel e Alencar no avarandado do céu, a diversidade do enredo era
completada pelo movimento armorial e pela arte da xilogravura:
Dessa forma, o cordel é usado como elemento intermediário, possibilitando
a adaptação dos clássicos literários, em uma festa popular como o carnaval. Além disso, o cordel também reforça os temas
regionais, o folclore e a própria brasilidade, traços que marcam as obras dos
dois escritores homenageados pela escola. Assim como os autores, o cordel
também é nordestino, sendo considerado, hoje, um patrimônio cultural:
Rádio não existia; jornal era raro. Quando este
chegava, levado dos grandes centros – Recife ou Fortaleza, por exemplo – com o
atraso normal dos meios de transporte de então, já o folheto se antecipava na
divulgação do fato. Tornava-se o folheto o elemento mais expressivo para que os
acontecimentos chegassem ao conhecimento de todos, lidos nos mercados, nas
feiras, nos serões familiares. (DIEGUES JÚNIOR, 1977, p. xvii)
A partir de 1920, até chegar o momento culminante da
literatura de cordel do Nordeste como veículo de comunicação, o folheto de
cordel superou todos os veículos existentes no momento, até mesmo o jornal.
(SILVA, citado em RESENDE, 2005, p. 99)
Com base em fragmentos de
inúmeras obras de Queiroz e Alencar, a escola dividiu o desfile carnavalesco em
cinco setores. No setor 1, destacava-se a cultura telúrica do nordeste, não
apenas pelo apego à terra, mas também pela associação entre o sujeito e a
natureza, e até mesmo pelo sofrimento causado pela seca. Nesse aspecto, a
agremiação buscou inspiração nestes trechos literários:
-
“Iam para o destino, que os chamara de tão longe, das terras secas e fulvas de
Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os
conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há
farinha e sempre há inverno...” (RACHEL, "O Quinze")
-
"Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as
matas do Ipu" (ALENCAR,”O Guarani”). (UNIÃO DA ILHA, 2019, grifo no original)
Batizada de O milagre da fé, a
comissão de frente da escola homenageava a religiosidade do nordestino, com
cenas que mostravam o povo rezando e pedindo ajuda, a Deus e a Padre Cícero. Na
letra do samba-enredo, essa performance é motivada por estes versos: “Vou pedir
a Padim Ciço / Abençoe nosso povo / Essa fé vai nos guiar / Chão rachado, meu
sertão / Peço a Deus pra alumiar / Terra seca que não seca a esperança / Arretada
vocação de te amar” (UNIÃO DA ILHA, 2019). Padre Cícero não só atende ao pedido
de seus fiéis, mas também surpreende a todos, quando surge em pleno céu (literalmente),
voando sobre um planador:
Ao longo do desfile, é nítido o cruzamento da cultura letrada com a
cultura popular. Do mesmo modo, ficção e realidade alternam-se, demonstrando
uma simbiose perfeita da literatura com o carnaval, o qual, segundo Bakhtin,
situa-se “nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida
apresentada com os elementos característicos da representação” (BAKHTIN, 2008,
p. 6). No que se refere à adaptação dos textos literários de Queiroz e Alencar
para os formatos de samba-enredo e de desfile carnavalesco, destaca-se o
aspecto multissensorial, pois a palavra que antes foi lida, nos livros dos dois
escritores cearenses celebrados pela escola, agora é ouvida, cantada e também
vista. No primeiro momento, o signo verbal realiza-se em sua plenitude, por abranger
simultaneamente os sentidos da visão, da audição e da fala. Posteriormente, em
uma espécie de extrapolação, garantida pela intersemioticidade do desfile
carnavalesco, a palavra torna-se imagem, por meio de fantasias, alegorias e
adereços e aguçando ainda mais a visão. Esse caráter plural do carnaval também foi
analisado por Bakhtin. Conforme o teórico: “O carnaval criou toda uma linguagem
de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de
massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de maneira diversificada
[...] uma cosmovisão carnavalesca [...], que lhe penetra todas as formas”
(BAKHTIN, 2005, p. 122). De modo distinto, mas que pode complementar a
constatação de Bakhtin, o estudioso Roberto DaMatta acentua o caráter imagético
do carnaval neste trecho: “O desfile desses
grupos é revestido de extrema pompa, já que se fundamenta na teatralização que
tem como tema personagens, ambiente e ações” (DAMATTA, 1997, p. 58). Com base
na afirmação de DaMatta, é possível interpretar a imagem como resultante do
processo interartístico, protagonizado, no caso em análise, pela literatura e
pelo samba. Além disso, é imprescindível destacar o fato de que a concretude
imagética é a essência de todo desfile
carnavalesco, que, por sua vez, teatraliza, coreografa e organiza temporalmente
a narrativa, com o intuito de dar forma e corpo aos versos fugidios e à
sonoridade quase abstrata do samba-enredo.
Entretanto,
as artes se complementam (na tal “simbiose perfeita”), quando lembramos os
estudos de Mário de Andrade sobre a cultura musical brasileira, ou quando nos
deparamos com o conceito de etnomusicologia: “Se
a antropologia destaca a música ao lado do mito como espaços privilegiados da
análise (estrutural) das culturas, cabe à Etnomusicologia a construção teórica
de modelos que compreendam a articulação texto/contexto desde a música erudita
até a de definição popular” (DINIZ, 2010, p. 289). Evidentemente, tanto a
etnomúsica quanto a música, em sentido amplo, são artes sociais, assim como a
literatura e qualquer tipo de arte, seja ela popular ou erudita, afinal o
artista é sempre o leitor sensível do mundo e para o mundo.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, M. de. Aspectos da
música brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BAKHTIN,
M. Problemas da poética de Dostoiévski.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
_____.
A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2008.
DAMATTA,
R. Carnavais, malandros e heróis:
Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DIEGUES
JÚNIOR, M. Literatura de cordel. In: BATISTA, S. N. Antologia da literatura de cordel. Natal: Gráfica Manimbu, 1977, p.
i-xxvi.
DINIZ, J. Música popular e literatura em
diálogo: Mário de Andrade e as poéticas da palavra escrita e cantada. Revista Alea,
n. 2, vol. 12, Rio de Janeiro, dez. 2010, p. 288-307.
RESENDE,
V. de M. Literatura de cordel no
contexto do novo capitalismo: O discurso sobre a infância nas ruas.
Dissertação de Mestrado pela Universidade de Brasília – UnB, 2005.
UNIÃO
DA ILHA. União da Ilha do Governador − Carnaval 2019. Disponível em:
<http://www.gresuniaodailha.com.br>.
Acesso em: 5 mar. 2019.
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Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso
de Graduação de Letras da FAE. Autora do blog Interartes (https://danielkobsveronica.wixsite.com/interartes).
Pós-Doutorado na área de Literatura e Intermidialidade realizado na UFPR, em
2018. E-mail: veronica.kobs@fae.edu
Olá, excelente perspectiva sobre cultura brasilera!!!
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