Luiz Zanotti*
A idéia deste artigo é examinar o processo intermidiático
da personagem “cangaceiro” presente na peça teatral “Auto de
Angicos” dirigido por Amir Haddad e
Corisco ( identificado como Lampião), em Deus
e o diabo na terra do sol, de
Glauber Rocha (1964). A idéia é mostrar como a norma extra-textual da coexistência de
elementos mutuamente excludentes se encontra presente, tanto no longa-metragem
de Glauber como no espetáculo de Amir Haddad.
Desta
forma, trabalhamos com a possibilidade da coexistência do “mau” e do “bom”, nos
afastando da grande maioria das obras sobre o cangaço, que destacam a
personagem do cangaceiro – dentro de um plano imaginário – ou como um completo
herói ou como um vilão, como é o caso de
inúmeros textos literários, fílmicos e
músicos, tais como: a literatura infantil (Lampião
e Maria Bonita: o Rei e a Rainha do Cangaço (2005), de Liliana Iacocca e
Rosinha Campos), a literatura ficcional, que vão dede o primeiro romance
escrito sobre cangaço no Brasil, O
cabeleira (1981), de Franklin Távola, até obras como Lampião, o Rei do
Cangaço (s/d.), de Eduardo
Barbosa, e Capitão Virgolino Lampião (1975), de Nertan Macedo, os filmes Lampião, o rei do cangaço, de Coimbra, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, as
músicas: Acorda Maria Bonita (1957),
composta pelo cangaceiro Volta Seca do bando de Lampião; Mulher rendeira (s/d), composição atribuída por muitos a Lampião;
bem como a trilha musical de Deus e o
diabo na terra do sol (1964), de Sergio Ricardo e Glauber Rocha.
Esta
posição dicotômica “bonzinho-malvado” repercute até mesmo entre renomados
historiadores e antropólogos, tais como, Luitgarde Barros (2000), Frederico
Mello (2005) e Maria Christina Machado (1978), entre outros, que possuem diferentes
visões sobre este assunto, sendo que enquanto
Barros e Mello ressaltam o seu caráter ligado ao banditismo, procurando
desmistificar a imagem mitológica de Lampião como justiceiro e ideologicamente
voltado para a defesa dos fracos num combate ao coronelismo, Machado apresenta
Lampião − dentro de uma perspectiva marxista −
não como um fato isolado, mas sim como o resultado de uma época em que
se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra.
(MACHADO, 1978, p. 6).
Pode-se dizer que tanto a teoria dos efeitos de
Iser, como a estética da recepção, que tem como o seu principal artífice Hans
Robert Jauss, que Iser elabora o constructo da existência de uma assimetria
inicial entre texto e leitor, sendo que a estética do efeito almeja compreender
o ato de leitura como uma forma particular de negociação daquela assimetria.
Para tanto, investiga a estrutura própria dos textos literários, valorizando a
interação específica que tal estrutura provoca.
Glauber
Rocha ao filmar Deus e o Diabo vai
buscar uma situação em que apresenta Corisco como a própria constatação da
coexistência de elementos mutuamente excludentes pois, no filme, o ator Othon Bastos que encena a personagem
Corisco, além de emprestar a sua voz a sua própria personagem, faz ainda uma
outra voz, a do Santo Sebastião - algo mais grave que a de Corisco, a idéia de
usar a mesma voz para deus e para o diabo, segundo Avellar (1995, p. 22) surgiu
somente durante a montagem, de modo a que o espectador pudesse identificar uma
certa semelhança entre as propostas e mais rapidamente concluir com o filme que
a terra é do homem, nem de deus nem do diabo.
Esta
coexistência, segundo Claudio da Costa, também pode ser percebida em um
espelhamento de uma na outra, pois enquanto Sebastião tem parte com Deus e com
o Diabo, como diz Antônio das Mortes, Corisco é o diabo que foi possuído por
São Jorge. Esses espelhamentos dobram em ambigüidades a palavra do cego e de
seus mitos. A palavra mítica, afirma Luiz Costa Lima, é verdade e engano,
simultaneamente. Com as palavras de Marcel Detienne, Costa Lima nos diz que,
"no pensamento mítico os contrários são complementares" (COSTA LIMA
citado em COSTA, 2000, p.68).
Assim,
a existência dos mutuamente excludentes que aparecem em Virgolino e Maria, também faz parte do repertorio de Deus e o Diabo, que trabalha não somente
na dualidade da voz de Othon Bastos, mas também no conflito entre Antônio das
Mortes e Manuel, o matador de cangaceiros e o vaqueiro são personagens
igualmente condicionados por deus e o diabo, um na forma de agir, outro no modo
de pensar.
*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade
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