Sigrid Renaux*
Publicado em 1993, o livro Recortes, de Antonio Candido, reúne escritos sobre tópicos bastante
variados, “formando uma espécie de visão circular sobre o mundo, as pessoas, a
literatura”. Entre outros, apresenta textos sobre mestres tanto do pensamento
brasileiro, como Alceu Amoroso Lima, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, como mestres
do pensamento estrangeiro, mas “ligados com o Brasil” como Roger Bastide, Otto
Maria Carpeaux e Anatol Rosenfeld. Como Candido explica, “muitas vezes um
crítico se realiza bem nos escritos de circunstância, tanto quanto nos mais
elaborados. Foi o que me decidiu juntar esses recortes, que, ao contrário dos
anteriores, formam um livro solto, com textos mais numerosos sobre assuntos os
mais variados”(CANDIDO: 1993, p.9).
De interesse imediato para
mestrandos, as considerações de Antonio
Candido sobre literatura e, por extensão, sobre literatura
nacional, em “Dialética Apaixonada”, fazem-nos refletir sobre a abrangência que qualquer
análise de textos literários deve ter, independentemente da abordagem crítica
adotada – seja ela estruturalista, estilística, psicanalítica ou genética,
entre muitas outras. “Dialética Apaixonada” é, na realidade, uma homenagem que
Candido presta a Otto Maria Carpeaux, ao discorrer não apenas sobre sua
trajetória intelectual no Brasil, a partir de 1939 (perseguido pelo nazismo,
teve de sair de Áustria, seu país natal), mas principalmente ao comentar sua
obra prima: a História da Literatura
Ocidental.
Como
Candido afirma, a respeito de Carpeaux, “sua visão universal permite transpor
as limitações eventuais do nacionalismo crítico, cuja função histórica é
importante em certos momentos, mas não deve servir para obliterar a dimensão
verdadeira do fenômeno literário[1],
que por sua natureza é tanto transnacional quanto nacional” (CANDIDO: 1993, p.92).
Se essas considerações já nos permitem visualizar o fenômeno literário como
“transnacional” – diz-se de fatores, atividades ou políticas comuns a várias
nações integradas na mesma união política e/ou econômica – e “nacional” – a literatura
como “conjunto de obras literárias de reconhecido valor estético, pertencentes
a um país, época, gênero, etc.” (HOUAISS) – , é na afirmação de Carpeaux de
que, em sua obra, “A literatura é, pois, estudada (...) como expressão estilística do Espírito objetivo, autônomo, e ao mesmo
tempo como reflexo das situações sociais” (CANDIDO: 1993, p. 92), que percebemos
imediatamente a importância desta asserção. Pois não há como separar, numa
análise do texto literário, essa “expressão estilística do Espírito objetivo” –
“encarnado nas diversas criações sociais e culturais”, segundo Candido (1993, p.92)
, do fato de ser igualmente “reflexo das situações sociais” que concretiza.
Este “idealismo dialético fecundo” que Candido verifica em Carpeaux – pois sua obra “manifesta um movimento
incessante entre os opostos, considerados não alternativas ou opções, mas
condições bem-vindas de uma investigação que encara a verdade como busca da verdade” (CANDIDO: 1993, p.
93) –, mostra como no caso da história literária, pensar assim importava
em abranger, num amplo movimento interpretativo unificador, tanto a autonomia da obra (concebida como
manifestação concreta do Espírito objetivo) quanto a sua dependência em relação à sociedade no tempo e no espaço (concebida
como matéria-prima da observação e da imaginação) pois ambas
as concepções asseguram “o respeito ao mundo próprio da literatura sem
desconhecimento da sua inserção no mundo”(CANDIDO: 1993, p.93).
Após citar exemplos de Carpeaux que revelam sua originalidade tanto na
análise dos movimentos literários como na maneira de se ordenar autores, com
“ousadia intelectual e julgamento firme” (CANDIDO: 1993, p. 94), Candido
encerra afirmando que a leitura da História
da literatura ocidental “é indispensável por ser uma das melhores
introduções possíveis ao mundo da literatura, como fica mais evidente à medida
que o leitor vai conhecendo os volumes sucessivos” (1993, p.95).
O título “Dialética apaixonada” revela, portanto, duas dimensões de
Carpeaux que só uma leitura da História da
literatura ocidental poderia comprovar:
– o valor do substantivo dialética – que Carpeaux absorveu, segundo
Candido, em Hegel; no hegelianismo, lei que caracteriza a realidade
como um movimento incessante e contraditório, condensável em três momentos
sucessivos (tese, antítese e síntese) que se manifestam simultaneamente em
todos os pensamentos humanos e em todos os fenômenos do mundo material
(HOUAISS);
– e o valor do qualificativo “apaixonada”: este amor intenso e
profundo pela literatura que enobrece e determina a natureza da dialética de
Carpeaux.
Que todos nós,
professores e mestrandos, possamos fazer uso desta “Dialética apaixonada”,
quaisquer que sejam os enfoques teóricos e as perspectivas que orientam nossos
estudos literários.
Referências:
CANDIDO, A. Recortes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
CARPEAUX, O.M. História da
literatura ocidental. São Paulo:
Leya Brasil, 2014. 10 vols.
HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa.
*Professora das disciplinas Poéticas da
Modernidade e Teorias da Poesia no Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
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