Verônica
Daniel Kobs*
De uns tempos pra cá, a sétima arte tem
privilegiado histórias as reais (de celebridades e de desconhecidos notáveis),
alavancando o mercado de biografias. O motivo disso é bem simples, afinal o interesse do público pela vida alheia é cada vez maior. No final do
século XX, a revista Veja, de
26/07/95, assinalava a ascensão do gênero, “que só perdia para as
publicações de ‘auto-ajuda’ – tanto que entre julho de 1994 e julho de 1995
haviam sido lançadas 181 biografias, o que significa uma a cada dois dias, e
quatro a cada semana” (SILVA, 2009, p. 153). Já no século XXI, o jornal Correio do Povo de 19/12/04 reiterava: “As biografias ainda são grande destaque entre
as preferências dos leitores e boa atração das editoras” (CORREIO DO POVO,
2004, p. 20).
Hoje, mais de dez anos depois, as biografias
continuam a fazer sucesso. No início de 2015, Sergio Almeida analisou o mercado
editorial português e constatou o “‘voyeurismo’
crescente da sociedade” (ALMEIDA, 2016), anunciando, já no mês
de janeiro daquele ano, a publicação de 6 grandes títulos (com destaque para o
livro de Emily Herbert, sobre a vida de Robin Williams) e de vários outros, todos
sobre o Papa Francisco. No mesmo ano, é importante mencionar que, após
discussões polêmicas, foi liberada a publicação de biografias sem a necessidade
de permissão prévia. Em 2016, o site da Amazon divulga o lançamento de 20
biografias no formato e-book, com 10
títulos bastante aguardados pelo público, incluindo duas publicações sobre o
juiz Sérgio Moro. No cinema e na TV, os filmes biográficos reafirmam a
tendência já consolidada na literatura. Títulos de sucesso, como Clube de compras Dallas, O lobo de Wall Street, Selma, Grandes olhos e Doze anos de
escravidão, ainda estavam entre os mais comentados pelo público.
Recentemente, porém, inúmeros filmes do mesmo gênero foram lançados,
alimentando o gosto e o debate pela vida alheia e renovando a lista. Considerando os principais
festivais e premiações de cinema e TV, com ênfase ao Festival de Toronto 2015, Oscar 2016 e Festival de Berlim 2016, as
biografias surpreendem:
- Minisséries / filmes para a TV (2015-16):
Bessie; Grace Kelly; The secret life
of Marilyn Monroe; e Luther.
- Filmes (2015): Spotlight; A grande aposta;
Joy, o nome do sucesso; O regresso; Carol; A garota dinamarquesa;
Trumbo; Aliança do crime; The program; Born to
the blue; I saw the light; Under
the influence; Eva no duerme; e El clan.
- Filmes
(2016): Miles Ahead; Alone in Berlin; Nise, o coração da loucura; e O
dono do jogo.
Para tentar explicar o sucesso das biografias no
mercado contemporâneo, a pesquisadora Paula Sibilia afirma que o elemento-chave
é o tempo: “(...) tudo que existe, existe no tempo” (SIBILIA, 2005, p. 41).
Porém, o tempo, agora, “não é mais compartimentado geometricamente. E ao se
converter em um contínuo fluido, ondulante e total, sua função (...) parece ter
se intensificado e complexificado” (SIBILIA, 2005, p. 41). A conclusão parece
óbvia: as biografias constituem, hoje, tentativas de registrar e eternizar
histórias como reação à transitoriedade e ao imediatismo, afinal, o nosso tempo
tempo não é mais o mesmo. No cotidiano do novo século, ele é “líquido” (Cf.
Bauman, 2007), invisível e excessivamente acelerado.
O sucesso editorial das biografias e das
autobiografias (...) excede as margens de um mero fenômeno de mercado: há uma
revalorização das histórias individuais e familiares, e um revigorado interesse
pelas vidas alheias. Nas mais diversas mídias, percebe-se uma voracidade com
relação a tudo que remeta a “vidas reais”. Da proliferação de documentários em
primeira pessoa ao sucesso internacional dos reality-shows e ao surpreendente auge dos blogs (...). (SIBILIA, 2005, p. 45-46)
Paula Sibilia ainda enfatiza o alargamento da esfera
privada, que passa a ser de domínio público, transição que se relaciona
intrinsecamente com a “espetacularização do eu” (SIBILIA, 2005, p. 47). A
partir dessa perspectiva, pode-se associar a ideia da autora aos postulados de
Guy Debord e Vanessa Schwartz, que sublinham, respectivamente, o interesse
humano pelo espetáculo e pela morbidez. Aliás, nesses quesitos, um filme de
2015 que obteve grande destaque foi Aliança
do crime (EUA), dirigido por Scott Cooper e estrelado por Johnny Depp. Todos
conhecemos bem o comportamento do espectador médio de cinema, quando um filme
termina e os créditos começam a subir: assim que as luzes se acendem e a
expressão The end aparece na tela, a
maioria sai da sala, sem nem ao menos ler os nomes dos atores que fizeram os
papéis principais da história. Entretanto, no caso de Aliança do crime as coisas aconteceram de modo bastante diferente.
Os créditos do longa mostravam fotos e reportagens reais dos assassinatos
cometidos por Whitey Bulger e isso chamou a atenção do público, que permaneceu
na sala de cinema até que as últimas palavras e imagens aparecessem na tela. Essa
combinação de realidade e ficção nos leva aos primórdios da sétima arte. Os
primórdios do cinema brasileiro, por exemplo, foi marcado por filmes que mostravam
tomadas da Baía de Guanabara e que registravam o Carnaval em João Pessoa, no Rio
de Janeiro e em Curitiba. Depois disso, os sucessos foram os filmes de enredo,
baseados nos crimes de maior repercussão na mídia nacional. E o que dizer da
experiência dos irmãos Lumière, que filmaram uma locomotiva em movimento?
Acompanhando o panorama que Vanessa Schwartz
descreve, de Paris, no fim do século XIX, é impossível não se dar conta das
coincidências que aproximam o público daquela época do leitor/espectador
contemporâneo, o que nos leva a outro raciocínio: o interesse do homem pelo
espetáculo e pela tragédia transcende ao tempo. É universal e eterno. Para
demonstrar isso, a autora estabelece a função do necrotério parisiense,
mencionando que o local “atraía tanto visitantes regulares quanto grandes
multidões de até 40 mil pessoas (...), quando a história de um crime circulava
na imprensa (...) e os visitantes curiosos faziam fila (...) para ver a vítima”
(SCHWARTZ, 2001, p. 413). Seguindo a mesma proposta de espetacularização e
morbidez, os parisienses contavam também com as atrações do museu Grévin,
idealizado para ser “um aprimoramento dos jornais, como um modo mais realista
de satisfazer o interesse do público pelos fatos diários” (SCHWARTZ, 2001, p. 421).
Em função disso: “Os fundadores do museu prometeram que sua exibição iria
‘representar os principais eventos correntes com fidelidade escrupulosa e
precisão impressionante’, funcionando como ‘um jornal vivo’” (SCHWARTZ, 2001,
p. 421). Com base nos dois exemplos de entretenimento dados pela autora,
verifica-se o papel primordial do jornal, em ambos os casos, associado de modo
bastante salutar ao voyeurismo e à flânerie,
e havia uma razão para isso: “O fim do século XIX na França foi chamado de ‘era
dourada da imprensa’ (...)” (SCHWARTZ, 2001, p. 415). Para nos ajudar a
entender essa incômoda e surpreendente semelhança entre as sociedades dos
séculos XIX e XXI, os estudos de Debord trazem valiosa contribuição, sobretudo
no que diz respeito à crise identitária do sujeito, que pode chegar à negação
do eu e da própria realidade: “O espetáculo (...) manifesta na sua plenitude a essência
de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida
real” (DEBORD, 2005, p. 135); “O espetáculo (...) é a extinção dos limites do moi
e do mundo (...), é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do
falso pelo recalcamento de toda a verdade vivida (...). (...) compensa o sentimento
torturante de estar à margem da existência” (DEBORD, 2005, p. 137-138).
Com base nesse panorama, fica mais fácil compreender
as principais vantagens da biografia (hoje e sempre): reter o tempo; registrar
o presente e o passado; delimitar o território do eu, representando-o a partir
do outro e para os outros; revelar detalhes da vida alheia; proporcionar um
espetáculo, seja ele com final feliz ou trágico; e, claro, alimentar o
consumismo, afinal só há oferta quando há demanda.
Na atualidade, tudo isso faz sentido, afinal, a vida
diária de qualquer pessoa é registrada e remontada, por meio de posts e fotos, no Facebook e no Instagram:
selfie com os amigos; foto do que foi servido no restaurante; vídeo do bebê;
foto da tempestade chegando, ou dos estragos causados pela chuva... Todos escrevem sua história presente, para
compartilhá-la com inúmeros seguidores. Surgem, então, milhares de
autobiografias instantâneas em um único dia, as quais revelam indícios
importantes. O primeiro deles é a rapidez (tanto do registro quanto do “consumo”
da postagem). O interesse, tanto de quem escreve como de quem lê, é pela ação
imediata: o agora ou, no máximo, a viagem do fim de semana, o que acaba
redimensionando a função, o ritmo e o próprio status da História. Outra questão
relevante é a predominância do fato desimportante, quase banal... A curiosidade,
hoje, não é pelos grandes feitos, mas pelo comum, pelo corriqueiro. Mais um
aspecto que surpreende é o relato não confessional, pois a publicação é
obrigatória e condiciona a escrita ou a foto desde a simples ideia de escrever
ou fotografar para compartilhar com o(s) grupo(s). Por último (mas não menos
importante), surge o velho gosto pelo espetáculo, mas com uma diferença
crucial: além de espectador dos outros, somos também protagonistas. Nós somos o
espetáculo e nos mostramos em diversos ângulos, em todos os lugares, com muitas
pessoas diferentes e fazendo todo tipo de coisa.
Por tudo isso, o mercado das biografias agradece. Viva
o (auto)biografismo!
Referências:
ALMEIDA, S. Biografias em
alta nas apostas para 2015. Disponível em:
<http://comunidade.jn.pt/blogs/babel/archive/2015/01/06/biografias-em-alta-nas-apostas-para-2015.aspx>.
Acesso em: 20 mai. 2016.
CORREIO
DO POVO. Livros para conhecer a vida alheia. Correio do Povo. Caderno “Variedades”, 19/12/04, p. 20.
DEBORD, G. A sociedade do
espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
SCHWARTZ,
V. O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público
pela realidade na Paris fim-de-século. In:
CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna.
São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 411-440.
SIBILIA,
P. A vida como relato na era do fast-forward e do real time: algumas reflexões
sobre o fenômeno dos blogs. Em Questão,
v. 11, n. 1, Porto Alegre, jan./jun. 2005, p. 35-51.
SILVA,
W. C. L. da. Biografias: Construção e
reconstrução da memória. Fronteiras,
v. 11, n. 20, Dourados, jul./dez, 2009, p. 151-166.
* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Teoria e Estudos Literários, no Mestrado
em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia
no Curso de Graduação de Letras da FAE.
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