*Isadora Dutra
As grandes navegações
do século XV que inauguram a Idade Moderna impulsionaram o conhecimento geográfico e cartográfico. Mas a
viagem já era uma prática presente na vida antiga e medieval tanto para
fins comerciais quanto religiosos. A viajem antiga e medieval acontece por via terrestre e também marítima, porém, circunscrita ao espaço mediterrâneo. Além do desenvolvimento da cartografia , a viajem inclusive como topos literário, também repercute sobre o imaginário da época, expresso em diferentes manifestações culturais.
No contexto medieval,
a percepção da fronteira do mundo conhecido remete à intenção, propagada no
período, de organização de uma taxonomia dos seres monstruosos que, no
imaginário europeu, habitavam o território desconhecido. Geografia, o
desconhecido e a presença dos monstros sobre a terra são elementos
indissociáveis no imaginário da época: a localização geográfica servia de
fundamento para a definição das características dos monstros mencionados nas
taxonomias transmitidas por gerações. O pensamento
geográfico propôs durante séculos a relação entre caráter, aparência e o lugar
destinado a cada ser no mundo. Dessa forma, localização e climatologia eram
determinantes na definição da monstruosidade.
A designação de
certos seres como monstros atravessou as eras antiga e medieval referindo, em
alguns casos, indivíduos reais pertencentes a culturas diferentes daquela do
contexto em que eram criadas as taxonomias. Nesse sentido, o monstro significa
a marca da diferença. É o que ocorre, por exemplo, na obra de Homero, em que os
seres que divergem da cultura grega são classificados do ponto de vista da
monstruosidade. Do mesmo modo, a
visão etnocêntrica da cultura europeia, que entendia a si mesma como
referencial ordenador do mundo e como superior às demais, criou taxonomias para
categorizar o diferente. Além do caráter de
etnocentrimo, o significado dos monstros também está associado à questões de
ordem teológica, explicando as diferenças entre os homens pelo fator da
interferência divina. Pelo viés da teologia, o monstro também expõe a diferença
religiosa entre os povos, elemento fundamental na mentalidade medieval e que
está presente, por exemplo, na literatura de cavalaria, na qual o monstro gigante
desempenha papel importante e representa o outro, culturalmente e
religiosamente distinto.
Por outro lado, as
taxonomias de monstros produzidas desde os autores gregos até os medievais incluiam
listas de seres fabulosos, que não chegavam a designar uma realidade cultural
diversa de fato encontrada pelos viajantes. Duas compreensões em
relação aos seres monstruosos podem ser apontadas: uma indica a crença em sua
existência real, um entendimento literal dos monstros que, no entanto, perde força a medida
que as descobertas de novos territórios e a ampliação dos conhecimentos
geográficos não confirmam a sua presença nas regiões longínquas onde,
imaginava-se, deveríam habitar, relegados, na mentalidade medieval, ao espaço
ainda não explorado. Outro modo de compreensão
ainda diz respeito à uma postura filosófica que faz dos monstros um instrumento
para pensar o desconhecido, um modo de acessar as questões relativas ao poder
divino e ao conhecimento de Deus.
Os teólogos da igreja
católica medieval ocuparam-se em explicar a origem e o significado dos monstros
no quadro dos dogmas cristãos, tornando a deformidade um veículo alternativo de
questionamento filosófico acerca do ser. Nesse contexto, o monstro alcança um
sentido simbólico, destinado a busca de explicações que a perspectiva
tradicional dialética só era capaz de revelar de modo incompleto. Esse aspecto
filosófico da monstruosidade encontra continuidade no período renascentista,
porém, tem presença mais restrita, sendo extinto do pensamento teológico e minimizado
no filosófico, tornando-se quase exclusivo ao campo artístico do estilo
grotesco.
Pode ser percebida
ainda uma terceira leitura, que diz respeito ao campo da investigação
científica, concentrada na avaliação dos nascimentos de indivíduos com
deformidades. Os tratados teratológicos surgem como uma tendência que,
progressivamente, substitui as taxonomias das raças de monstros (que designavam
seres reais ou fabulosos, conforme eram difundidas na Idade Média). Nesse caso,
a referência está nos indivíduos de aspecto monstruoso, os quais passam a ser
descritos com mais frequência conforme desperta, na Renascença, o interesse
pelo corpo humano de modo geral e pelo monstruoso. Nesse caso, a deformação
passa a ser interna ao conceito de humanidade, enquanto o monstro fabuloso está
no limiar da humanidade.
O monstro na
Renascença sofre transformações de significado e difere do monstro medieval em
vários aspectos, ao mesmo tempo em que em certos casos, como no processo de
descoberta e sobretudo na posterior colonização do Novo Mundo, reproduz ideias
de alteridade associadas à monstruosidade. A figura do monstro presente na
literatura antiga indica as diferenças entre povos e também as ameaças da
natureza para a vida humana. Na literatura medieval o monstro basicamente
representa o outro, enquanto no debate teológico constitui acesso ao universo
incompreensível do divino.
Alteridade e
monstruosidade são, portanto, uma associação recorrente na visão de mundo da
época. A literatura de cavalaria de modo geral é exemplo do imaginário do
monstro que habita o desconhecido e representa uma outra cultura, além da
recuperação das taxonomias antigas. Nos romances de cavalaria o monstro aparece
na figura do gigante, um representante de uma religião e cultura diferente. O
gigante, desproporcionalmente ameaçador em relação ao herói, é o mouro a ser
vencido pelo cavaleiro cristão. A sua monstruosidade significa a marca da
diferença.
A tradição textual
relativa aos monstros é transmitida para a era medieval, por três vias
fundamentais: (1)- os romances do ciclo de Alexandre; (2)- a taxonomia de
Plínio e (3)- os textos da Bíblia e os comentários dos teólogos.
KRITZMAN, Lawrence D. Representing the Monster: Cognition, Cripples, and Other Limp Parts in Montaigne's "Des Boyteux". In COHEN, Jeffrey Jerome. Monster Theory: Reading Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.
FRIEDMAN, John Block. The monstrous races in medieval art and thought. Syracuse: Syracuse UP, 2000.
STEPHENS, Walter. Giants in Those Days: Folklore, Ancient History and Nationalism. Lincoln: University of Nebraska Press, 1989.
WILLIAMS, David. Deformed discourse: the function of the monster in mediaeval thought and literature. Montréal: McGill-Queen’s UP, 1996.
*Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade
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