*Sigrid Renaux
No decorrer das aulas
de Poesia Norte-Americana, 1o. bimestre da disciplina Literatura
Norte-Americana II, do curso de Letras Português-Inglês da UNIANDRADE, os alunos
do 8o Período tiveram a
oportunidade de apresentar seus próprios poemas. Foi uma revelação
surpreendente, para os próprios alunos, de quanto talento e entusiasmo seus
versos estavam impregnados. E, mais ainda, como a maioria dos poemas tinha como
tema recordações da infância, prova de como as imagens que retemos dessa época
brotam espontaneamente quando escrevemos sem nos preocupar demasiadamente com as
regras e os esquemas métricos das diferentes formas de liricidade, consagrados
pela tradição literária. Seguem, pois, poemas de três alunos, com comentários
nossos. No próximo blog serão comentados poemas de outros alunos.
FABIANO CAPISTRANO DOS SANTOS: “INFANTE”
Quem era eu? Não importava...
Queria mesmo apenas sonhar...
Sem saber o bem, o mau não
assustava,
Somente brincando sem pensar;
Na meninice doce e divertida
Em total inocência
inicia-se o aprendizado,
Uma marcante lição pra toda vida
Em acontecimento inesperado;
Recebe para seu uso no futuro
Um
ganho que não o fará inseguro
Mas o deixará certamente mais forte.
O menino que não sabe o que é
sofrer
Recebe na tenra infância
mesmo sem querer
Sua
primeira tonelada de morte.
Composto de dois quartetos
e dois tercetos, o soneto tem como tema a infância. O uso de “infante”, no
título, remetendo tanto ao substantivo – criança, menino – como ao adjetivo –
relativo à infância – adquire, pela sua diacronia, conotações de tempos
passados e, portanto, de saudade. Os versos, ligados fonicamente pelo esquema
de rimas a/b/a/b, c/d/c/d, e/e/f, g/g/f, valorizam, assim, as lembranças do “eu
poético”, a refletir sobre sua “meninice” (verso 5). Esta reflexão abrange não
apenas os sonhos, as brincadeiras, mas simultaneamente o aprendizado (verso 6),
que o “deixará certamente mais forte” (verso 11). O terceto final revela,
entretanto, a profunda ligação entre o início e o final da vida, pois, mesmo
sem saber “o que é sofrer” (verso 12), este menino já “recebe na tenra
infância” (verso 13) “sua primeira tonelada de morte” (verso 14). O eu poético
acrescenta assim, à leveza da infância que atravessa o poema, o peso de um tonel repleto,
que pode simbolicamente evocar tanto alegrias, como, neste soneto, evocar o
peso da morte, universalizando, assim, sua criação artística.
ELISÂNGELA NARDI: “INFÂNCIA”
A pequena mão que se enroscava
Aos cabelos da pessoa amada
Buscando proteção nas noites escuras
Havia perdido a pequenez
Havia também perdido a proteção
Outro coração tomou o seu lugar
Será este outro coração
Mais puro que o seu
Mais desamparado que o seu
Mais quebrantado, ou será apenas
Seu protetor deslumbrado com
Um coração recém-chegado.
Evocando uma cena
da primeira infância, este poema revela as sensações de uma criança ao imaginar
ter perdido o amor da “pessoa amada” – a figura materna? – pelo fato de outra
criança – “um outro coração” – ter tomado o “seu lugar”. Composto por três
quartetos, efeitos sonoros diversos equilibram o texto sonora e ritmicamente: rimas
finais (proteção/coração), rimas internas (desamparado/ quebrantado/ deslumbrado/-chegado;
mão/proteção), aliterações (pequena/ pessoa/ perdido/ proteção/ pequenez/ puro/
protetor), além da repetição de termos como
“proteção” (2 x) “coração”(3 x), “perdido”(2 x), que ressalta a tríade
da proteção perdida para um outro coração. O eu poético fala em terceira
pessoa, através de sinédoques – a pequena mão – e, assim, valoriza sua procura
por proteção “nas noites escuras”. A “pessoa amada” também é concretizada
através de outra sinédoque – os “cabelos” – com suas conotações simbólicas de
energia, fertilidade, amor (como proteção), e que o “eu poético” havia perdido.
A dúvida que permanece, para esta criança que havia perdido sua “pequenez” e, consequentemente,
a “proteção” materna, é por este “outro coração” – sinédoque de “outro irmão” –
ser mais frágil (mais puro/
desamparado/ quebrantado) ou pelo fato de a mãe estar mais “deslumbrada” por
este “coração recém- chegado”. Esta incerteza também universaliza a experiência
vivida pela criança¸ ao se sentir desprotegida diante de uma nova realidade,
com a qual não consegue ainda lidar.
JAQUELINE KUPKA: “MINHA INFÂNCIA”
Nostalgia! Alegria! Estripulias!
No lombo de um cavalo sentia o vento
No galope dele me sentia livre
Liberdade de sentir e ser o que sempre quis ser
Queria tocar o céu e com cada estrela
Poder desejar ir além dos meus sonhos
Queria poder estar cercada pelos primos
Por quem tenho grande apreço e amo
Queria ter sido menos peralta
Não receber as broncas que recebi de minha mãe
Tanto na escola quanto em casa
Pois além de mãe, foi minha professora
Queria ter menos ciúmes de meu irmão
E, ao invés de competir com ele, aproveitar cada momento ao lado dele
Meu pai: pra mim foi sempre meu ídolo e modelo de caráter
Minha mãe: brava, porém com um coração gigante e modelo de caráter
Meu irmão quebrou meu monopólio de atenção
Com ele, perdi lugar no quarto de meus pais
Tive que ir pro meu quarto: sozinha
A solidão sempre me foi uma boa companhia
Gostaria de não ter perdido minha avó Julia
Está certo que ela não me dava muita bola
Só comprava chocolate para as minhas primas
Mas por quem eu chorei muito quando partiu...
Tive o privilégio de ter duas mães e dois pais
Minha mãe preta já se foi,
Meu pai preto ainda está aqui
Com eles eu podia fugir um pouco das regras de meus “pais brancos”
Com meus “pais brancos” aprendi muita coisa
Só com um olhar eu já sabia
Que o amor deles era incondicional
E que eles dariam a vida por mim
Sempre sonhei em quebrar um braço ou uma perna
Fiz muitas coisas pra conseguir
Mas não quebrava nenhuma unha
Meu irmão quebrou...
Sabores!! Cheiros!! Lugares!!
Ficava esperando ansiosa pelo fim de semana
Na fazenda de meu avô eu comia, sentia e aproveitava
Frango caipira, rios, pescar e andar a cavalo
Fui privilegiada!
Minha infância foi muito boa
Dela, eu trago amizades, amores
E, principalmente, uma lição:
Galopar sempre, ser sempre
Sentir sempre, amar sempre
Viver intensamente
O poema “Minha
infância” transborda com as mesmas emoções dos poemas acima, mas em 9
quartetos, seguidos de 1 quinteto e 1 sexteto, demonstrando, assim, a
exuberância do “eu poético” ao rememorar episódios de sua meninice. Ao iniciar
o 1º. quarteto com “Nostalgia! Alegria! Estripulias!”, como também o 10º., com
“Sabores!! Cheiros!! Lugares!!”, fica demonstrado seu entusiasmo em rememorar
cenas como estar cavalgando ao vento, ação que transporta o “eu poético” a outros
universos: tocar o céu e as estrelas, ir além de seus sonhos. A repetição de
“queria” – o imperfeito indicando, no passado, uma
ação em processo de realização e concebida como não concluída – na 2ª, 3ª. e 4ª. estrofes, caracterizando, deste modo, um
paralelismo sonoro, sintático e semântico, aproxima as ações, ao colocá-las
dentro de uma estrutura de similaridade: desde os sonhos, a presença dos
primos, as censuras da mãe e da professora por sua “peraltice”, os ciúmes
do irmão mais novo. Em seguida, recordações das figuras do pai, da mãe, da avó
Júlia, dos “pais pretos” com os quais “podia fugir um pouco das regras de meus ‘pais brancos’” – demonstrando o carinho que nutria por esse segundo casal de pais –, bem como a ansiedade com que aguardava os finais de semana para poder
usufruir dos “Sabores!! Cheiros!! Lugares!!” da fazenda de seu avô. A última
estrofe não apenas conclui positivamente suas recordações, mas extrai da
infância uma lição – lição esta que nos faz retornar ao 1º. quarteto – o “galopar
sempre”, tão simbólico de liberdade de sentir, viver e amar, o que é confirmado
pelas conotações simbólicas do cavalo: dentre outras, força e liberdade. Deste
modo, mesmo com esta visão tão pessoal de sua infância, o “eu poético”
novamente estende suas experiências a todos nós, leitores, ao nos
identificarmos com essas experiências, por meio de um complexo de imagens
impregnadas de emoção.
Que esses poemas sejam o início de uma trajetória
criativa interminável!
*Professora das disciplinas Teorias da Poesia e Poéticas
da Modernidade: dos formalistas russos a Bakhtin, no Curso de Mestrado em Teoria Literária da
UNIANDRADE
Que esses poemas sejam o início de uma trajetória criativa interminável! Que seja assim.
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