*Sigrid Renaux
Dando continuidade aos blogs REVELAÇÕES I, II e III, este blog apresenta uma leitura do poema de Alice Della
Coletta Moreno “Algo do passado/Lances do presente”.
Como o título já sugere, o poema está dividido em dois
momentos: “Algo do passado/” com onze quadras, nas quais o eu-poético relembra
episódios de sua infância, e “/Lances do presente”, com sete quadras, nas quais
o eu-poético tece considerações sobre sua vida acadêmica atual. A aliteração em
“passado/presente”, a nível sonoro, enfatiza, a nível lexical, o contraste
passado/presente, um presente que por sua vez também já se tornou um passado,
como presente de uma narrativa. O pronome indefinido “algo”, por sua vez,
sugerindo como essas lembranças não constituem toda a realidade, mas apenas uma
parte do passado, contrasta com o substantivo “Lances”, com seus múltiplos
significados: o que acontece, aconteceu ou pode
acontecer; episódio, caso, fato, acontecimento; impulso; aventura; etapa. Todos
eles enriquecem o sentido de “lance”, como será visto adiante.
Composto por dezoito quadras rimando na 2ª.e na 4ª.
linhas, o poema merece destaque não só pela musicalidade natural de seu ritmo –
com linhas de versos que variam entre hexa- e octosilábicos, com três acentos
tônicos por linha – mas principalmente pela liricidade com que relembra suas
origens, bem como pela sensibilidade e sabedoria com que avalia seu momento
presente.
Concentrando-nos primeiramente nas
rememorações em “Algo do passado”, percebemos, ao examinar os diversos níveis
de construção do texto, os seguintes elementos estruturais:
Na
quadra I, o eu poético nos informa, orgulhosamente, de sua ascendência “roceira”, “Pois só na origem do mato/Vinga a formação
verdadeira”, ou seja, é no crescer, no desenvolver-se
em contato com o “mato” – no interior, na roça,
no campo – que realmente formamos nossa
personalidade. A rima grave “roceira/verdadeira”, a rima interna “sertão/formação”
e a aliteração “só/sertão/roceira” acentuam as relações fono-semânticas, ao
aproximarem as palavras no som e no sentido:
Sou lá do sertão paulista
Com orgulho de roceira
Pois só na origem do mato
Vinga a formação verdadeira.
Já
quadra II, o eu poético passa da lembrança da paisagem ampla aos detalhes de
sua vivência em contato com os animais da roça, ressaltando que “para ser boa
matuta/ Só através dos animais”. Ou seja, se o “matuto” é um indivíduo que vive no campo e cuja personalidade revela
rusticidade de espírito, falta de traquejo social, um “caipira”, por sua vez “matutar” sugere pensar
demoradamente sobre algo, meditar, refletir, levando-nos assim ao sentido
apenas positivo de matuto como indivíduo que vive no campo, retomando deste
modo a “formação verdadeira”, em contato com a natureza, da primeira quadra:
A pinguela e o mata-burro
São lembranças atuais
Pois para ser boa matuta
Só através dos animais.
A
rima aguda “atuais/animais” enfatiza mais ainda a relação entre o eu poético e a
lembrança sempre presente dos animais, que será detalhada nas seis quadras
seguintes.
O eu-poético ressalta, na quadra III, a beleza da
“égua Faceira”, sua “companheira” nas cavalgadas,
lembrando-nos que, no sul do Brasil, diz-se “faceira” do cavalo que é garboso e levanta o pescoço quando em marcha. Assim,
a facilidade com que surge a rima “Faceira/ companheira” bem demonstra, mais
uma vez, a íntima relação entre som/sentido, pois “Faceira/ minha companheira”
se identificam como pertencentes ao eu-poético, além de participar de suas aventuras:
Agora tenho saudade
Da linda égua Faceira,
Que nunca se negava
A ser minha companheira
A quadra IV continua a apresentar as
lembranças do eu-poético descrevendo suas aventuras com a égua e a humanização
dada ao animal, que “parecia sempre rir,/Quando eu puxava seu freio/Para a
porteira abrir”, sugerindo que a alegria das lembranças entre o eu- poético e o
animal transforma-se numa única alegria, pois “abrir a porteira” indica, para
ambos, o começo da liberdade de ir ao
encontro dos campos. Unem-se, deste modo, mais uma vez, som e sentido através
da rima aguda “rir/abrir”:
Em seu lombo confortável
Ela parecia sempre rir,
Quando eu puxava seu freio
Para a porteira abrir.
Já na quadra V é a vez do irmão do eu- poético a ser
rememorado, por meio da imagem do cavalo “Guarani” – “Guarani”, como sabemos,
denomina o grupo indígena que habita Mato Grosso do
Sul, e do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul – e que, em contraste com a égua
Faceira, é “um tremendo animalão”, lembrando assim a etimologia de “guarani”:
guerrear, combater. Sua função, portanto, era de levar o menino,
protetoramente, “de casa para a escola”, o que é ressaltado pela rima aguda
“animalão/irmão”, caracterizando bem o grande porte do cavalo em contraste com
o irmão:
O cavalo Guarani
Um tremendo animalão,
De casa para a escola
Levava o meu irmão.
Em seguida, na quadra VI, passamos às lembranças que o
eu-poético tem da “vaquinha Azeitona”, que lhe “dava o primeiro alimento”:
A vaquinha Azeitona
Que não me sai da lembrança,
Pois dava o primeiro alimento
Desde o tempo de criança.
O diminutivo “vaquinha” já demonstra o
carinho para com este animal, a cor verde- “azeitona” sugerindo talvez a
tonalidade de seu pelo, ou simplesmente como um epônimo. Por sua vez, a rima grave
“lembrança/criança”, a aliteração “Azeitona/alimento”, a assonância em “alimento/
tempo” são todos efeitos sonoros que enriquecem a musicalidade das linhas além
de uni-las numa única recordação.
Na
quadra VII o eu-poético já se apresenta em atividades de “fazendeira” ao ajudar
na separação dos bezerros das mães, o que lhe causava “tristeza”, pois
sentia-se sem coragem para exercer tal função: se a vaquinha Azeitona a
alimentava, por que precisaria separar os bezerros das outras mães? O fato de a
primeira linha ser eneassílaba, portanto mais longa que as outras, parece
confirmar a obrigatoriedade desta tarefa triste da qual havia sido encarregada,
enquanto a aliteração em “tarefa/toda/tarde/tristeza” enfatiza esta
obrigatoriedade, levando-a a sentir-se
“toda tarde” como uma “covarde”:
Separava os bezerros das mães
Tarefa de toda tarde,
Que tristeza que sentia
Parecendo uma covarde.
Entretanto, por meio de seu eu-poético, esta menina
continua a crescer e suas próximas atividades, na quadra VIII, já demonstram
sua bravura, em contraste com sua “covardia” anterior:
Aprendi a pegar cobra
À tarde ou de manhã,
Depois eram enviadas
Para o Instituto Butantã.
O fato de ter aprendido “a pegar cobra”, a qualquer
hora do dia, torna-se assim um ato corriqueiro na vida desta “fazendeira”,
pois, dentro de novas responsabilidades, sabe o valor de seu ato ao serem os
repteis depois enviados ao Instituto Butantã. Assim, a rima aguda “manhã/
Butantã” confirma a rotina quase diária de pegar cobras para este famoso centro
de pesquisa biomédica e, deste modo, contribuir para a produção de vacinas,
soros e biofármacos para uso humano.
Nas quadras IX e X - ,
A lembrança da escolinha
Traz à tona a rotina,
Com colegas muito amados
E a professora Albertina.
Com o uniforme alinhado
Blusinha branca, saia marinho,
E para que ficasse completo
No cabelo um lacinho.
o eu-poético relembra, inicialmente, a escolinha em que estudava – o
diminutivo acentuando a valorização afetiva do substantivo – bem como os
colegas e a professora Albertina. Simultaneamente, a “rotina” evocada – este hábito de fazer algo sempre do mesmo modo, mecanicamente – à qual as crianças precisam se
acostumar, é compensada pelo coleguismo e pela figura da professora, enfatizados
pela rima grave “rotina/Albertina”, unindo, destarte, a rotina das aulas com a
dedicação da professora.
O eu-poético
relembra, em seguida, o uniforme – blusa branca, saia marinho: o branco, com
suas implicações de asseado, impecável, em contraste a
tonalidade escura do azul marinho, similar ao azul do mar lembrando-nos, por
similaridade visual, das cores da bandeira nacional. Este vestuário padronizado
e distintivo, por sua vez, é qualificado como “uniforme alinhado”,
remetendo-nos tanto aos alunos enfileirados à entrada da sala de aula, como
também ao orgulho que as meninas sentiam, por estarem “uniformizadas” e, assim,
pertencentes a uma escola. O “lacinho”, por sua vez, dá um toque especial ao
“uniforme”, pois é o traço diferencial entre as meninas. O uso de diminutivos –
blusinha, lacinho – como já visto em estrofes anteriores – escolinha, vaquinha
– acentua mais uma vez o carinho que as lembranças do eu-poético despertava na
menina, o que é confirmado, nesta quadra, pela rima grave “marinho/lacinho”,
além da repetição da consoante líquida /l/ em
“alinhado/blusinha/completo/cabelo/lacinho”, acrescentando, deste modo, uma
sonoridade maior a esta quadra e, consequentemente, aproximando as palavras em
som e sentido.
Esta
primeira parte do poema encerra-se, na quadra XI, com uma pergunta retórica do
eu - poético:
Quem é que não tem saudade
Do seu tempo de criança?
Aí estão as verdades
Que mantemos como herança.
E
a resposta, nas linhas 3 e 4, nos remete à quadra I:
Sou
lá do sertão paulista
Com
orgulho de roceira
Pois
só na origem do mato
Vinga
a formação verdadeira.
Ou seja, assim como a “formação verdadeira” se
desenvolve em contato com a natureza, também as “verdades” que adquirimos em
tempos de criança são as “que mantemos como herança”. Este círculo rememorativo
se fecha, deste modo, valorizando a infância: do contato com a “natureza” e
suas experiências na fazenda, ao convívio com o “saber” e com os outros,
representados pela escolinha, a professora, os colegas. A rima grave “criança/herança”
acentua a relação entre todos os elementos apresentados em “Algo do passado”,
pois reúne os dois polos semânticos: a lembrança do passado e a herança que
este passado lhe deixou.
Ao passarmos para a segunda parte do
poema, “/Lances do presente” – quadras XII a XVIII – na qual o eu-poético
reflete sobre seu presente como mestranda da UNIANDRADE, esta reflexão se
inicia com uma decisão (quadra XII):
Preciso com tato organizar
Outras audiências virão
Assim que constituídas.
O fato de “lidas”, na linha 2, poder se
referir tanto a um esforço fora do
comum, como também a uma leitura rápida, superficial e, assim, “ilustrar minhas
lidas” implicar em exemplificar, esclarecer seu trabalho/suas leituras para
“outras audiências”, para outros ouvintes, demonstra, por meio da
metalinguagem, a preocupação do eu-poético em sair-se bem nesta nova fase de
sua vida acadêmica.
As quadras XIII a XVIII apenas ampliam, em
outro nível, as recordações da “escolinha” de sua infância, ao comentar, na
quadra XIII, que “” daqui a pouco” – quando tiver terminado o curso – irá
“curtir nova saudade”; o fato de se referir a “daqui a pouco”, irá marcar a
temporalidade futura da quadra XIV, pois ao retomar as figuras dos atuais
colegas, professores, funcionários e
assessores, esses “retratos serão eternos”. O uso do diminutivo em “cantinho”
também retoma os diminutivos da primeira parte do poema, sempre com o viés
carinhoso de seu olhar. Como acima, as rimas graves na quadra XIII –
Uniandrade/saudade – bem como da quadra XIV – professores/assessores – formam
um grupo semântico que abriga a instituição com seus membros, como também o
efeito que a futura separação irá causar no eu-poético – a saudade:
Agora outra vez aluna
Da grandiosa Uniandrade
Em Suma daqui a pouco
A curtir nova saudade.
Uns retratos serão eternos
Dos colegas e professores,
De cada cantinho da sala
Dos funcionários e assessores
Já na quadra X, amplia-se também o
conceito de “verdade” expresso na “formação verdadeira” da quadra I e nas
“verdades” da quadra XI, pois agora o eu-poético, assumindo-se como adulto,
afirma que “o sentido da vida/Só é completo na união”, algo que, na infância,
ainda não temos condições de avaliar. A rima aguda “emoção/união” traz à tona
esta agitação de sentimentos, este comoção afetiva ou moral que sentimos quando
descobrimos uma grande verdade: unir é estabelecer harmonia, aliança, ligação
entre as pessoas, pois só com esta união completa-se o sentido da vida:
Uma das grandes
verdades
Que só reforça a emoção,
É que o sentido da vida
Só é completa na união.
Nas quadras XVI e XVII o eu-poético menciona sua
gratidão a duas professoras, que, como outros mestres da Instituição, tiveram a
oportunidade de lhe transmitir conhecimentos, transformando deste modo o ensino
numa aventura de mão dupla, pois, certamente, as professoras se enriqueceram
humanamente tanto em contato com os alunos como estes com elas. As rimas esdrúxulas,
em “clássicos/mágicos” da quadra XVI, e graves em “literatura/aventura” da
quadra XVII, apenas corroboram a magia do encontro com textos clássicos e com a
modernidade que eles expressam, como também a visão da literatura como uma
aventura infinda, tanto para alunos como para professores:
A sábia professora Sigrid
Na apresentação dos clássicos,
Tem tão grande maestria
Que parece ter dons mágicos.
A Brunilda se impõe
Ao expor literatura
E o ouvinte queira ou não
Introduz-se na aventura.
O poema finaliza, na quadra XVIII, com a constatação
de que a “solidariedade” – este compromisso, este laço pelo qual as pessoas se obrigam umas
às outras e cada uma delas a todas – é a descoberta de uma verdade que vai
muito além da aprendizagem de teorias e textos, pois é esta união, que dá
sentido à vida, que também dá sentido às aulas que os alunos estão
frequentando. Torna-se, assim, a grande “mensagem/aprendizagem” transmitida a
todos – solidariedade, como o bem maior:
O ambiente calmo e aconchegante
Dá a todos a mensagem:
Aqui reina a solidariedade
Acima da aprendizagem.
As lembranças do eu-poético
na primeira parte do poema tornaram-se, deste modo, uma mensagem de uma
infância da qual todos nós já fizemos parte, enquanto as declarações do
eu-poético na segunda parte do poema converteram-se numa mensagem da
maturidade, época em que atingimos a condição
de plenitude em arte, saber ou habilidade adquirida. Ambas as partes completam
portanto um ciclo que, por sua vez, como “presente”, continua sempre a receber
novos “lances”.
Que estas considerações – limitadas –
sobre este poema, bem como sobre os poemas das outras mestrandas, já analisados
em blog anterior, sirvam de incentivo a todas para
continuarem suas aventuras infindas pelo mundo das palavras.
*Professora das disciplinas Teorias
da Poesia e Poéticas da Modernidade: dos formalistas russos a Bakhtin, no
Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
Nenhum comentário:
Postar um comentário