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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

REVELAÇÕES IV: as poetas do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE


*Sigrid Renaux 

Dando continuidade aos blogs REVELAÇÕES I, II e III, este blog apresenta uma leitura do poema de Alice Della Coletta Moreno “Algo do passado/Lances do presente”.
Como o título já sugere, o poema está dividido em dois momentos: “Algo do passado/” com onze quadras, nas quais o eu-poético relembra episódios de sua infância, e “/Lances do presente”, com sete quadras, nas quais o eu-poético tece considerações sobre sua vida acadêmica atual. A aliteração em “passado/presente”, a nível sonoro, enfatiza, a nível lexical, o contraste passado/presente, um presente que por sua vez também já se tornou um passado, como presente de uma narrativa. O pronome indefinido “algo”, por sua vez, sugerindo como essas lembranças não constituem toda a realidade, mas apenas uma parte do passado, contrasta com o substantivo “Lances”, com seus múltiplos significados: o que acontece, aconteceu ou pode acontecer; episódio, caso, fato, acontecimento; impulso; aventura; etapa. Todos eles enriquecem o sentido de “lance”, como será visto adiante.
Composto por dezoito quadras rimando na 2ª.e na 4ª. linhas, o poema merece destaque não só pela musicalidade natural de seu ritmo – com linhas de versos que variam entre hexa- e octosilábicos, com três acentos tônicos por linha – mas principalmente pela liricidade com que relembra suas origens, bem como pela sensibilidade e sabedoria com que avalia seu momento presente.
Concentrando-nos primeiramente nas rememorações em “Algo do passado”, percebemos, ao examinar os diversos níveis de construção do texto, os seguintes elementos estruturais:  
            Na quadra I, o eu poético nos informa, orgulhosamente, de sua ascendência “roceira”,  “Pois só na origem do mato/Vinga a formação verdadeira”, ou seja, é no crescer, no desenvolver-se em contato com o “mato” – no interior, na roça, no campo – que realmente formamos nossa personalidade. A rima grave “roceira/verdadeira”, a rima interna “sertão/formação” e a aliteração “só/sertão/roceira” acentuam as relações fono-semânticas, ao aproximarem as palavras no som e no sentido:                                              
                                                              
Sou lá do sertão paulista
Com orgulho de roceira
Pois só na origem do mato
Vinga a formação verdadeira.

            Já quadra II, o eu poético passa da lembrança da paisagem ampla aos detalhes de sua vivência em contato com os animais da roça, ressaltando que “para ser boa matuta/ Só através dos animais”. Ou seja, se o “matuto” é um indivíduo que vive no campo e cuja personalidade revela rusticidade de espírito, falta de traquejo social, um  “caipira”, por sua vez “matutar” sugere pensar demoradamente sobre algo, meditar, refletir, levando-nos assim ao sentido apenas positivo de matuto como indivíduo que vive no campo, retomando deste modo a “formação verdadeira”, em contato com a natureza, da primeira quadra:

A pinguela e o mata-burro
São lembranças atuais
Pois para ser boa matuta
Só através dos animais.

A rima aguda “atuais/animais” enfatiza mais ainda a relação entre o eu poético e a lembrança sempre presente dos animais, que será detalhada nas seis quadras seguintes.  
O eu-poético ressalta, na quadra III, a beleza da “égua Faceira”, sua “companheira” nas cavalgadas, lembrando-nos que, no sul do Brasil, diz-se “faceira” do cavalo que é garboso e levanta o pescoço quando em marcha. Assim, a facilidade com que surge a rima “Faceira/ companheira” bem demonstra, mais uma vez, a íntima relação entre som/sentido, pois “Faceira/ minha companheira” se identificam como pertencentes ao eu-poético, além de participar de suas  aventuras:  

Agora tenho saudade
Da linda égua Faceira,
Que nunca se negava
  A ser minha companheira

A quadra IV continua a apresentar as lembranças do eu-poético descrevendo suas aventuras com a égua e a humanização dada ao animal, que “parecia sempre rir,/Quando eu puxava seu freio/Para a porteira abrir”, sugerindo que a alegria das lembranças entre o eu- poético e o animal transforma-se numa única alegria, pois “abrir a porteira” indica, para ambos,  o começo da liberdade de ir ao encontro dos campos. Unem-se, deste modo, mais uma vez, som e sentido através da rima aguda “rir/abrir”:

Em seu lombo confortável
Ela parecia sempre rir,
Quando eu puxava seu freio
Para a porteira abrir.

Já na quadra V é a vez do irmão do eu- poético a ser rememorado, por meio da imagem do cavalo “Guarani” – “Guarani”, como sabemos, denomina o grupo indígena que habita Mato Grosso do Sul, e do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul – e que, em contraste com a égua Faceira, é “um tremendo animalão”, lembrando assim a etimologia de “guarani”: guerrear, combater. Sua função, portanto, era de levar o menino, protetoramente, “de casa para a escola”, o que é ressaltado pela rima aguda “animalão/irmão”, caracterizando bem o grande porte do cavalo em contraste com o irmão:  
O cavalo Guarani
Um tremendo animalão,
De casa para a escola
Levava o meu irmão.

Em seguida, na quadra VI, passamos às lembranças que o eu-poético tem da “vaquinha Azeitona”, que lhe “dava o primeiro alimento”:

A vaquinha Azeitona
Que não me sai da lembrança,
Pois dava o primeiro alimento
Desde o tempo de criança.

O diminutivo “vaquinha” já demonstra o carinho para com este animal, a cor verde- “azeitona” sugerindo talvez a tonalidade de seu pelo, ou simplesmente como um epônimo. Por sua vez, a rima grave “lembrança/criança”, a aliteração “Azeitona/alimento”, a assonância em “alimento/ tempo” são todos efeitos sonoros que enriquecem a musicalidade das linhas além de uni-las numa única recordação.
            Na quadra VII o eu-poético já se apresenta em atividades de “fazendeira” ao ajudar na separação dos bezerros das mães, o que lhe causava “tristeza”, pois sentia-se sem coragem para exercer tal função: se a vaquinha Azeitona a alimentava, por que precisaria separar os bezerros das outras mães? O fato de a primeira linha ser eneassílaba, portanto mais longa que as outras, parece confirmar a obrigatoriedade desta tarefa triste da qual havia sido encarregada, enquanto a aliteração em “tarefa/toda/tarde/tristeza” enfatiza esta obrigatoriedade, levando-a a sentir-se  “toda tarde” como uma “covarde”:

Separava os bezerros das mães
Tarefa de toda tarde,
Que tristeza que sentia
Parecendo uma covarde.

Entretanto, por meio de seu eu-poético, esta menina continua a crescer e suas próximas atividades, na quadra VIII, já demonstram sua bravura, em contraste com sua “covardia” anterior:

Aprendi a pegar cobra
À tarde ou de manhã,
Depois eram enviadas
Para o Instituto Butantã.

O fato de ter aprendido “a pegar cobra”, a qualquer hora do dia, torna-se assim um ato corriqueiro na vida desta “fazendeira”, pois, dentro de novas responsabilidades, sabe o valor de seu ato ao serem os repteis depois enviados ao Instituto Butantã. Assim, a rima aguda “manhã/ Butantã” confirma a rotina quase diária de pegar cobras para este famoso centro de pesquisa biomédica e, deste modo, contribuir para a produção de vacinas, soros e biofármacos para uso humano.
Nas quadras IX e X - ,
A lembrança da escolinha
Traz à tona a rotina,
Com colegas muito amados
E a professora Albertina.

Com o uniforme alinhado
Blusinha branca, saia marinho,
E para que ficasse completo
No cabelo um lacinho.

o eu-poético relembra, inicialmente, a escolinha em que estudava – o diminutivo acentuando a valorização afetiva do substantivo – bem como os colegas e a professora Albertina. Simultaneamente, a “rotina” evocada – este hábito de fazer algo sempre do mesmo modo, mecanicamente –  à qual as crianças precisam se acostumar, é compensada pelo coleguismo e pela figura da professora, enfatizados pela rima grave “rotina/Albertina”, unindo, destarte, a rotina das aulas com a dedicação da professora. 
            O eu-poético relembra, em seguida, o uniforme – blusa branca, saia marinho: o branco, com suas implicações de asseado, impecável, em contraste a tonalidade escura do azul marinho,  similar ao azul do mar lembrando-nos, por similaridade visual, das cores da bandeira nacional. Este vestuário padronizado e distintivo, por sua vez, é qualificado como “uniforme alinhado”, remetendo-nos tanto aos alunos enfileirados à entrada da sala de aula, como também ao orgulho que as meninas sentiam, por estarem “uniformizadas” e, assim, pertencentes a uma escola. O “lacinho”, por sua vez, dá um toque especial ao “uniforme”, pois é o traço diferencial entre as meninas. O uso de diminutivos – blusinha, lacinho – como já visto em estrofes anteriores – escolinha, vaquinha – acentua mais uma vez o carinho que as lembranças do eu-poético despertava na menina, o que é confirmado, nesta quadra, pela rima grave “marinho/lacinho”, além da repetição da consoante líquida /l/ em “alinhado/blusinha/completo/cabelo/lacinho”, acrescentando, deste modo, uma sonoridade maior a esta quadra e, consequentemente, aproximando as palavras em som e sentido.
            Esta primeira parte do poema encerra-se, na quadra XI, com uma pergunta retórica do eu - poético:

Quem é que não tem saudade
Do seu tempo de criança?
Aí estão as verdades
Que mantemos como herança.

E a resposta, nas linhas 3 e 4, nos remete à quadra I:

Sou lá do sertão paulista
Com orgulho de roceira
Pois só na origem do mato
Vinga a formação verdadeira.

Ou seja, assim como a “formação verdadeira” se desenvolve em contato com a natureza, também as “verdades” que adquirimos em tempos de criança são as “que mantemos como herança”. Este círculo rememorativo se fecha, deste modo, valorizando a infância: do contato com a “natureza” e suas experiências na fazenda, ao convívio com o “saber” e com os outros, representados pela escolinha, a professora, os colegas. A rima grave “criança/herança” acentua a relação entre todos os elementos apresentados em “Algo do passado”, pois reúne os dois polos semânticos: a lembrança do passado e a herança que este passado lhe deixou.
            Ao passarmos para a segunda parte do poema, “/Lances do presente” – quadras XII a XVIII – na qual o eu-poético reflete sobre seu presente como mestranda da UNIANDRADE, esta reflexão se inicia com uma decisão (quadra XII):

Preciso com tato organizar
E ilustrar as minhas lidas,
Outras audiências virão
Assim que constituídas.
O fato de “lidas”, na linha 2, poder se referir tanto a um esforço fora do comum, como também a uma leitura rápida, superficial e, assim, “ilustrar minhas lidas” implicar em exemplificar, esclarecer seu trabalho/suas leituras para “outras audiências”, para outros ouvintes, demonstra, por meio da metalinguagem, a preocupação do eu-poético em sair-se bem nesta nova fase de sua vida acadêmica.
As quadras XIII a XVIII apenas ampliam, em outro nível, as recordações da “escolinha” de sua infância, ao comentar, na quadra XIII, que “” daqui a pouco” – quando tiver terminado o curso – irá “curtir nova saudade”; o fato de se referir a “daqui a pouco”, irá marcar a temporalidade futura da quadra XIV, pois ao retomar as figuras dos atuais colegas, professores,  funcionários e assessores, esses “retratos serão eternos”. O uso do diminutivo em “cantinho” também retoma os diminutivos da primeira parte do poema, sempre com o viés carinhoso de seu olhar. Como acima, as rimas graves na quadra XIII – Uniandrade/saudade – bem como da quadra XIV – professores/assessores – formam um grupo semântico que abriga a instituição com seus membros, como também o efeito que a futura separação irá causar no eu-poético – a saudade:

Agora outra vez aluna
Da grandiosa Uniandrade
Em Suma daqui a pouco
A curtir nova saudade.

Uns retratos serão eternos
Dos colegas e professores,
De cada cantinho da sala
                                                                 Dos funcionários e assessores


Já na quadra X, amplia-se também o conceito de “verdade” expresso na “formação verdadeira” da quadra I e nas “verdades” da quadra XI, pois agora o eu-poético, assumindo-se como adulto, afirma que “o sentido da vida/Só é completo na união”, algo que, na infância, ainda não temos condições de avaliar. A rima aguda “emoção/união” traz à tona esta agitação de sentimentos, este comoção afetiva ou moral que sentimos quando descobrimos uma grande verdade: unir é estabelecer harmonia, aliança, ligação entre as pessoas, pois só com esta união completa-se o sentido da vida: 
                                                
 Uma das grandes verdades
Que só reforça a emoção,
É que o sentido da vida
Só é completa na união.

Nas quadras XVI e XVII o eu-poético menciona sua gratidão a duas professoras, que, como outros mestres da Instituição, tiveram a oportunidade de lhe transmitir conhecimentos, transformando deste modo o ensino numa aventura de mão dupla, pois, certamente, as professoras se enriqueceram humanamente tanto em contato com os alunos como estes com elas. As rimas esdrúxulas, em “clássicos/mágicos” da quadra XVI, e graves em “literatura/aventura” da quadra XVII, apenas corroboram a magia do encontro com textos clássicos e com a modernidade que eles expressam, como também a visão da literatura como uma aventura infinda, tanto para alunos como para professores:

A sábia professora Sigrid
Na apresentação dos clássicos,
Tem tão grande maestria
Que parece ter dons mágicos.

A Brunilda se impõe
Ao expor literatura
E o ouvinte queira ou não
Introduz-se na aventura.

O poema finaliza, na quadra XVIII, com a constatação de que a “solidariedade” – este compromisso, este laço pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras e cada uma delas a todas – é a descoberta de uma verdade que vai muito além da aprendizagem de teorias e textos, pois é esta união, que dá sentido à vida, que também dá sentido às aulas que os alunos estão frequentando. Torna-se, assim, a grande “mensagem/aprendizagem” transmitida a todos – solidariedade, como o bem maior:

O ambiente calmo e aconchegante
Dá a todos a mensagem:
Aqui reina a solidariedade
Acima da aprendizagem.


As lembranças do eu-poético na primeira parte do poema tornaram-se, deste modo, uma mensagem de uma infância da qual todos nós já fizemos parte, enquanto as declarações do eu-poético na segunda parte do poema converteram-se numa mensagem da maturidade, época em que atingimos a condição de plenitude em arte, saber ou habilidade adquirida. Ambas as partes completam portanto um ciclo que, por sua vez, como “presente”, continua sempre a receber novos “lances”.
Que estas considerações – limitadas – sobre este poema, bem como sobre os poemas das outras mestrandas, já analisados em blog anterior, sirvam de incentivo a todas para continuarem suas aventuras infindas pelo mundo das palavras.


*Professora das disciplinas Teorias da Poesia e Poéticas da Modernidade: dos formalistas russos a Bakhtin,  no Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

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