O DISCURSO SINCRÉTICO DA
CENA DE ABERTURA DA ÓPERA OTELLO, DE
GIUSEPPE VERDI
Autora: Silvandra Mara Henrique Rodrigues
Programa de Iniciação Científica de Letras
UNIANDRADE
Orientadora: Profa. Dra.
Anna Stegh Camati
UNIANDRADE
O intuito deste texto é o de
abordar o discurso sincrético e seus efeitos musicais na cena I da ópera Otello
(1887), de Giuseppe Verdi
(1813-1901), baseada no texto homônimo (1603), de William Shakespeare
(1564-1616).
Clüver (2006, p. 20) ensina que um discurso
sincrético “possui dois signos ou mais sistemas de signos e/ou midias de uma
forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e
performativos de seus signos se tornam
inseparáveis”. Nesse sentido, entende-se a
ópera como um gênero musical no qual a música está conectada à ação
dramática expressa pelo texto, ou libreto. Este, por sua vez, tem
características de textos curtos já que a música não possui a velocidade e
habilidade verbal da linguagem, portanto a ópera requer menos palavras do que o
necessário para uma peça de mesma extensão (WEISSTEIN, citado em HUTCHEON,
2011, p. 75).
Deste modo, considera-se a ópera uma
manifestação cultural plurimidiática, a qual. de acordo com Camati (2018), reúne
várias mídias em um mesmo espaço, como a música, o teatro, a dança, a
literatura e as artes plásticas. Para Hutcheon “adaptação é a força vital da
ópera e tem sido assim desde o início dessa forma de arte na Itália no final do
século XVI”. (HUTCHEON, 2017, p. 305, tradução nossa)[1].
Assim as estruturas musicais
criadas por Giuseppe Verdi, na ópera Otello, se fundem ao texto de
Arrigo Boito (1842-1918), para expressarem significados precisos, como a
construção gramatical metafórica e criar um meio psicológico no qual a música
revela emoções, sendo mais efetiva do que palavras. O libreto revela um
entrosamento com a peça shakespeariana, no qual, apesar do processo de síntese,
os períodos fundamentais do texto literário foram mantidos, o que fez com que a
escolha do libretista fosse determinante para o compositor. Pois, a união da
música de Verdi e o texto de Boito “representam o apogeu do drama lírico e da
ópera-cômica italiana” (CANDÉ, 2001, p. 96)
A estratégia musical
utilizada pelo compositor italiano revela nuances carregada de contrastes, deste
modo foi capaz de demonstrar os sentimentos das personagens de forma perfeita,
criando uma declamação melódica original da Língua Italiana, ampliando a
orquestra e fazendo-a executar um papel dramático extraordinário.(CANDÉ, 2001,
p. 97)
Assim, a análise a seguir
será regida pelo conceito de plurimidialidade do teatro musical, o qual, segundo
Picon-Vallin (2018, p. 20) designa “todas as produções em que se tenta integrar
a música, texto e elementos visuais”.
Na ópera Otello, Verdi
utiliza logo no início, na cena I, o recurso de trêmolos – repetição veloz de
uma ou mais notas quando se deseja maior volume, utilizando-se desse recurso
nas flautas, cordas e percussão e criando uma instabilidade rítmica utilizando
síncopes nos sopros – isso produz o efeito de deslocamento das acentuações
naturais e resulta numa tensão causada pela ausência do acento esperado. Assim, obteve-se o efeito de tempestade,
passando aos espectadores uma sensação de ansiedade e medo ao avistarem o navio
que se aproximava. A música reflete e amplifica o drama de conflitos das
personagens, onde sentimentos como a inveja, o ciúme, a mentira são sublinhados
pela música para acentuar a textura do enredo teatral. A ansiedade é expressa
por uma série de cromatismos – ou seja, notas sucessivas – com instrumentos
agudos ( flautas e oboés), alternando dinâmica suave que logo passam a ser escalas
rápidas numa dinâmica fortíssima, reforçada com as quiálteras – divisões
irregulares – nos metais e com arpejos – execução rápida e sucessiva das notas
de um acorde – nas cordas, tudo isso permeado por um pedal de órgão numa
tessitura grave que permeia toda a cena. Deste modo, o compositor cria uma
tensão melódica, ao passo que o texto breve, irregular e intenso de Boito, com
a execução do coro nas frases intercaladas por dois grupos – Una vela!
(grupo I), Una vela! (grupo II), Un vessillo! (grupo I), Un vessillo!
(grupo II), amplia a sensação de ansiedade.
O legato do início, logo se
transforma numa articulação curta (stacatto) e cromática para os instrumentos
de sopros, com arpejos ligados nos instrumentos de cordas e a dinâmica passa
para pianíssimo (intensidade sonora mínima, quase inaudível), o coro canta
colcheias pontuadas que, também, transmitem ansiedade, criando contrapontos
entre instrumentos com frases ligadas em meio a vozes do coro. Esse contraste diatônico
e cromático, dinâmicas suaves e fortes, articulações ligadas e curtas são o
pano de fundo para toda cena I, indicando um sentimento de movimento e passagem.
A abertura é, inesperadamente, crescente (Lampi! tuoni! gorghi! turbi
tempestosi e fulmini!). Da tempestade e da possível derrota passa-se à salvação
e à festa da vitória (Esultate! L'orgoglio musulmano sepolto è in mar; nostra e
del ciel è gloria! Dopo l'armi lo vinse l'uragano). Com isso, os sentimentos
expressados na Cena I, demonstram contrapontos da mudança de sentimentos entre
o medo e o perigo da tempestade convertendo-se em canto de alegria e celebração
da vitória sobre os turcos, assim como o sentimento de inveja e o desejo que
Rodrigo possui sobre a possibilidade do barco afundar e, com isso, resultar a
morte de Otello, não ser
concretizado.
A análise deste pequeno
trecho demonstra que Verdi, ao compor Otello, eliminou a ária
considerada padrão, para a época, e as formas de conjunto as quais eram
produzidas as óperas, deste modo o compositor criou uma forma estilística
diferenciada. A música de Otello se move de uma cena para outra
com muita dramaticidade, raramente parando, permitindo que uma melodia se
desenvolva e nos mova rapidamente de um fragmento melódico para outro em toda a
peça. Assim, causa no público uma sensação de desenvolvimento contínuo,
pois ao não permitir que o espectador ouça uma música resolvida em sua tônica,
ele cria a sensação de constante mobilidade para a frente.
Toda a ópera foi construída passando de um
motivo melodioso para outro como uma “costura melódica”. Com isso, Verdi
reserva as composições musicais genuinamente elevadas e “esculpidas” no clímax
da peça, recompensando o ouvinte por manter toda a atenção nesse processo
motivacional único.
REFERÊNCIAS
CAMATI, Anna
Stegh. Sonho de uma noite de verão: do texto de Shakespeare à ópera de
Benjamin Britten. Tradução em Revista:
Puc Rio, Diálogos com Shakespeare: adaptações, apropriações, releituras, n. 25,
p. 50-64, 2018/2.
CANDÉ,
Roland de. História universal da música. Trad. Eduardo Brandão: revisão
da trad. Marina Appenzeller. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
CLÜVER,
Claus. Inter textus/ Inter artes / Inter media. Tradução do alemão de Elcio
Loureiro Cornelsen. AletriA: Revista de Estudos de Literatura – Intermidialidade, v.14, p. 11-41,
jul./dez. 2006.
DOURADO,
Henrique Autran. O arco dos instrumentos de cordas: breve histórico,
suas escolas e golpes de arco. São Paulo: Irmãos Vitale, 2009.
HUTCHEON,
L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora
da UFSC, 2011.
HUTCHEON, L.;
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In: LEITCH, Thomas (Ed.). The Oxford
Handbook of Adaptation Studies. Oxford and New York: Oxford University
Press, 2017, p. 305-323.
LEITCH, Thomas.
(Ed.). The Oxford Handbook of Adaptation
Studies. Oxford and New York: Oxford University Press, 2017.
MED,
Bohumil. Teoria da música. Ed. 4 rev. e ampl. Brasilia, DF: Musimed,
1996.
PICON-VALLIN,
B. A cena em ensaios. Trad. Fátima Saadi, Cláudia Fares e Eloisa Araújo
Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
VERDI, Giuseppe. Otello:
in Full Score. Opera. Libretto by Arrigo Boito, based on the play by
Shakespeare. Reprint
originally published. Milan: Ricord, 1986.
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