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quinta-feira, 14 de novembro de 2024

HOMENAGEM A LAURA PATRÍCIA ZUNTINI DE IZARRA


Mail Marques de Azevedo


Em Voos indeléveis pela vida e pela atividade profissional de Laura Patrícia Zuntini de Izarra, seja durante longos períodos, seja em associações temporais mais breves, buscamos memórias desse convívio para celebrar sua “imensa contribuição para a pesquisa na área de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês,” nas palavras dos organizadores Munira Mutran, Mariana Bolfarine e Victor Pacheco. Convocados por eles, apresentamo-nos céleres, amigos, alunos, ex-alunos e colegas, todos desejosos de agradecer e de nos fazer lembrar. A publicação resultante, Voos Indeléveis, está organizada em três capítulos principais, conforme indicado na apresentação:


O primeiro, “Argentina”, descreve o desenvolvimento intelectual de Laura Izarra na Argentina, desde a infância até a sua vinda para o Brasil. O segundo, “Universidade de São Paulo”, delineia a jornada acadêmica trilhada por Laura Izarra já no Brasil, e descreve as pesquisas realizadas em seu Mestrado, Doutorado, Livre-docência e Titularidade na Universidade de São Paulo. O terceiro capítulo, “Saberes Compartilhados”, é dividido por países e é composto por contribuições de alunos, ex-alunos – muitos já como professores universitários e multiplicadores dos seus ensinamentos – e colegas, tanto de diferentes regiões do Brasil como do exterior, mostrando como as sementes plantadas por Laura Izarra se tornaram árvores frondosas cujos frutos seguem se multiplicando. Esse capítulo revela que o foco de atuação de Laura Izarra foram os Estudos Irlandeses. (2024, p. 13)

 

Em minha contribuição particular, que intitulei “Utopia. Diálogos. Trauma” desenvolvo um retrospecto da associação prazerosa entre mim e Laura, desde 1990, no Grupo de Trabalho Literaturas Estrangeiras da ANPOLL, e nos estudos de Pós-Doutorado sob sua supervisão, concluídos em 2016. Referência especial é feita à organização conjunta USP/UNIANDRADE de uma Jornada de Estudos Irlandeses, em nossa instituição, bem como à minha associação ao grupo de tradutores dos Diários do Amazonas, de Roger Casement.

 

Foto cedida pela autora deste texto.


UTOPIA, DIÁLOGOS, TRAUMA


Mail Marques de Azevedo

 

Conheci Laura Zuntini de Izarra, quando fui recebida no Grupo de Trabalho Literaturas Estrangeiras da ANPOLL, no ano de 2000. Fora proposta por minha colega da UFPR. Sigrid Renaux, que, a partir de então, se. tornou companheira de viagens para as reuniões periódicas – realizadas geralmente na USP – e para o encontro bianual dos GT’s, o ENANPOLL.

Doutora recente – defendera tese na USP, em 1999 – sentia-me pequena ao penetrar no inner sanctum da pesquisa literária em línguas estrangeiras no Brasil, de que faziam parte do subgrupo das literaturas em língua inglesa, Laura Zuntini de Izarra, coordenadora do GT, Munira Mutran, Maria Clara Bonetti Paro, Sônia Zinger e Sigrid Renaux. A pesquisa do biênio centrava-se no questionamento das utopias nas narrativas literárias de fim de século e resultou na publicação do volume intitulado A literatura da virada do século: fim das utopias? em 2001.

Percebi de imediato pontos de interesse comum entre a temática do GT e minha tese de doutorado que fazia uma leitura do romance The Bluest Eye, de Toni Morrison como paralelo de textos de perseguição históricos e mitológicos, nos quais um membro da comunidade, não essencial para sua sobrevivência, é escolhido como scapegoat, a fim de polarizar conflitos e restaurar a harmonia no grupo. Parti, então, para a exploração do romance Paraíso (1998), também de autoria de Morrison, no texto “Paraíso: uma nação ideal? que narra a criação de uma nação negra ideal – a cidade de Ruby, no estado de Oklahoma, na década de 1940. Determinados a nunca mais serem derrotados ou rejeitados, os descendentes masculinos dos antigos escravos libertos guardam com denodo cruel a pureza e a independência de uma Ruby de pele profundamente negra. Rígidos em suas tradições, os nascidos em Ruby não se misturam nem com brancos, nem com outros negros.

 Observei especificamente a afinidade de abordagem com o texto de Laura, “Utopias e distopias nas narrativas ‘negras’ da Grã-Bretanha”, que explorava textos literários anglo-caribenhos, “como agentes de uma resistência cultural, e os [definia] como meta-utopias/ neo-utopias em ação por desconstruírem criticamente os projetos sociais utópicos que motivaram as diásporas pós-coloniais e contemporâneas” (IZARRA, 2001, p. 10. Ênfase no original). Por coincidência, nessa mesma época, passei a concentrar o interesse em pesquisas na área do pós-colonialismo, o que me levou posteriormente, em 2016, a solicitar à Laura que fosse minha supervisora no Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Letras Modernas da FFLCH.

Múltiplos acontecimentos, porém, marcaram esse interregno de 15 anos, paralelamente às atividades no GT, muitos dos quais ligados à influência da Laura, que, em 2004, organizou a segunda publicação em sua coordenadoria, sob o título de Literaturas estrangeiras e o Brasil: Diálogos. Na introdução, Laura avalia a função e o alcance das literaturas estrangeiras no Brasil citando Antonio Candido que afirmara, por ocasião de um congresso da ABRALIC, que “estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada, porque a nossa produção foi sempre tão vinculada aos exemplos externos que insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando a estes como ponto de reparo” (CANDIDO, citado em IZARRA, 2004, p. 7). Laura complementa, porém, com grande propriedade, que


[...] esse comparatismo, que validava a literatura produzida num território geográfico não europeu, marcou também os caminhos das diferenças e distanciamento dos textos-modelo iniciando a crítica um processo de afirmação da identidade de uma escrita nacional. (IZARRA, 2004, p. 7)

 

É à Laura que devo uma das experiências mais impactantes de minha atividade como estudiosa da língua inglesa e de suas literaturas: o convite para participar da tradução dos relatos diários escritos por Roger Casement, quando cônsul-geral britânico no Brasil, em duas viagens ao alto Amazonas, em 1910 e 1911, para investigar denúncias de atrocidades contra os índios. As viagens visavam especificamente os estabelecimentos da Peruvian Amazon Company, empreendimento que envolvia a Grã-Bretanha. Casement tinha esperanças de encontrar as coisas parcialmente toleráveis, durante sua estada no Putumayo, e de salvaguardar o futuro, uma vez que a administração estava nas mãos da Companhia e de seus agentes mestiços, incapazes de tratar com justiça as dóceis tribos da floresta. A crueldade contra os indígenas, no entanto, assumia proporções criminosas. Acompanhar as reflexões de Casement sobre o sofrimento dos silvícolas, sobre a dignidade de sua postura e sobre a injustiça que os vitimava é uma experiência inesquecível, que nos leva a refletir sobre os níveis de degradação moral a que pode chegar o ser humano.

O lançamento do Diário da Amazônia de Roger Casement. editado por Angus Mitchell, com organização de Laura P. Zuntini Izarra e Mariana Bolfarine foi solene envolvendo representantes do governo da Irlanda. Mariana Bolfarine coordenara a tradução, de que participamos eu mesma, Mail Marques de Azevedo, e Maria Rita Drumond Viana. Senti-me eufórica em tomar conhecimento da experiência inolvidável de um humanista e desolada com seu trágico final de vida.

Os frutos do trabalho de tradução se multiplicaram. Por solicitação da Laura, na época presidente da ABEI, assumimos a promoção da IV Jornada de Estudos Irlandeses de 2015, em nossa instituição, a UNIANDRADE. Com a assessoria direta das alunas da Laura, na USP, Camila Batista.e Mariana Bolfarine, encarregadas de receber os resumos e estruturar as apresentações. Os Anais do evento, organizados pela Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE, professora Brunilda Reichmann, atingiram um total de 49 trabalhos em 540 páginas.

O ápice do que recebi profissionalmente de Laura, porém, foi a conclusão dos estudos de pós-doutorado com o trabalho A Pós-Colonialidade na Literatura Indiana em Língua Inglesa do Século XXI, na Visão de Rukmini Bhaya Nair. Embora não tenha sofrido os efeitos da diáspora, que atinge a maior parte dos escritores pós-coloniais, a escritora indiana Rukmini Bhaya Nair, que escreve na língua do colonizador, nos dá em seus ensaios uma visão de dentro dos efeitos do colonialismo sobre a psique do sujeito pós-colonial e sobre sua criação literária.

Em Lying on the postcolonial couch, Bhaya Nair expressa sua visão de pós-colonialidade como sintoma traumático que só poderá desaparecer com o retorno às memórias do trauma da colonização, profundamente enterradas na psique do sujeito pós-colonial, o que se deve fazer antes que o fenômeno sucumba à indiferença da amnésia crescente do novo milênio. Como todo fenômeno histórico, a pós-colonialidade será inevitavelmente consignada à memória, em seguida a instituições e, finalmente, relegada ao esquecimento.

De início foram as utopias, a que se seguiram os diálogos preconizados pelos praticantes das literaturas estrangeiras para, finalmente, desembocar nos traumas da pós-colonialidade, sempre apoiada na mão segura de Laura.

Agradeço a você, Laura Patrícia Zuntini de Izarra, as tantas ramificações que me trouxe o nosso relacionamento de profissionais engajadas na pesquisa e na orientação de nossos alunos, mas, acima de tudo, a amizade e a confiança que nos une.

 

REFERÊNCIAS

IZARRA, L. P. Z. (Org.) A literatura da virada do século: fim das utopias? São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.p. 7-11

________ . Literaturas estrangeiras e o Brasil: Diálogos. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.p .7-16.


Laura Patrícia Zuntini de Izarra recebe sua cópia dos Voos Indeléveis das mãos de Victor Pacheco. Foto cedida pela autora deste texto.

 

Agradecimento

My dearest friends,

I am hugely grateful for all your heartwarming texts published in the beautiful book with the work of art that Munira, Mariana and Victor so generously prepared as a surprise for my retirement. It was indeed a memento of deep emotion that left me without words.

The road I have walked along my life has been smooth thanks to all your friendly hands holding me and we continue walking together. I am rereading your pieces and writing to you separately now that the events are over.

A heartfelt hug to each of you,

Laura.


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Mail Marques de Azevedo é Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo (1999). Foi professora da Universidade Federal do Paraná de 1988 a 2007. Atualmente, faz parte do corpo docente da Pós-Graduação em Teoria Literária da UNIANDRADE. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literatura de minorias, atuando principalmente nos seguintes temas: gêneros autobiográficos, literatura afro-americana e literatura pós-colonial.

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