O BIBELÔ
Camila Marchioro
Naquele momento sua essência aparente se reduzia a uma pequena e frágil estátua de madeira muito bem adornada com detalhes em pedras preciosas cuidadosamente embutidas no lugar de seus olhos. Era, para sua mãe, um bibelô estático e qualquer desvio na sua natureza alinhada de ornamento era severamente punido. Mas, ainda assim, havia nele qualquer coisa de vivo. Perfeito na sua dedicação de enfeite, passava desapercebido pelos olhares mecânicos dos que transitavam pelas prateleiras da vida.
A sua mãe lhe dera as ordens de vestir as roupas limpas e seu pai tentava a todo custo que entendesse as palavras de um livro, mas mensagens lhe chegavam desconexas e, por dentro da casca fina que formava o recamo de sua aparência, uma sombra triste se levantou.
Numa manhã, o vento fresco bateu à janela enquanto cores pasteis sublinhavam a linha dos olhos de muitas crianças dentre as quais o Bibelô se comportava uniformemente. Como doía qualquer coisa que lhe escapava o entendimento. As cores da sua retina de pedras raras gritavam. Encolhido dentro do ovo que o continha, talvez tenha até chamado por ajuda, sozinho, completamente.
Na noite daquele dia, uma chuva azul caída de um céu negro invadiu seus sonhos nos quais uma mulher lhe repetia palavras sobre fazer a sua própria cama. Bibelô, então adoeceu de febres quentes que lhe sobrevinham às ideias, curvando-se sobre o próprio estômago. Que ânsia essa a que vinha assim na madrugada em meio aos sonhos? Eram mesmo seus, os sonhos?
Não se podia entender e a mãe brigava, dizia a si coisas inexatas enroladas num sem carinho e lufadas de ventos soltos pelas cortinas do quarto. Então a chuva azul virou uma tempestade, um granizo branco e grande quebrou sua janela. A doença se agravava, a mãe não o compreendia. Apartado, aos poucos, pareceu que começava a sentir. Assim, na ideia de um discurso que inventava e dizia a si próprio, foi que arrumou a própria janela, em pensamento, durante outra grande febre em meio à sua doença cheia de vento. Sentia doer sua mão.
Esperava nos minutos contados a hora de curar-se. Os dias passaram lentos, o pediatra veio. Os rostos dos pais e do médico se alternavam sob sua cama. Aos poucos, mas ainda febril, pode voltar à escola.
Fiel ao papel de estátua e caminhava fingindo ser ainda igual. Ia lento pela rua, uma pequena tosse, enquanto sua mãe o via da janela. De cabeça baixa, ensimesmado, ia ao lado de outras crianças que lhe diziam: ser homem, crescer de tamanhos todos e seguir os passos do pai. Mas e a casca? O ovo? Seria o si mesmo uma cópia estreita de outros homens já feitos antes dele... seria ele um antigo artefato repetido? Um bom produto, apenas? E assim caminhava vazio e quem isso pensava era já gente de grandes idades, porque dentro dele, muito escondido, havia um homem hipotético que lhe ditava regras e, às vezes, questionava o mundo. Esse homem pensava coisas sobre o bibelô que ainda era, coisas como: ia mesmo conseguir ser o que a mãe esperava? E carregou a culpa dos ventos, do pai e da mãe, dos vidros quebrados, ainda um resto de tosse.
O dia comum, banal, a mesma brisa fria de sempre na qual cheiros de pasteis de feiras anteriores vinham de carona, cheiro de meninas adocicadas e também um estranho desejo de ser anjo.
Na sala de aula, um livro se abriu diante dele e já não sabia mais ler! Olhou para uma força de úteros. Sentiu afeto, não entendia, o machucado na mão já esquecido agora doía intermitente e o chamava. Sua mão tomou forma senhoril, era grande, maior do que podia controlar. Uma raiva lhe sobreveio – aquele carinho não era seu, queria afeto e sentiu-se desentendido. Queria chorar, todavia, seu projeto de futuro não o permitia. A mãe, o que diria do seu Bibelô que chorava em frente a estranhos? Por isso, não derramou lágrima e foi apenas uma sombra toda triste que saiu pela sua mão numa violenta forma.
Quebrou-se.
Já não era mais ele ainda o sendo. Os anjos dançaram terríveis, viu um rosto formar-se e tinha raiva. Tão logo voltou a si, era outro. Não podia conceber, sentiu-se estranho, talvez carinho? Teve medo da sua casca quebrada, seu terno de homem futuro caiu rasgado no são ante seus pés. Ouviu veludos e, na sua vulnerável e mole essência de caramujo sem casa, soube-se querido. Chorou.
Via anjos em gentes, filas, nomes, números empilhados e, sobre as janelas, imensas perguntas. Alguém tinha que ter lhe contado antes! Corria pelas salas, corredores e, nas refrações das luzes que penetravam pelos pequenos espaços de vidro, percebeu uma passagem. Aproximou-se curioso, as maçãs coradas, ainda ofegante, entupido de choro, a professora metros atrás, atrapalhada nas próprias pernas.
Ele então se agachou para ver o feixe entre a luz e a sombra projetada pelo detalhe da janela. Ali, viu uma letra, a primeira: agarrou-a para si. Era difícil, ela lutava empalamada. Ele sentia escorregar uma gota salina pela testa. Força, muita força, quando a gota chegou à boca, foi que sentiu o gosto de seu próprio sal pela primeira vez. Ofegante, sentou-se agarrado à primeira letra de seu nome. Com as pernas esticadas ao chão, escorado em uma parede fria, a professora de pé na sua frente, soube-se, sozinho, um menino.
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Camila Marchioro é professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária da UNIANDRADE. Doutora em Letras pela UFPR, foi bolsista CAPES/PDSE 2015 na Universidade do Porto. Atua principalmente nas áreas de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa.
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