Profa. Sigrid Renaux
Entre 1967 e 1968,
Borges proferiu uma série de palestras em inglês na Universidade de
Harvard. Essas “palestras perdidas”, transcritas de fitas só recentemente
descobertas e publicadas sob o título Esse
ofício do verso (do original This
craft of verse), são “um testemunho inédito da leveza e elegância com que
um dos maiores escritores do século XX trata os enigmas da língua e da
literatura”, como consta na orelha do livro.
As seis “lições” de Borges abrangem desde “O enigma da poesia”, “A
metáfora”, “O narrar uma história”, “Música da palavra e tradução”, “Pensamento
e poesia” até “O credo de um poeta”.
Concentrando-nos na primeira palestra, o “Enigma da
poesia”, destacam-se, entre outros tópicos, algumas ponderações memoráveis, como sua
afirmação inicial a “uma platéia de leigos”:
não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida
lendo, analisando, escrevendo (...) e desfrutando. Descobri ser esta última
coisa a mais importante de todas. ‘Sorvendo’ poesia, cheguei a uma derradeira
conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco,
sinto que tenho de redescobrir a literatura para mim mesmo. (BORGES, 2007, p.
10)
Essas palavras nos remetem diretamente ao tópico “o
enigma da poesia”, não apenas no sentido
de que existe algo oculto na poesia, que precisa ser revelado, mas no sentido de
que a própria palavra “poesia” parece afastar o leitor comum de sua leitura,
por considerá-la mais difícil de ser assimilada rapidamente, como se dá com a
prosa. E é exatamente a palavra “desfrutar” – usufruir, ou no sentido figurado,
“deleitar-se com; apreciar”– e, como Borges diz
adiante, “sorvendo poesia”, com seus sentidos de
- inspirar (o ar, com os aromas ou substâncias nele
contidos); inalar, aspirar
- embeber-se ou
impregnar-se de; sugar, absorver
- (metaforicamente) escutar com grande atenção, como que a beber
as palavras
que nos levam ao âmago da questão: a poesia não deve ser apenas lida
linearmente, como a prosa, mas necessita ser inspirada como o ar por nosso corpo, através dos olhos,
absorvida por nossos ouvidos para podermos nos impregnar dela, através de nossa sensibilidade, o que
acontece, evidentemente, quando escutamos atentamente sua leitura, como que
bebendo as palavras do poeta que a recita.
Portanto, é um ato simultaneamente físico, intelectual e estético, pois
a poesia é “uma paixão e um prazer” (p.
11).
Como Borges continua sua
argumentação – e esse é um outro aspecto
muitas vezes negligenciado pelos alunos – fazemos geralmente uma “confusão corriqueira”:
pensamos que, ao lermos Homero, Dante, ou Shakespeare, estamos “estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões
para a poesia” (p. 11), ou seja, “um
livro é apenas um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de
símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras – ou
antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros
símbolos – saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra” (p. 11-12).
É esta relação de contato,
de fruição entre texto e “leitor certo” que precisa existir quando lemos livros
de poesia, para a palavra num texto readquirir vida e saltar de sua leitura linear
para a multi-dimensional,
transformando-se de símbolo
abstrato em palavra ressurgida.
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