Profa. Anna S. Camati
Enquanto outros dramaturgos da época
elisabetana, como Ben Jonson e Thomas Heywood, escrevem ensaios teóricos sobre
questões dramatúrgicas, Shakespeare insere dimensões metateatrais na estrutura
dramática e nas falas das personagens que podem ser lidas como comentários
críticos sobre a cena. Como a maioria
dos seus textos, Sonho de uma noite de verão é essencialmente metateatral: há a peça
dentro da peça, personagens com consciência dramática, cenas de aproximação
entre o palco e a plateia, ruptura da ilusão dramática e reflexões sobre o
fazer teatral.
Alguns críticos afirmam que ao flagrar os processos de apropriação textual
e os mecanismos da adaptação do texto dramático para a cena, o objetivo de
Shakespeare teria sido mostrar a superioridade de sua prática dramatúrgica e
ironizar o teatro amador anterior a ele. Contudo, os intrincados procedimentos metalinguísticos inscritos no texto
que fazem uso do código para falar dos códigos (JAKOBSON, 2005, p.67) fornecem
indícios de que ele reflete sobre seu próprio fazer teatral numa atitude autorreflexiva,
lúdica e metacrítica. Tudo indica que, longe de querer denegrir, o bardo presta
uma grande homenagem às trupes de atores amadores da rica tradição do teatro
popular medieval da qual ele tanto se beneficiou.
O texto adaptado por Peter Quince, o duplo paródico de Shakespeare
Na segunda cena do
primeiro ato de Sonho de uma noite de
verão, Shakespeare (2004, p.27-32) introduz uma companhia de teatro amador,
formada por artesãos das corporações de ofício, dentre eles Pedro Quina, um carpinteiro[1]
que também exerce as funções de ator e dramaturgo-ensaiador[2].
Assim como Shakespeare, ele se revela um exímio adaptador de fontes matriciais,
das quais ele se apropria para escrever um novo texto. Esse Johannes
factotum[3] apresenta, para sua trupe, uma proposta
cênica derivada de um texto clássico que ele pretende submeter ao mestre de
cerimônias do Duque Teseu para ser apresentada no dia do casamento do regente.
O texto-fonte de Quina,
um poema narrativo do quarto livro das Metamorfoses
de Ovídio (2003, p.74-77), intitulado “A história de Píramo e Tisbe”, é antigo e clássico: para garantir a eficácia da tradução,
ele teria de levar em conta as interferências da situação de enunciação de uma
língua para a outra e de uma cultura para outra, como ensina Pavis (2008,
p.124) em um artigo que discute a série de concretizações de um texto dramático
tendo em vista a encenação: “O texto traduzido faz parte igualmente tanto do
texto e da cultura-fonte quanto do texto e da cultura-alvo: eles têm, portanto,
necessariamente, uma função de mediação”.
Cumpre assinalar que as especificidades que caracterizam um bom texto adaptado, conhecidas
e observadas por Shakespeare, estão completamente ausentes na tradução de Quina.
Trata-se, apenas, da transliteração
para o inglês e da transformação genérica do poema narrativo de Ovídio para o
gênero dramático, rebatizado como “A mui lamentável comédia e crudelíssima
morte de Píramo e Tisbe”. Teria sido necessário traduzir a narrativa de Píramo
e Tisbe para o imaginário cultural renascentista, como fez Shakespeare quando
reinventou a história de Romeu e Julieta baseada em fontes italianas
(Salernitano, Da Porto e Bandello), francesas (Boaistuau) e inglesas (Arthur
Brooke e William Painter). Apesar de se apropriar de elementos de várias
versões anteriores sobre a história dos amantes infelizes, Shakespeare se
destaca pelas diferenças introduzidas em seu texto e pela modernização do
pensamento ocidental.
Em Romeu
e Julieta, Shakespeare introduz, dentre outras inovações, novas temáticas,
novos enfoques e uma nova moral. Em seu texto, um novo contrato social é
inaugurado com base na escolha individual. Prevalece a valorização da noção de
indivíduo, dotado de vontade e sentimentos, exemplificada por meio da conduta
transgressiva de Julieta que questiona e se rebela contra a autoridade paterna,
priorizando sua identidade pessoal em detrimento da social e nominal. Além da focalização
da dimensão interna do indivíduo, ou seja, a revelação do que se passa no
íntimo dos amantes, a história é contada de uma maneira totalmente nova: as
narrativas de Matteo Bandello e Arthur Brooke, ambas de cunho moralizante, com
ênfase na lei da retribuição, são atualizadas e a moral tradicional é
subvertida: os amantes não são inteiramente responsáveis pelo seu infortúnio,
visto que há muita interferência do acaso. Na visão do bardo, eles não cometeram
nenhuma falta, por isso não merecem castigo; são vítimas, pelo menos em parte,
do ódio violento que move o feudo entre as duas famílias.
No enredo dos
artesãos do Sonho percebe-se,
de imediato, a ironia de Shakespeare ao inserir na peça um duplo de si mesmo
que se apropria de um texto clássico, mas não conhece os meandros dos processos
tradutórios. A preocupação de Quina parece ter sido traduzir literalmente
partes do poema narrativo de Ovídio para compor o texto dramático, o que
explica uma série de incongruências no texto adaptado. No entanto, como veremos
mais adiante, no processo de adaptação do texto dramático para o palco, Quina
se mostra totalmente aberto para fazer as mais diversas interpolações e
modificações para adequá-lo à cena.
A
brincadeira do duplo paródico, ou seja, a representação de um
dramaturgo-ensaiador que se aventura em traduzir e adaptar um texto clássico parece
ser uma resposta de Shakespeare aos seus pares que faziam referência à sua falta
de proficiência em línguas clássicas.[4]
Além do mais, de acordo com alguns críticos contemporâneos, para sublinhar o
cunho irônico ao compor o texto da peça dentro da peça, Shakespeare realizou
uma extensa pesquisa, coletando pérolas de diversas traduções literais do texto
de Ovídio que circulavam na Londres da época elisabetana.
No
artigo “When everything seems double: Peter Quince, the other playwright in A Midsummer Night’s Dream” (“Quando tudo parece ser duplo: Pedro Quina, o outro
dramaturgo em Sonho de uma noite de verão”),
A. B. Taylor (2003, p.55-66) argumenta que, no texto traduzido por Quina,
muitas falas são transliterações do latim e apropriações da sintaxe latina,
falhas que eram frequentes em traduções das obras de Ovídio. A proximidade com
o texto latino é inequívoca e pode ser comprovada por inúmeras frases e falsos
cognatos traduzidos ipsis litteris do
latim para o inglês, visto que os tradutores da época cometiam enganos pelo
desconhecimento das dimensões semântica, sintática, rítmica, acústica,
conotativa, dentre outras, de ambas a línguas, a do texto-fonte e a do texto-alvo,
elementos do processo tradutório que Shakespeare dominava com maestria. Taylor
(2003, p.56) relata, ainda, que muitas situações hilárias são ironias criadas
por Shakespeare que, com certeza, escreveu o texto com um exemplar do texto
latino de Ovídio aberto à sua frente. Acontece que não há nenhum leão na
história de Ovídio. A criação do papel do Leão para Justinho, o marceneiro,
decorre de um equívoco cometido por Quina, que não se dá conta que o
significado da palavra leaena é “leoa”
ao invés de “leão”. Além disso, a descrição de Píramo como sendo um “belíssimo Judeu”
(most lovely Jew) decorre do esforço ingênuo do tradutor para encontrar um
equivalente literal para iuvenum
pulcherrimus que significa “belíssimo jovem”. Outra incongruência que
provoca risadas na plateia é o uso do vocábulo “deflorar” ao invés de “devorar”:
PÍRAMO:
Por que a natureza fez leões?
Um leão deflorou minha amada
Que é – não, era – a dama mais bonita,
Bela, boa, brilhante e abençoada. (SHAKESPEARE, 2004, p. 114)
Estes procedimentos
paródicos e metadiscursivos utilizados como estratégias de construtividade
textual revelam que o bardo faz uma grande brincadeira, e dá uma resposta
irônica às críticas daqueles que, à maneira de Ben Jonson, subestimavam seus
conhecimentos linguísticos. Ao
criar o enredo dos artesãos no Sonho,
Shakespeare retoma suas origens lançando mão de técnicas e formas consagradas
pelo teatro de rua medieval e do jogo do improviso da commedia dell’arte que, segundo diversos depoimentos da época,
havia estado de passagem por Londres. E, para divertir-se, e oferecer entretenimento ao público, Shakespeare insere
em seu texto um carpinteiro,
pertencente a uma classe da qual ele próprio descende (seu pai era luveiro) e,
pasmem os incrédulos, esse rústico dramaturgo-ensaiador teve a ousadia de
traduzir um texto latino. No irônico subtexto, Shakespeare dá a entender que
não basta falar latim ou grego para escrever uma peça de sucesso.
O artigo na íntegra
foi publicado na Revista de Letras, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 127-141, jan./jun. 2011 e está disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br/letras/article/view/5109>
[1] O fato de Pedro Quina ser um carpinteiro não é
um mero acaso. Ainda hoje, usa-se o termo carpintaria teatral para referir-se à
construção de um texto dramático.
[2]
Como na época elisabetana os escritores de peças também acumulavam as funções
de ensaiador e ator, uso o termo dramaturgo-ensaiador para fazer referência a
essa figura polivalente.
[3] Em
1592, Shakespeare já era um autor muito popular e causava inveja aos University Wits (dramaturgos
universitários), dentre eles Robert Greene. Em um panfleto editado por um
amigo, Greene chamou Shakespeare de Johannes
factotum, uma pessoa que exerce vários ofícios, mas não é proficiente em nenhum. Esse termo
pejorativo não se aplica a Shakespeare que foi bem sucedido em todas as
atividades que empreendeu, mas pode ser atribuído a Pedro Quina que não
apresenta habilidades nos ofícios de poeta e dramaturgo.
[4] No
prefácio da primeira edição da obra de Shakespeare (Primeiro Fólio/1623), Ben Jonson,
para homenagear o bardo, publica um poema, intitulado “To the Memory of My
Beloved Master William Shakespeare, and What He Has Left Us”. Nesse poema, ele
assevera que Shakespeare é uma estrela de primeira grandeza, apesar de saber
“pouco latim e menos grego”.
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