Professora Edna da Silva Polese
A Canção de Rolando
foi redigida provavelmente entre os anos 1098 e 1100. É anônima, assinada pelo
copista Turoldus e narra acontecimentos ocorridos no ano 778. Acontecimentos
bélicos da famosa batalha de Roncesvales, onde Carlos Magno e seus dozes pares
enfrentaram o exército do rei Marsílio, mouro, inimigo da fé cristã e dos
ideais ambicionados por Carlos Magno.
Segundo Carpeaux, na História
da Literatura Ocidental, a historiografia francesa distingue três ciclos da
epopeia medieval: o Ciclo de Carlos Magno, o Ciclo Bretão e o Ciclo Antigo. Ainda
segundo Carpeaux, o chamado Ciclo Antigo representa a sobrevivência das
epopeias gregas e romanas. A Idade Média ignorava as epopeias homéricas:
Segundo a opinião de certos
críticos estrangeiros, os franceses exageraram o valor da Chanson de Roland; a geste
não poderia comparar-se às grandes epopeias populares das outras nações. Essa
opinião não se justifica. É verdade que a Chanson
de Roland carece de arte consciente, de “poesia feita”, mas as outras
epopeias populares estão no mesmo caso. O valor dessas produções reside na
capacidade de representar uma nação, uma época. Com a nação francesa dos tempos posteriores, nação de
patriotas-cristãos, a Chanson de Roland
pouco tem a ver. Roland e os outros personagens revelam devoção cristã; porém,
esta não é motivo da sua ação. E patriotismo, no sentido moderno, a Idade Média
não o conhececeu. A “Dulce France”, a palavra chave do poema, só revela que o
último redator do texto atual conhecia Virgílio, mas o espírito da obra não é
virgiliano. (...) A Chanson de Roland
representa a época em que os franceses estavam mal cristianizados, e, por assim
dizer, ainda não eram franceses. Eram francos. Assim como no Poema de mio Cid castelhano subsiste o
espírito visigótico, e assim como no Nibelungenlied
alemão subsiste o espírito escandinavo, assim também a Chanson de Roland
pertence à época de transição entre a barbaria germânica e a civilização
francesa. (...) Na verdade, a Chanson de
Roland é um dos grandes e um dos mais fortes poemas bárbaros da literatura
universal. (Carpeaux, p.175-176)
De acordo com Auerbach, em Mímesis, o poema não apresenta explicações sobre os acontecimentos
enigmáticos que demonstra. Tudo é embasado nos princípios desse quadro estreito
da camada social: o cavalheiresco desejo de lutar, o conceito de honra, a mútua
fidelidade entre companheiros de armas, a comunidade de castas, o dogma
cristão, a divisão do justo e do injusto entre fiéis e infiéis. (p.87)
A história de Carlos Magno, assim com o poema que o eternizou
é parte da expressão maior da fundação da Europa, seus povos, suas lutas, suas
conquistas, sua identidade, enfim. Mas não ficou restrita a esse continente.
Atravessou o Atlântico e foi uma das primeiras leituras dos povos que se
instalaram no Brasil. Luis da Câmara Cascudo registra no Dicionário de Folclore Brasileiro quando ocorreram as primeiras
traduções, edições e divulgação do poema na Europa, em Portugal e o ano que
supostamente veio para o Brasil, provavelmente no ano de 1732. Informa ainda
sobre a popularidade da obra: “Volume popularíssimo em Portugal e Brasil,
leitura indispensável por todo o sertão, inúmeras vezes reimpresso e tendo
ainda o seu público leitor fiel e devotado.”
A partir daí dá-se um segundo movimento: a popularidade da
narrativa, dos acontecimentos, do imaginário que se cria em volta da figura do
rei e dos seus cavaleiros imprimiria aos povos nordestinos uma nova
reconfiguração. A literatura de cordel se apropriará do tema. No espaço rural
será a narrativa que embalará os sonhos de gerações.
É a partir da reconfiguração da batalha de Roncesvales que se
organiza a cavalhadas, festas em que cavaleiros se vestem de vermelho e azul
para representaram os cristãos e os mouros. Organizam torneios que rememoram
práticas medievais. Esse tipo de festa ocorre em todo o Brasil, oriunda da
tradição portuguesa, mas inspirada principalmente nos acontecimentos da famosa
batalha.
É da famosa batalha, ainda, que Ariano Suassuna preenche as
ações de sua obra mais significativa: o Romance
da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e do Volta. Quaderna, seus
personagem principal, organiza as cavalhadas, veste-se como cavaleiro medieval
e ambiciona um reino, um império, tentando equiparar-se ao famoso imperador
franco.
A tradução de Pierre Jonin traz notas e comentários do
organizador que iluminam essa veneração à narrativa por parte dos brasileiros:
“Viajando pelo Brasil em 1977, um francês chega a um vilarejo muito isolado do
Rio Grande do Norte. Um camponês bastante idoso, quando soube que eu vinha da
França, pediu-me notícias de Rolando. Toda noite, os camponeses nordestinos
entoam cantinelas: a história dos doze pares de Carlos Magno, do traidor
Ganelon, de Amadis de Gaula. O camponês estava preocupado. A discussão entre
Roldão e Oliveiros não lhe dizia nada de bom. Ele não apostaria muito na
felicidade da bela Alda.”
Atravessando séculos e espaços, a narrativa de Rolando e seus
pares preenche o imaginário da cultura popular brasileira, através de seus versos
e suas cantigas, de suas festas e de suas rodas de história, alocando mais uma
peça ao intenso e movimento mosaico da identidade brasileira.
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