Anna Stegh Camati
(UNIANDRADE/PR)
Em O mercador de Veneza (1596), a lógica maniqueísta não se sustenta. Nesse
texto, Shakespeare subverte os estereótipos raciais, manipula os conceitos
culturais com grande sutileza e introduz uma multiplicidade de vozes
dissonantes para refletir sobre os males da intolerância e do
preconceito. Diversos críticos argumentam que a temática da peça remete à
Londres do século XVI, um centro comercial emergente, e à forte onda de antissemitismo
que varreu a cidade em 1593-94. Em evidente paralelo com Veneza, Shakespeare
não só mostra a explosão dos ódios e agressividades entre cristãos e judeus,
fruto da intolerância recíproca em suas relações de oposição e dependência, mas
também desmistifica a ideologia dominante, apontando o poderio econômico do judeu como uma das causas de sua
demonização (CAMATI, 2009, p. 62).
Em função do fanatismo que imperava naquele momento histórico,
a peça O judeu de Malta, de Christopher Marlowe, escrita em 1589, cujo
protagonista encarnava todos os vícios que uma visão preconceituosa pudesse
conceber, foi remontada em Londres. Diferentemente de Marlowe, a peça de
Shakespeare, provavelmente escrita por encomenda para concorrer com a companhia
de teatro rival, evitou o estereótipo ao criar Shylock, uma personagem de
extraordinária complexidade. Apesar de apresentar características condenáveis, Shylock
é um ser humano que sofre e tem motivações compreensíveis para agir da forma
que age, sendo ao mesmo tempo vítima de constantes perseguições e carrasco
vingativo.
O filme O mercador de
Veneza (2004), com direção de
Michael Radford, cineasta indiano radicado na Inglaterra, e Al Pacino no papel de Shylock, é considerado
a primeira adaptação cinemática do texto homônimo de Shakespeare desde a era do
cinema mudo.
Ao idealizar o roteiro do filme, Radford exerceu, em primeiro
lugar, a função de leitor, um procedimento que nunca é inocente, visto que a ótica
do adaptador é sempre decisiva na releitura de um texto. O teórico de cinema Robert Stam argumenta que
a fidelidade ao texto-fonte deixou de ser critério maior de juízo crítico na
prática da adaptação cinematográfica. Acrescenta, ainda, que os
desenvolvimentos das teorias pós-estruturalistas e da recepção abriram espaço
para novas abordagens e perspectivas críticas: a adaptação agora é vista como expressão
do processo cultural em constante mutação ou como diálogo intertextual (STAM, 2008,
p. 9-12). Neste ensaio, alguns aspectos do filme O mercador de Veneza, adaptação cinematográfica do texto homônimo
de Shakespeare realizada por Michael Radford, serão discutidos, dentre eles as transformações
necessárias para atender as exigências das mídias audiovisuais, como cortes de texto,
encurtamento de falas, interpolações visuais e textuais e a reconfiguração da
narrativa.
O cinema, assim como a maioria dos veículos de comunicação, sempre
emprestou e reciclou elementos de outras artes e mídias. No filme de Radford, a
ambientação e os figurinos são de época: as imagens de algumas cenas foram filmadas
em locações externas e internas da Veneza de hoje, como a ponte do Rialto e o
palácio do Doge, e, outras, em estúdio, inspiradas na pintura de artistas como
Ticiano, Caravaggio e Velázquez, para citar apenas alguns. Como nos filmes A megera domada (1967) e Romeu e Julieta (1968), de Franco
Zeffirelli, não se trata de pinturas específicas, mas de especificidades da
pintura como cores, formas, luz, texturas e enquadramentos utilizadas como
inspiração para a composição de cenários, figurinos e organização espacial. Os
elementos pictóricos neste tipo de abordagem não são apenas decorativos, mas
funcionais e sugestivos.
Por meio da iluminação, mise
en scène, composições cromáticas e
angulações de câmera, o cineasta alude a características de perspectiva, luz e
sombra, e configurações arquitetônicas da pintura do humanismo italiano e do
barroco italiano e espanhol. A representação de figurinos de época, de
interiores de palácios ricamente ornamentados e de mesas de banquete decoradas
com travessas de frutas e outros adornos e utensílios remetem a moldelizações
visuais como a natureza morta e os retratos. Outras cenas que incluem espelhos
e molduras em sua composição também seguem metarepresentações inspiradas em
quadros.
Apesar de ambientado no século XVI, o filme de Radford nos apresenta uma leitura
pós-holocausto, embasada em considerações críticas neo-historicistas e
feministas. O cineasta acentua as dimensões trágicas de Shylock, flagrando não
somente a crueldade e o desejo de vingança do judeu, mas também o seu
sofrimento causado pela hipocrisia da sociedade hegemônica cristã que despreza
Shylock por depender do seu dinheiro para realizar transações comerciais.
A versão integral do artigo foi
publicada no livro Ensaios de
literatura, teatro e cinema. Orgs. Anelise Reich Corseuil et al. Florianópolis:
Fundação Cultural Badesc/ Cultura Inglesa, 2013.
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