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segunda-feira, 27 de maio de 2013

Margaret Atwood e a desconstrução/reconstrução da Arte de escrever



Sigrid Renaux


O ensaio  “O discurso dialógico de Margaret Atwood em Negociando com os mortos” (RENAUX, 2012, p. 177-190) apresenta, na terceira parte, as considerações da escritora canadense sobre a arte de escrever.
Ao direcionar suas reflexões ao tema da “escrita como arte, e ao escritor como herdeiro e portador de uma série de pressupostos sociais sobre a arte em geral e sobre a escrita em particular”, apontando assim para a responsabilidade do escritor, Atwood afirma, primeiramente, que a arte de escrever se distingue da maioria das outras pela “sua aparente democracia (...), sua acessibilidade a quase todas as pessoas como um meio de expressão” (NM, p. 54). Entretanto, essa aparente democracia é em seguida desconstruida, pois mesmo que “a maioria das pessoas acredita secretamente que elas próprias guardem um livro dentro de si”, pois muitos “passaram por uma experiência sobre a qual outros gostariam de ler”, “isto não é o mesmo que ‘ser escritor’”.
Sua insólita comparação do ato de escrever com a de um coveiro – “qualquer um pode cavar um buraco no cemitério, mas nem todo mundo é coveiro” – comparação que ela própria considera “sinistra”, e que nos remete inconscientemente à cena do coveiro em Hamlet – na realidade é muito mais pertinente e profunda do que parece à primeira vista: pois

para ser [coveiro] é preciso muito mais energia e persistência. Além disso, dada a sua natureza, é uma atividade profundamente simbólica. Como coveiro (...) carrega-se nos ombros o peso das projeções de outras pessoas, dos seus medos e fantasias, ansiedades e superstições. Representa-se a mortalidade quer se goste ou não. (NM, p.55)
É este papel simbólico que Atwood transfere em seguida para “qualquer  papel público, inclusive o de Escritor, com E maiúsculo”, mesmo que o “seu significado – seu conteúdo emocional e simbólico – vari[e] com o passar do tempo” (NM, p.55), confirmando e recontextualizando assim o teor do ensaio de Eliot, “Tradição e Talento Individual”:
A tradição (...) envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico (...); e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. (...) Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. (ELIOT, 1989, p. 39)  (Minha ênfase).
        A questão do título e subtítulo do livro de Atwood, portanto, remete, por um lado, a esta  relação necessária que Eliot estabelece entre um poeta ou artista com os poetas e artistas que o precederam, situando-o “para contraste e comparação, entre os mortos” a fim de podermos melhor estimá-lo; por outro,  ela já está  prefigurada neste primeiro capítulo, através da figura simbólica do coveiro, e do sentido que Atwood dá ao título, pois, como ela explica no capítulo final A descida: Negociando com os mortos,
O título deste capítulo é “Negociando com os mortos” e a sua hipótese é que não apenas alguns, mas todos os escritos do gênero narrativo, e talvez até tudo que se escreva, seja no fundo motivado pelo medo e a fascinação diante da mortalidade – por um desejo de empreender a arriscada viagem para os Infernos e dali trazer algo ou alguém ao regressar” (NM, p. 196-7).
Amplia e aprofunda assim esta relação eliotiana, ao lançar a hipótese de que não apenas nós, leitores, precisamos situar o poeta/artista entre os poetas/artistas que o precederam mas que os próprios escritores desejam estabelecer contato com os poetas mortos, a fim de “trazer algo ou alguém ao regressar”. Estabelece então, numa pergunta retórica, uma premissa de trabalho: “por que escrever, mais do que qualquer outro meio de expressão ou arte, estaria tão estreitamente vinculado a nossa própria ansiedade e respeito pela própria extinção final?”(NM, p. 198) Como ela mesma responde,
Ir ao país dos mortos e trazer de volta à terra dos vivos alguém que estava lá – é um desejo humano muito profundo, embora seja também algo rigorosamente proibido. Mas é possível conceder uma espécie de vida a quem escreve. Jorge Luis Borges em seus Nove ensaios dantescos, propõe uma teoria interessante: toda a Divina Comédia (...) foi composta por Dante para poder entrever a falecida Beatriz e trazê-la de volta à vida em seu poema. É porque escreve sobre ela, e somente por isso, que Beatriz pode voltar a existir novamente na mente do escritor e do leitor. (NM, p. 213) (ênfase minha)
Esta concepção borgiana é então retomada e desenvolvida por Atwood, ao afirmar: 
 Ninguém torna a voltar para casa novamente, disse Thomas Wolfe;  mas de certo modo voltamos, quando escrevemos sobre isso. (NM, p. 214). (...)
Todos os escritores aprendem com os mortos. Enquanto continuamos a escrever, continuamos a explorar o trabalho dos escritores que nos precederam; ao mesmo tempo nos sentimos julgados e responsabilizados por eles. (...) Porque os mortos controlam o passado, controlam a histórias, e também certas verdades (...); portanto, se formos nos aventurar na narrativa, teremos de lidar, mais cedo ou mais tarde, com essas camadas anteriores do tempo. Mesmo que o tempo seja o de ontem apenas, já não é hoje. Não é o agora em que estamos escrevendo. Todos os escritores têm de passar do agora para o era uma vez; todos devem ir daqui para lá; todos devem descer até o lugar em que as histórias estão guardadas; todos devem cuidar para não serem capturados e imobilizados no passado. E todos precisam furtar ou recuperar, dependendo do ponto de vista. Os mortos podem guardar o tesouro, mas ele será inútil se não puder ser trazido de volta à terra dos vivos e reingressar no tempo – o que significa entrar para o dominio do público, o domínio dos leitores, o domínio da mudança. (NM, p. 220-221)

Ao confirmar a obrigatoriedade do escritor de transitar temporal e geograficamente do mundo dos escritores vivos ao mundo dos escritores mortos, a fim de “furtar ou recuperar” os tesouros lá escondidos, pois eles só terão valor se puderem ser trazidos de volta e reingressarem no tempo, isto é, no domínio do público e, assim, da mudança – esta palavra seminal –, Atwood consegue portanto ir além das correntes culturais do pós-modernismo e do pós-colonialismo: sua perspectiva pragmática, abrangente e conciliadora não apenas desconstroi as “ortodoxias existentes” da crítica acadêmica, do colonialismo e do eurocentrismo, mas até as da arte de escrever, através das diferentes perspectivas que estabelece entre essas ortodoxias e seu próprio ponto de vista. 
Ao “propor um protótipo mais antigo [do que Virgílio] para o aventureiro aos Infernos como escritor – o já mencionado heroi sumeriano Gilgamesh”(NM, 216) – Atwood está também redimensionando o centro do “arcabouço cultural europeu” (BONNICI, 2005, p. 26) para incluir o do mundo oriental, confirmando assim a afirmação de Frye de que “o centro da realidade está onde a pessoa acontece estar, e sua circunferência é aquela que a imaginação da pessoa consegue explicar”.
Simultaneamente, ela está exercendo, em seu discurso dialógico, a proposta de Harris e Soyinka por um “culturalismo cruzado”, que transcende as atitudes antinômicas de globalização x identidade nacional ou regional – ao ambos escritores chamarem a atenção, em sua crítica, a correspondências culturais racionalmente inexplicáveis e ao insistirem na natureza intuitiva da imaginação e em sua capacidade de conceber a humanidade em termos heterogêneos, (não apenas num sentido racial mas com referência a todas as espécies vivas), a fim de, nas palavras de Harris, “prevenir a morte da imaginação dentro das molduras da identidade dogmática e da homogeneidade” (JELINEK, 2008, p.89-90).
É este cruzamento de diálogos e culturas, entre escritores vivos e mortos,  que Atwood negocia também com seus leitores, ao falar, ao longo da obra, “do ofício de escrever”.

Referências:
ATWOOD, Margaret. Negociando com os mortos: a escritora escreve sobre seus escritos. Trad. Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

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