[...].
No mundo contemporâneo, ter uma casa não está mais
relacionado aos conceitos de “família” e “liberdade”. Hoje em dia, a casa é uma
fortaleza construída para proteger o cidadão dos outros e da cidade à sua
volta. A falta de segurança nas ruas obriga o sujeito a ficar emparedado,
enclausurado e restrito ao seu ambiente particular. O direito de ir e vir, nas
ruas, implica riscos. A casa é o lugar mais seguro, mesmo não sendo totalmente
seguro:
Na sua sólida materialidade de tijolo e cimento, a
“casa” alimenta o ressentimento e a rebelião. Se fechada ao exterior, se sair é
uma perspectiva distante ou inexistente, a casa se torna uma prisão. A
imobilidade forçada, a condição de estar preso a um lugar […] parece
abominável, cruel e repulsiva; (BAUMAN, 1999, p. 130).
Liberdade restrita, sociabilidade também restrita. É
nesse cenário de medo e solidão constantes que se desenrola a história de O
outro lado da rua, filme dirigido por Marcos Bernstein. Estrelado pelos
veteranos Fernanda Montenegro (Regina) e Raul Cortez (Camargo), a produção,
que, em vários festivais, conquistou o prêmio de melhor filme, é o retrato da
vida contemporânea. Não se trata, porém, de mostrar avanços ou facilidades. O
que interessa é a complexidade de ser, de existir e de fazer parte de uma
sociedade marcada pelo paradoxo de querer ser livre, mas de ter medo da
liberdade e de precisar do outro, mas de temê-lo:
A insegurança ambiente concentra-se no medo pela
segurança pessoal; que por sua vez aguça ainda mais a figura ambígua e
imprevisível do estranho. Estranho na rua, gatuno perto de casa… Alarmes contra
assalto, bairros vigiados e patrulhados, condomínios fechados, tudo isso serve
ao mesmo propósito: manter os estranhos afastados. (BAUMAN, 1999, pp. 130-1).
Ilhada, em seu apartamento, Regina, a protagonista,
vive apenas com a cachorrinha, Betina. Mesmo morando em um prédio grande, na
praia de Copacabana, com inúmeros apartamentos vizinhos, a mulher é
absolutamente só. O tédio e o isolamento são reforçados pela escuridão do
apartamento e pela neutralidade das cores: azul, branco, cinza e marrom.
1 –
O personagem Regina em seu apartamento, em Copacabana
Imagem
disponível em: http://volverumfilme.blogspot.com.br/2010/08/o-outro-lado-da-rua-2004.html
A mulher costuma ficar à janela, olhando o mundo e as
pessoas lá fora, até anoitecer. Seu passatempo é vigiar os vizinhos dos prédios
do outro lado da rua, com um binóculo. Assim, ela rompe o tédio e se mantém
segura. Não há contato pessoal. Ela consegue ficar perto do outro, mas mantendo
distância. [...].
No filme, o problema da terceira idade é ter tempo
demais em uma sociedade que tem tempo de menos. O que se põe em discussão é
como usar o tempo. Regina encontra uma companheira de profissão, personagem de
Laura Cardoso, em uma pracinha, onde outros idosos jogam dominó e carteado. A
estranha diz conhecer Regina da delegacia e se apresenta como Patolina,
pseudônimo necessário ao seu ofício. [...]. A idade e a profissão as aproximam,
no entanto, a postura das duas diante da vida diverge. Regina tenta fingir que
o tempo não passou: “Eu acho que eu ainda me vejo de um jeito que ninguém mais
me vê. Eu me vejo como eu sempre fui.” (O OUTRO, 2004). Mais do que solidão, a
fala do personagem revela certa frustração, por não ser compreendida pelos
outros. A visão de Patolina é diferente: “Pois eu só me vejo velha.” (O OUTRO,
2004), mas não deixa de ser negativa. Ela aceita a velhice, mas é justamente
essa consciência que a faz amarga. Apesar de Regina estar na pracinha, que é
uma espécie do ponto de encontro de idosos, ela não faz nada. Apenas está lá.
Já Patolina começa a tricotar, ao que Regina reage, dizendo: “Ah, Deus! Por que
essa velharada toda não vai pra casa cuidar da vida?” (O OUTRO, 2004). Ela faz
o que sugere e vai para a casa, mas, em vez de cuidar de sua própria vida,
trata de bisbilhotar a vida alheia. Nesse momento, o silêncio, dentro do
apartamento, é absoluto, até que ela pega o convite para a festa de aniversário
do neto e rasga, dizendo para ela mesma: “Eu não tenho tempo vago.” (O OUTRO,
2004). [...].
No plano afetivo, Regina encara Camargo como uma
ameaça, afinal, ela pensa que ele assassinou a esposa. Mesmo assim, começa um
envolvimento com ele. A intimidade vai se estabelecendo aos poucos, mas ela
nunca deixa de tratá-lo como suspeito. Quando ganha bombons, temendo que
estejam envenenados, ela espera que ele os coma primeiro. Na casa dele, peixes
e plantas mortas no aquário aumentam a desconfiança. [...]. A falta de privacidade
e a liberdade vigiada excedem os limites do filme. Marcos Bernstein leva para a
tela uma problemática comum do cotidiano contemporâneo e, através dos
personagens, convida o espectador a pensar sobre a função das facilidades (ou
dificuldades?) da vida moderna. Coerente com a sintonia entre o filme e a
realidade, o final não poderia ser outro. Camargo aceita perdoar Regina, depois
de receber dela um binóculo de presente. Esse modo “ausente” e artificial de se
relacionar é mero reflexo da era global.
2 –
Regina e seu binóculo, na capa do DVD O
outro lado da rua
Imagem
disponível em:
http://volverumfilme.blogspot.com.br/2010/08/o-outro-lado-da-rua-2004.html
Com o apagamento das fronteiras, motivado,
principalmente, pelo convívio virtual, é cada vez mais frequente a “separação
entre espaço e lugar”. Surpreendente é o fato de a eliminação das fronteiras
acabar estabelecendo uma divisão como essa. Stuart Hall, referindo-se ao que
Harvey chamou de “destruição do espaço através do tempo”, explica que a diferença
é marcada, porque “os lugares permanecem fixos […]. Entretanto, o espaço pode
ser ‘cruzado’ num piscar de olhos — por avião a jato, por fax ou por satélite”.
(HALL, 2001, pp. 72-3). Sendo assim, Regina e Camargo terminam juntos, mas
separados, penetrando na intimidade do outro, sem deixar o aconchego e a
segurança de seu lar, a uma distância segura do outro, que é amável, mas, ao
mesmo tempo, ameaçador. No impessoal mundo contemporâneo, as relações se
estabelecem por e-mail, por celular e, no caso dos personagens do filme,
pelo olhar curioso e apaixonado através do binóculo e do vidro da janela.
Novamente, a vitória do individualismo.
(Parte do
artigo intitulado A violência urbana no
cinema brasileiro contemporâneo, escrito pela Profa. Dra. Verônica Daniel
Kobs e publicado na revista Todas as
musas, ano 4, n. 2, jan.-jun. 2013.)
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