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segunda-feira, 6 de maio de 2013

O medo do outro em O outro lado da rua, de Marcos Bernstein

 
 
[...].
No mundo contemporâneo, ter uma casa não está mais relacionado aos conceitos de “família” e “liberdade”. Hoje em dia, a casa é uma fortaleza construída para proteger o cidadão dos outros e da cidade à sua volta. A falta de segurança nas ruas obriga o sujeito a ficar emparedado, enclausurado e restrito ao seu ambiente particular. O direito de ir e vir, nas ruas, implica riscos. A casa é o lugar mais seguro, mesmo não sendo totalmente seguro:
 
Na sua sólida materialidade de tijolo e cimento, a “casa” alimenta o ressentimento e a rebelião. Se fechada ao exterior, se sair é uma perspectiva distante ou inexistente, a casa se torna uma prisão. A imobilidade forçada, a condição de estar preso a um lugar […] parece abominável, cruel e repulsiva; (BAUMAN, 1999, p. 130).
 
Liberdade restrita, sociabilidade também restrita. É nesse cenário de medo e solidão constantes que se desenrola a história de O outro lado da rua, filme dirigido por Marcos Bernstein. Estrelado pelos veteranos Fernanda Montenegro (Regina) e Raul Cortez (Camargo), a produção, que, em vários festivais, conquistou o prêmio de melhor filme, é o retrato da vida contemporânea. Não se trata, porém, de mostrar avanços ou facilidades. O que interessa é a complexidade de ser, de existir e de fazer parte de uma sociedade marcada pelo paradoxo de querer ser livre, mas de ter medo da liberdade e de precisar do outro, mas de temê-lo:
 
A insegurança ambiente concentra-se no medo pela segurança pessoal; que por sua vez aguça ainda mais a figura ambígua e imprevisível do estranho. Estranho na rua, gatuno perto de casa… Alarmes contra assalto, bairros vigiados e patrulhados, condomínios fechados, tudo isso serve ao mesmo propósito: manter os estranhos afastados. (BAUMAN, 1999, pp. 130-1).
 
Ilhada, em seu apartamento, Regina, a protagonista, vive apenas com a cachorrinha, Betina. Mesmo morando em um prédio grande, na praia de Copacabana, com inúmeros apartamentos vizinhos, a mulher é absolutamente só. O tédio e o isolamento são reforçados pela escuridão do apartamento e pela neutralidade das cores: azul, branco, cinza e marrom.
 

1 – O personagem Regina em seu apartamento, em Copacabana

 
A mulher costuma ficar à janela, olhando o mundo e as pessoas lá fora, até anoitecer. Seu passatempo é vigiar os vizinhos dos prédios do outro lado da rua, com um binóculo. Assim, ela rompe o tédio e se mantém segura. Não há contato pessoal. Ela consegue ficar perto do outro, mas mantendo distância. [...].
No filme, o problema da terceira idade é ter tempo demais em uma sociedade que tem tempo de menos. O que se põe em discussão é como usar o tempo. Regina encontra uma companheira de profissão, personagem de Laura Cardoso, em uma pracinha, onde outros idosos jogam dominó e carteado. A estranha diz conhecer Regina da delegacia e se apresenta como Patolina, pseudônimo necessário ao seu ofício. [...]. A idade e a profissão as aproximam, no entanto, a postura das duas diante da vida diverge. Regina tenta fingir que o tempo não passou: “Eu acho que eu ainda me vejo de um jeito que ninguém mais me vê. Eu me vejo como eu sempre fui.” (O OUTRO, 2004). Mais do que solidão, a fala do personagem revela certa frustração, por não ser compreendida pelos outros. A visão de Patolina é diferente: “Pois eu só me vejo velha.” (O OUTRO, 2004), mas não deixa de ser negativa. Ela aceita a velhice, mas é justamente essa consciência que a faz amarga. Apesar de Regina estar na pracinha, que é uma espécie do ponto de encontro de idosos, ela não faz nada. Apenas está lá. Já Patolina começa a tricotar, ao que Regina reage, dizendo: “Ah, Deus! Por que essa velharada toda não vai pra casa cuidar da vida?” (O OUTRO, 2004). Ela faz o que sugere e vai para a casa, mas, em vez de cuidar de sua própria vida, trata de bisbilhotar a vida alheia. Nesse momento, o silêncio, dentro do apartamento, é absoluto, até que ela pega o convite para a festa de aniversário do neto e rasga, dizendo para ela mesma: “Eu não tenho tempo vago.” (O OUTRO, 2004). [...].
 
 
 

No plano afetivo, Regina encara Camargo como uma ameaça, afinal, ela pensa que ele assassinou a esposa. Mesmo assim, começa um envolvimento com ele. A intimidade vai se estabelecendo aos poucos, mas ela nunca deixa de tratá-lo como suspeito. Quando ganha bombons, temendo que estejam envenenados, ela espera que ele os coma primeiro. Na casa dele, peixes e plantas mortas no aquário aumentam a desconfiança. [...]. A falta de privacidade e a liberdade vigiada excedem os limites do filme. Marcos Bernstein leva para a tela uma problemática comum do cotidiano contemporâneo e, através dos personagens, convida o espectador a pensar sobre a função das facilidades (ou dificuldades?) da vida moderna. Coerente com a sintonia entre o filme e a realidade, o final não poderia ser outro. Camargo aceita perdoar Regina, depois de receber dela um binóculo de presente. Esse modo “ausente” e artificial de se relacionar é mero reflexo da era global.


2 – Regina e seu binóculo, na capa do DVD O outro lado da rua
Imagem disponível em: http://volverumfilme.blogspot.com.br/2010/08/o-outro-lado-da-rua-2004.html

Com o apagamento das fronteiras, motivado, principalmente, pelo convívio virtual, é cada vez mais frequente a “separação entre espaço e lugar”. Surpreendente é o fato de a eliminação das fronteiras acabar estabelecendo uma divisão como essa. Stuart Hall, referindo-se ao que Harvey chamou de “destruição do espaço através do tempo”, explica que a diferença é marcada, porque “os lugares permanecem fixos […]. Entretanto, o espaço pode ser ‘cruzado’ num piscar de olhos — por avião a jato, por fax ou por satélite”. (HALL, 2001, pp. 72-3). Sendo assim, Regina e Camargo terminam juntos, mas separados, penetrando na intimidade do outro, sem deixar o aconchego e a segurança de seu lar, a uma distância segura do outro, que é amável, mas, ao mesmo tempo, ameaçador. No impessoal mundo contemporâneo, as relações se estabelecem por e-mail, por celular e, no caso dos personagens do filme, pelo olhar curioso e apaixonado através do binóculo e do vidro da janela. Novamente, a vitória do individualismo. 

 

(Parte do artigo intitulado A violência urbana no cinema brasileiro contemporâneo, escrito pela Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs e publicado na revista Todas as musas, ano 4, n. 2, jan.-jun. 2013.)

 



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