Profa.
Dra. Verônica Daniel Kobs*
Nos
dias de hoje, em que predomina a cultura cyber,
a literatura e os demais tipos de arte propiciam outro ritmo, mais específico e
contemplativo, e que se opõe à rapidez e à superficialidade inerentes às redes
sociais. Mais que isso. De acordo com Nelly Novaes Coelho, a literatura serve
de “antídoto à robotização” (COELHO, 2007, p. 3), porque é “instrumento de
‘formação das mentes’ e de conhecimento de mundo, da vida” (COELHO, 2007, p.
4). O poder desse antídoto é reforçado, quando a arte permite que o
leitor/espectador vá muito além da representação da realidade pela ficção,
geralmente circunscrita aos limites da lógica do mundo real. Foi assim,
combinando a arte da narrativa televisiva ao fantástico, ao maravilhoso e ao
realismo maravilhoso, que a nova versão de Saramandaia
atendeu ao novo perfil do público e da sociedade contemporâneos.
A obra, escrita por Dias Gomes, já tinha
encantado o público brasileiro, em 1976, no formato de telenovela. O enredo e
os personagens entraram para a história da televisão e permaneceram por muito
tempo na lembrança dos telespectadores. De junho a setembro de 2013, Saramandaia foi novamente exibida, agora
em formato de minissérie. Ricardo Linhares foi o responsável por reescrever a
história e resgatar a magia de Bole-Bole e de seus divertidos moradores. Como
ocorre em qualquer adaptação, alguns personagens foram cortados (a exemplo de
Tristão do Sal, que soltava fogo pela boca, na primeira versão) e acréscimos
foram feitos (nesse aspecto, a linguagem, com seus neologismos esquisitos, mas
engraçados, foi privilegiada: “bastantemente”, “mutretice”, “calunismo”,
“avistamento”, “diferencice”, “pra trasmente”, etc.). Porém, a maioria dos
personagens foi resgatada, afinal, para tratar do exotismo, da diferença e para
neutralizar o excesso de racionalismo, lógica e seriedade de nossa época, nada
melhor que o acúmulo de tipos verdadeiramente surpreendentes: João Gibão tinha
asas e podia adivinhar o futuro; a fogosa Marcina literalmente queimava de
tanto prazer; Belisário era apenas uma cabeça que tinha sido separada de seu
corpo, durante um combate; Dona Redonda comia sem parar e acabou explodindo;
Professor Aristóbulo era professor e funcionário público de dia e lobisomem nas
noites de quinta-feira; Dona Candinha passava o dia a se entreter com suas galinhas
invisíveis; Zico Rosado soltava formigas pelo nariz; Doutor Cazuza, o
farmacêutico, botava o coração pela boca sempre que ficava nervoso; as lágrimas
de Estela tinham o poder de ressuscitar os mortos; e Tibério, o patriarca da
família Vilar, vivia sentado em sua cadeira, onde criou raízes e começou a se
transformar em árvore.
Aristóbulo: professor e lobisomem
A
metamorfose de Dona Redonda: Ela aumentou de tamanho de tanto comer, explodiu
formando uma nuvem multicolorida e, depois que seu marido plantou, na praça, um
de seus dedos, transformou-se em uma gigantesca e malcheirosa flor.
Durante uma tempestade elétrica, Dona Pupu recebeu a
visita do corpo de Belisário, que recolocou sua cabeça e a tirou para dançar,
como nos velhos tempos.
Foi
nesse clima inusitado que Saramandaia
propôs um mundo novo, onde o impossível se fazia possível, superando qualquer
obstáculo imposto pela lógica e pelas leis inflexíveis que regem a realidade,
já que: “O elemento ‘espetaculoso’ é essencial à narração fantástica” (CALVINO,
2004, p. 6). De fato, o fantástico fez parte de Saramandaia, mas apenas no primeiro momento, quando, em meio à vida
pacata de Bole-Bole, o estranho se instalou e deu início a um processo de
alternância entre razão e desrazão, provocando a “relativização das fronteiras
entre sanidade e loucura” (CARNEIRO, 2006, p. 10). As ideias de Ítalo Calvino e
de Flávio Carneiro vão ao encontro do que Todorov menciona, no livro Introdução à literatura fantástica: “O
fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as
leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV,
1982, p. 15-16). Entretanto, o fantástico tem uma vida breve e não é o que
prevalece, na narrativa: “(...) o fantástico não dura mais que o tempo de uma
vacilação: vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o
que percebem provém ou não da ‘realidade’, tal como existe para a opinião
corrente” (TODOROV, 1982, p. 24).
Em
Saramandaia, o fantástico restringia-se
ao tempo das descobertas, quando os personagens e também os telespectadores se
surpreendiam com o fato de espíritos aparecerem para os vivos, de nevar de
repente na cidade, de um unicórnio aparecer em um parque abandonado ou de um
casal selar seu enlace com um beijo, transformando-se em uma imensa árvore para
todo o sempre. Entretanto, depois que terminava o choque da descoberta, vinha a
aceitação. Inclusive, muitos personagens não se cansavam de dizer que em
Bole-Bole tudo era possível. Nesse
instante, dava-se a passagem do fantástico para o maravilhoso. Na narrativa, os
personagens, depois de feita a descobertice, esqueciam a surpresa e voltavam à
vida normal. Dessa forma, sinuosamente, o enredo frequentemente transitavava
“do verossímil ao inverossímil sem interrupção, sem questionamento” e todos
eram finalmente “integrados num universo de ficção total onde o verossímil se
assimila ao inverossímil numa completa coerência narrativa, criando o que se
poderia chamar de uma verossimilhança
interna” (RODRIGUES, 1988, p. 12-13).
Essa
diferença e a transferência do fantástico para o maravilhoso esclarecem que, no
maravilhoso, ao contrário do que muitos afirmam, é possível existir um universo
pretensamente real, assim como também é possível que o estranhamento apareça
gradativamente, na história. O limite entre esses dois conceitos é muito tênue e
o predomínio de um ou de outro depende do posicionamento dos personagens diante
do fato sobrenatural e extraordinário: “Um segundo nível de maravilhoso não tão
radical permite que os seres humanos comuns convivam num cotidiano
aparentemente verossímil com seres sobrenaturais, com fantasmas ou almas etc.
Na medida em que esses seres não são questionados dentro do universo narrativo,
também o leitor os aceita, porque aceita a ficção e seus pressupostos”
(RODRIGUES, 1988, p. 56). Bole-Bole, que depois passou a se chamar
“Saramandaia”, era exatamente assim. O professor Aristóbulo casou-se com
Risoleta, João Gibão revelou suas asas para todos, no dia de seu casamento,
quando voou e conseguiu voltar no tempo, para salvar sua noiva da morte, e Dona
Pupu reencontrava o corpo de Belisário a cada nova tempestade elétrica,
prevista com acerto por seu Encolheu, que adivinhava chuvas e tempestades,
dependendo das dores que sentia pelo corpo.
Nesse
mundo de imaginação e “realidade” ainda é possível falar de outro conceito: o
“realismo maravilhoso”, porque não exclui “os realia (real, no baixo-latim); entretanto, os mirabilia (maravilha) ali se instauram” (RODRIGUES, 1988, p. 59).
Essas diferencices de Saramandaia (seja
dos conceitos teórico-literários, seja do exotismo dos personagens)
desempenharam pelo menos duas funções muito importantes para a sociedade
contemporânea. Elas permitiram a “ruptura no sistema de regras
preestabelecidas” (TODOROV, 1982, p. 86) e assumiram as diferenças de cor, raça
e sexo, opondo-se a qualquer tipo de preconceito. Além disso, elas
possibilitaram que o entretenimento atingisse plenamente seu principal
objetivo: o de alienação (bendita alienação essa!), que levou os espectadores
ao mundo dos sonhos e das (im)possibilidades, em que o tempo se dilata e os problemas
do dia a dia desaparecem. Antídoto mais que perfeito para neutralizar os
efeitos da rotina tecnológica e estressante dos tempos modernosos...
Bibliografia:
CALVINO,
I. Introdução. In: CALVINO, I. (Org.). Contos
fantásticos do século XIX. O
fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 3-9.
CARNEIRO,
F. Viagem pelo fantástico. In: COSTA, Flávio Moreira da (Org.). Os melhores contos fantásticos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 9-16.
COELHO,
N. N. Literatura: um olhar aberto
para o mundo. Disponível em:
<http://www.collconsultoria.com/artigo7.htm>. Acesso em: 02 jun. 2007.
RODRIGUES,
S. C. O fantástico. São Paulo: Ática,
1988.
‘Saramandaia’
tem vocabulário próprio. Disponível em:
<http://www.diariosp.com.br/noticia/detalhe/55794/%91Saramandaia%92+tem+vocabulario+proprio>.
Acesso em: 20 set. 2013.
TODOROV, T. Introdução à
literatura fantástica.
São Paulo: Perspectiva: 1982.
Créditos
das fotos:
<http://novelafashionweek.com.br/site/veja-como-maquiador-de-meryl-streep-em-a-dama-de-ferro-participou-de-saramandaia/>.
<http://rd1.ig.com.br/blogueiros/curto-circuito/em-novo-dia-jose-do-egito-fracassa-na-audiencia/184642>
<http://www.alinegraziela.com/gibao-vai-voar-apos-primeira-noite-de-amor-com-marcina/>.
<http://extra.globo.com/tv-e-lazer/vera-holtz-esta-pronta-para-explodir-em-saramandaia-diz-eu-mereco-um-descanso-9766129.html>.
<http://zamenza.blogspot.com.br/2013/09/dona-redonda-explode-e-vera-holtz.html>.
<http://www.rondoniavip.com.br/noticia/dona-redonda-explodindo-fotos>.
<http://tvg.globo.com/novelas/saramandaia/Vem-por-ai/noticia/2013/09/ultimos-capitulos-apos-raio-cair-em-cima-de-flor-misteriosa-ela-fica-imensa.html>.
<batalhadoibope.com>.
<http://tvg.globo.com/novelas/saramandaia/Vem-por-ai/noticia/2013/09/ultimos-capitulos-no-meio-da-tempestade-eletrica-corpo-de-belisario-ressurge.html>.
* Verônica
Daniel Kobs é professora e coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE-PR.
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