Profa. Anna Stegh Camati
Apesar de Shakespeare apresentar suas peças em
um palco nu, desprovido de cenários pintados ou construídos arquiteonicamente,
encontramos indícios, em seus textos, de seu conhecimento e admiração pela arte
pictórica. Diversos críticos shakespearianos argumentam que a imaginação
pictural do bardo atesta sua familiaridade com a pintura renascentista e sua
inclinação de inspirar-se nas artes plásticas para desenvolver temas e motivos
em seus poemas e peças.
Em Shakespeare
in Pictorial Art (2012), Malcolm Charles Salaman analisa diversas
descrições picturais em poemas narrativos e textos dramáticos do bardo, dentre
elas uma cena da guerra de Tróia, em O
estupro de Lucrécia (1594), e referências explícitas a uma série de quadros
que retratam cenas de sedução e erotismo no prólogo de A megera domada (1593-1594). Ambos os exemplos são ecfrases
shakespearianas de acordo com a definição ampliada de Claus Clüver (1997: 26) que
será abordada no aporte teórico.
Salaman (2012: 1-2) ressalta não ser possível
saber se, nessas passagens, Shakespeare está descrevendo cenas de quadros de
pintores famosos vistos por ele ou se suas ideias foram geradas por ilustrações
em livros, reproduções de quadros, gravuras ou tapeçarias em que aparecem
motivos semelhantes ou, então, apenas dando vazão a sua imaginação prodigiosa
para ilustrar incidentes da mitologia clássica que ele tão bem conhecia e
verbalizava por meio de sua arte poética. O crítico acrescenta, ainda, que
Shakespeare pode ter visto um grande número de pinturas famosas em suas viagens
pelo continente quando, supostamente, visitou Veneza e Florença e outras cidades
italianas.
Neste ensaio, com o intuito de meditar sobre a
plurissignificação do texto Sonho de uma
noite de verão (1595-1596), pretende-se examinar os engajamentos de
Shakespeare com a pictoralidade, principalmente com a “poesia visual” de
mestres renascentistas italianos. As hipóteses, análises e investigações serão
respaldadas por meio de escritos sobre texto/imagem de Claus Clüver, Liliane
Louvel, Tamar Yacobi e outros que, embasados em considerações críticas
pós-estruturalistas, superam certos impasses de classificação rígida criados
pelos seus antecessores estruturalistas e semioticistas.
Diálogos intermidiáticos entre
Shakespeare e os mestres renascentistas italianos
A poesia e a pintura, duas artes autônomas com
seus próprios meios de expressão, porém com recursos de construtividade em
comum, intensificaram suas relações na Renascença. A poesia lírica e a produção
dramática da época apresentam traços pictóricos, e a pintura, por sua vez, tem
características narrativas, promovendo a interação dessas duas tradições. No
contexto renascentista, esta afinidade entre as artes plásticas e a literatura
teve suas raízes no interesse comum pelas narrativas mitológicas da obra Metamorfoses (c. 1 d.C.), de Ovídio (43 a.C. – c.17 d.C.).
Nas Metamorfoses,
os relatos míticos são descritos em detalhes vívidos e fixados em uma poética
expressiva, de modo tal que os grandes mestres das artes visuais, no auge de
suas maturidades criativas, retomaram as narrativas de Ovídio como fonte de
inspiração e modelo para pintar inúmeras telas, realizando um verdadeiro
exercício de transposição intersemiótica ao interpretar signos verbais utilizando
signos pictóricos. De acordo com Claus Clüver, trata-se de quadros que
emprestam ideias, temas e motivos de textos literários e, portanto, exigem
conhecimento prévio do receptor:
Como inúmeras obras bi- ou
tri-dimensionais que são versões de uma matéria (Stoff) literária ao invés de versões de uma passagem específica,
eles exigem que o leitor esteja familiarizado com o modelo literário; caso contrário,
seu conteúdo representacional permanecerá completamente inacessível. (Clüver
2006: 142-143)
Por outro lado, temas e
motivos pictóricos eram utilizados por poetas e dramaturgos renascentistas. Como explicita Liliane Louvel, o empréstimo
de motivos, códigos e convenções das artes plásticas para fins estruturais,
temáticos e estéticos em textos literários (poesia, ficção, drama, etc.) é uma
prática recorrente que constitui importante impulso gerador para o
desenvolvimento de ideias, caracterização de personagens, descrição da
ambientação, configuração da narrativa, dentre outros (Louvel 2006: 197).
A concentração de imagens nos
textos de Shakespeare flagra a sua tendência de transpor elementos da pintura
para a literatura. Sua poesia lírica e dramática dialoga não somente com os
versos de Ovídio, mas também com a “poesia visual” de mestres renascentistas
italianos. Em Sonho de uma noite de verão (1595-1596),
além das inúmeras fontes literárias, Shakespeare apropria-se de imagens
simbólicas e ideias filosóficas do quadro A
primavera (c. 1482), de Sandro Botticelli (1445-1510), e de inovações, que
se afastam da narrativa ovidiana, introduzidas por Ticiano Veccelio (1488-1576)
em sua pintura Vênus e Adonis (1553-1554).
Como veremos adiante, os empréstimos da pintura assumem funções
estético-temáticas e se tornam o impulso gerador da criação dramática do bardo
em suas complexas construções intermidiáticas. Não se trata de ecfrase no
sentido restrito, mas antes da ativação da imaginação a partir da contemplação
de representações picturais que lhe serviam de gatilho para desencadear o fluxo
verbal, ou seja, a imagem torna-se o ponto de partida do processo criativo.
Transposição intersemiótica de ideias filosóficas, temas e motivos da
pintura A primavera (c. 1482), de
Botticelli
As novas ideias em
efervescência na Itália renascentista, principalmente as doutrinas filosóficas
de Platão (427 a.C – 347 a.C.) retomadas por estudiosos neo-platônicos do grupo
de Lourenço de Médici (1449-1492) em Florença, como Marsilio Ficino
(1433-1499), Angelo Poliziano (1454-1494) e Pico della Mirandola (1463-1494),
foram difundidas na Inglaterra elisabetana por nobres liderados por Henry
Wriothesley (1573-1624), conde de Southampton. Acredita-se que Shakespeare era
assíduo ouvinte das atividades do grupo do conde, visto que dedicou a ele os
poemas narrativos Vênus e Adonis e O estupro de Lucrécia, além de imortalizar
o nobre como o “belo jovem” nos sonetos. Segundo Jan Kott, O banquete de Platão “era uma das obras favoritas dos
neo-platônicos elisabetanos. Como seguidores das doutrinas florentinas, o neo-platonismo
praticado pelo círculo de Southampton apresentava uma linha notadamente
epicurista” (Kott 1994: 180, minha tradução).
Esse texto foi escrito em homenagem ao
aniversário dos 450 anos do nascimento de William Shakespeare (1564-1616).
A versão completa do artigo foi publicada na
revista Terra Roxa, v. 25, p. 06-17, nov. 2013. Disponível em:
http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol25/TR25a.pdf
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