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terça-feira, 1 de abril de 2014

A imaginação pictural de Shakespeare em Sonho de uma noite de verão


Profa. Anna Stegh Camati

 

Apesar de Shakespeare apresentar suas peças em um palco nu, desprovido de cenários pintados ou construídos arquiteonicamente, encontramos indícios, em seus textos, de seu conhecimento e admiração pela arte pictórica. Diversos críticos shakespearianos argumentam que a imaginação pictural do bardo atesta sua familiaridade com a pintura renascentista e sua inclinação de inspirar-se nas artes plásticas para desenvolver temas e motivos em seus poemas e peças.

Em Shakespeare in Pictorial Art (2012), Malcolm Charles Salaman analisa diversas descrições picturais em poemas narrativos e textos dramáticos do bardo, dentre elas uma cena da guerra de Tróia, em O estupro de Lucrécia (1594), e referências explícitas a uma série de quadros que retratam cenas de sedução e erotismo no prólogo de A megera domada (1593-1594). Ambos os exemplos são ecfrases shakespearianas de acordo com a definição ampliada de Claus Clüver (1997: 26) que será abordada no aporte teórico.

Salaman (2012: 1-2) ressalta não ser possível saber se, nessas passagens, Shakespeare está descrevendo cenas de quadros de pintores famosos vistos por ele ou se suas ideias foram geradas por ilustrações em livros, reproduções de quadros, gravuras ou tapeçarias em que aparecem motivos semelhantes ou, então, apenas dando vazão a sua imaginação prodigiosa para ilustrar incidentes da mitologia clássica que ele tão bem conhecia e verbalizava por meio de sua arte poética. O crítico acrescenta, ainda, que Shakespeare pode ter visto um grande número de pinturas famosas em suas viagens pelo continente quando, supostamente, visitou Veneza e Florença e outras cidades italianas.

Neste ensaio, com o intuito de meditar sobre a plurissignificação do texto Sonho de uma noite de verão (1595-1596), pretende-se examinar os engajamentos de Shakespeare com a pictoralidade, principalmente com a “poesia visual” de mestres renascentistas italianos. As hipóteses, análises e investigações serão respaldadas por meio de escritos sobre texto/imagem de Claus Clüver, Liliane Louvel, Tamar Yacobi e outros que, embasados em considerações críticas pós-estruturalistas, superam certos impasses de classificação rígida criados pelos seus antecessores estruturalistas e semioticistas.

 

Diálogos intermidiáticos entre Shakespeare e os mestres renascentistas italianos

 

A poesia e a pintura, duas artes autônomas com seus próprios meios de expressão, porém com recursos de construtividade em comum, intensificaram suas relações na Renascença. A poesia lírica e a produção dramática da época apresentam traços pictóricos, e a pintura, por sua vez, tem características narrativas, promovendo a interação dessas duas tradições. No contexto renascentista, esta afinidade entre as artes plásticas e a literatura teve suas raízes no interesse comum pelas narrativas mitológicas da obra Metamorfoses (c. 1 d.C.), de Ovídio (43 a.C. – c.17 d.C.).

Nas Metamorfoses, os relatos míticos são descritos em detalhes vívidos e fixados em uma poética expressiva, de modo tal que os grandes mestres das artes visuais, no auge de suas maturidades criativas, retomaram as narrativas de Ovídio como fonte de inspiração e modelo para pintar inúmeras telas, realizando um verdadeiro exercício de transposição intersemiótica ao interpretar signos verbais utilizando signos pictóricos. De acordo com Claus Clüver, trata-se de quadros que emprestam ideias, temas e motivos de textos literários e, portanto, exigem conhecimento prévio do receptor:

 

Como inúmeras obras bi- ou tri-dimensionais que são versões de uma matéria (Stoff) literária ao invés de versões de uma passagem específica, eles exigem que o leitor esteja familiarizado com o modelo literário; caso contrário, seu conteúdo representacional permanecerá completamente inacessível. (Clüver 2006: 142-143)

 

            Por outro lado, temas e motivos pictóricos eram utilizados por poetas e dramaturgos renascentistas. Como explicita Liliane Louvel, o empréstimo de motivos, códigos e convenções das artes plásticas para fins estruturais, temáticos e estéticos em textos literários (poesia, ficção, drama, etc.) é uma prática recorrente que constitui importante impulso gerador para o desenvolvimento de ideias, caracterização de personagens, descrição da ambientação, configuração da narrativa, dentre outros (Louvel 2006: 197).

A concentração de imagens nos textos de Shakespeare flagra a sua tendência de transpor elementos da pintura para a literatura. Sua poesia lírica e dramática dialoga não somente com os versos de Ovídio, mas também com a “poesia visual” de mestres renascentistas italianos. Em Sonho de uma noite de verão (1595-1596), além das inúmeras fontes literárias, Shakespeare apropria-se de imagens simbólicas e ideias filosóficas do quadro A primavera (c. 1482), de Sandro Botticelli (1445-1510), e de inovações, que se afastam da narrativa ovidiana, introduzidas por Ticiano Veccelio (1488-1576) em sua pintura Vênus e Adonis (1553-1554). Como veremos adiante, os empréstimos da pintura assumem funções estético-temáticas e se tornam o impulso gerador da criação dramática do bardo em suas complexas construções intermidiáticas. Não se trata de ecfrase no sentido restrito, mas antes da ativação da imaginação a partir da contemplação de representações picturais que lhe serviam de gatilho para desencadear o fluxo verbal, ou seja, a imagem torna-se o ponto de partida do processo criativo.

 

Transposição intersemiótica de ideias filosóficas, temas e motivos da pintura A primavera (c. 1482), de Botticelli

As novas ideias em efervescência na Itália renascentista, principalmente as doutrinas filosóficas de Platão (427 a.C – 347 a.C.) retomadas por estudiosos neo-platônicos do grupo de Lourenço de Médici (1449-1492) em Florença, como Marsilio Ficino (1433-1499), Angelo Poliziano (1454-1494) e Pico della Mirandola (1463-1494), foram difundidas na Inglaterra elisabetana por nobres liderados por Henry Wriothesley (1573-1624), conde de Southampton. Acredita-se que Shakespeare era assíduo ouvinte das atividades do grupo do conde, visto que dedicou a ele os poemas narrativos Vênus e Adonis e O estupro de Lucrécia, além de imortalizar o nobre como o “belo jovem” nos sonetos. Segundo Jan Kott, O banquete de Platão “era uma das obras favoritas dos neo-platônicos elisabetanos. Como seguidores das doutrinas florentinas, o neo-platonismo praticado pelo círculo de Southampton apresentava uma linha notadamente epicurista” (Kott 1994: 180, minha tradução).

 

Esse texto foi escrito em homenagem ao aniversário dos 450 anos do nascimento de William Shakespeare (1564-1616).

A versão completa do artigo foi publicada na revista Terra Roxa, v. 25, p. 06-17, nov. 2013. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol25/TR25a.pdf

 

 

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