O ESPETÁCULO DOS MORTOS-VIVOS
Verônica
Daniel Kobs*
A Zombie Walk já é uma tradição em Curitiba. No domingo de Carnaval,
várias pessoas se reúnem para a caminhada que é uma verdadeira celebração da
estética do macabro. Grupos de amigos, famílias inteiras, pais com filhos
pequenos chegam para a festa simulando um olho roxo, um corte profundo na
cabeça, sangramentos causados por golpes de faca, feridas, ossos expostos,
peles se desgrudando, cortes no pescoço e nos pulsos... A “brincadeira” é
inusitada, claro, mas passa a exigir mais atenção quando essa representação da
morte em vida torna-se uma constante na sociedade. Não estamos falando apenas
de zumbis. Vampiros também contam, afinal, eles saem de seus túmulos à noite
para sugar o sangue dos vivos. Por isso eles são como os zumbis, o que torna o
panorama atual ainda mais instigante.
É mesmo impossível não
relacionar a marcha dos zumbis à invasão macabra provocada pela estética New Weird. Começamos a lista citando o
perfil lânguido e romântico do vampiro da saga Crepúsculo. Aliás, no cinema, até Abraham Lincoln transformou-se em
caçador de vampiros. Na literatura, lembramos os livros que fazem releituras
“mórbidas” (no bom sentido) de verdadeiros clássicos: A escrava Isaura e o vampiro, de Jovane Nunes; Memórias desmortas de Brás Cubas, de Pedro Vieira; e Orgulho e preconceito e zumbis, de Seth
Grahame-Smith. Na TV, o destaque vai para as séries The walking dead (que, no Brasil, já
está na quarta temporada) e True blood. Na moda, as caveiras foram as primeiras a receberem
destaque: estampas reluzentes em camisetas, anéis, brincos, lenços... Mas é só
passear por alguns sites de moda para ver outras surpresas, como sapatilhas inspiradas
em zumbis ou estampas que imitam
cortes, cicatrizes e hemorragias. Inclusive, este ano, na Semana de Moda de
Nova Iorque, a grife de Marc Jacobs levou zumbis para a passarela, para encerrar
o desfile.
Sapatilhas
da marca Sugoi
Imagem
disponível em: http://www.criadesignblog.com/tag/halloween
Até no Carnaval de Curitiba os zumbis foram campeões. A escola Mocidade
Azul foi a vencedora, depois de levar para a avenida bruxas, mortos-vivos e
fantasmas. Em matéria intitulada Mocidade “aterrorizou” e é campeã do carnaval
de Curitiba, Amanda Audi, Diego
Antonelli e Diego Ribeiro citam a letra do samba-enredo que embalou o desfile
da escola: “Bruxa ao invés de princesa /
Fantasma ou bicho / Posso ser o que quiser / Zumbi, vampiro ou dragão / (...) Eu
vou botar fogo no mato / Atirar o pau no gato / Torcer pelo lobo mau / Pichar
seu muro / Deixar tudo no escuro / Lutar por meu ideal / Exorcizando a tristeza
/ Pois em tudo há beleza / De cara feia eu vou fazer bonito / Irreverente é minha
natureza / (...) Lá vem meu povo brincando de ser malvado / Num delírio sem
igual / Veja o lado bom do mau / É a Mocidade infernizando o carnaval” (AUDI;
ANTONELLI; RIBEIRO, 2014).
Para terminar a lista, nada melhor do que mencionar como a
estética do macabro hoje está influenciando também as crianças. Refiro-me ao
fenômeno Monster High. As bonecas têm
um novo padrão. São monstras, embora também sejam inteligentes, descoladas e
sedutoras. Evidente que obedecendo a um novo paradigma, o mercado lança novos
tipos de brinquedos e também influencia o comportamento das meninas, que hoje
têm de ter boa dose de humor negro para colocar a boneca para dormir em um
caixão, para vesti-la de preto ou de roxo e para ser fã de personagens com
perfis tão terríveis. Por exemplo, uma das garotas Monster High, Elissabat (cujo nome, aliás, já denuncia seu lado
morcego), tem predileção por comer “laranjas sangrentas” (MONSTER HIGH, 2014).
Garotas Monster High
Imagem disponível em: http://jogos.meusjogosdemeninas.uol.com.br/_arquivos/jogosonline/imgs/vestir-todas-as-monster-high_5674c5981c230dd7eea6179e30594d27.jpg
Certo, mas essa lista foi apenas para comprovar que os
zumbis são criaturas extremamente contemporâneas. Resta-nos, agora, formular
algumas hipóteses para tentar explicar essa constatação. A primeira delas (e
talvez também a mais óbvia) diz respeito ao Carnaval. Não é simples coincidência
o fato de a marcha dos zumbis ser realizada todos os anos, em Curitiba, justamente
nesse período. O próprio termo
“carnavalização” nos dá uma dica importante, pois sugere inversão e subversão
da ordem. Além do mais, a simples ideia de vestir uma fantasia serve de recurso
para essa transformação total, em que os vivos tentam parecer mortos e uma
festa da alegria vira palco de cenas trágicas e sangrentas. Outra hipótese é
que o evento serve como uma forma segura de lidar com nossos medos. Em uma
sociedade cada vez mais violenta e insegura, vivemos tentando evitar todo tipo de
perigo. Podemos, então, pensar que nos aproximando do que tememos podemos
tentar lidar melhor com a situação. Aliás, esse antagonismo também combina com
o Carnaval e com o fato de sermos brasileiros (porque, no mundo todo, somos
conhecidos como o povo que ri e faz piada dos próprios problemas).
Pensando bem, a compreensão do fenômeno Zombie Walk pode estar até mesmo no tabu da morte e da vida após a
morte. Os zumbis, todos sabem, são mortos-vivos e essa característica torna
possível que alguém experimente golpes cruéis, seja dado como morto, mas
continue bem vivo, ainda que se arrastando e balbuciando coisas que os outros
não entendem. Experimentar a violência, a morte e sair “ileso” é tentar forjar
a descoberta de um dos grandes mistérios do mundo: Há, afinal, vida após a
morte? Alguns podem até pensar: “E tem graça brincar com uma coisa dessas?”
Justamente. Achar graça na morte, nas cenas bizarras e violentas de crimes
hediondos, ou nas ataduras e maquiagens de efeito fake e grotesco, de
zumbis também falsos, é uma necessidade contemporânea. É preciso esquecer o
peso das coisas: da realidade, do medo de morrer, da insegurança, do horror que
os telejornais mostram todos os dias... Nesse sentido, o evento serve ao escapismo.
Nada melhor que a fantasia para tentar fugir da realidade. Conforme notícia
publicada pela Globo, em 2013, uma pesquisadora norte-americana chegou a relacionar
a marcha dos zumbis (que iniciou em Toronto, no ano de 2003) à infelicidade
social: “É uma alegoria óbvia.
Sentimos que, de certa maneira, estamos mortos” (GLOBO, 2014). No mesmo texto, é enfatizada a abrangência desse fenômeno mundial: “Desde 2012, caminhadas de zumbis já foram
documentadas em 20 países, segundo a pesquisadora. O maior dos encontros reuniu
4 mil participantes no New Jersey Zombie Walk, no Parque Asbury, em Nova
Jersey, em outubro de 2010, segundo o Guinness, o Livro dos Recordes” (GLOBO,
2014).
Desde a Antiguidade Clássica as tragédias cumprem uma função
catártica, permitindo a purgação dos pecados, a purificação da alma e o alívio
de nossos medos mais terríveis e profundos. Outro dado importante que tem de
ser levado em conta, embora não seja uma unanimidade, é o gosto pelo medo e
pelas situações de horror. Há aqueles que sentem prazer e que se divertem com
as representações grotescas da Zombie
Walk. Fãs da estética trash, essas
pessoas veem as cenas de horror como uma espécie de universo suprarreal, que
metaforiza e exagera a realidade pela forma e pela aparência. De fato, o medo é
algo relativo, assim como tantos outros conceitos abstratos, todos eles difusos
e subjetivos.
Por fim, não podemos deixar de mencionar o gosto pela vida
alheia e pelo espetáculo, característica inerente ao ser humano. Quem aí já não
parou para ver um acidente, um corpo estendido no chão, nem se interessou por
detalhes mórbidos de alguma tragédia? Isso parece ter ganhado mais força agora,
com a globalização impulsionando (de modo absolutamente paradoxal!) as
inter-relações (ainda que virtuais e artificiais) e o individualismo ao mesmo
tempo. Facebook e Big Brother ajudam a comprovar essa
tendência. Por falar em globalização e individualismo, nunca é demais retomar
as ideias de Zygmunt Bauman, para quem o global interfere negativamente no
conceito de “comunidade”, promovendo a individualidade em detrimento da
consciência de grupo. Com base na atração das pessoas pelo espetáculo, podemos
alinhavar e relacionar algumas das hipóteses mencionadas neste texto. A hipótese
da infelicidade e da morte aparente da sociedade, defendida pela estudiosa norte-americana
Sarah Lauro, é a primeira a ser retomada, pois “a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a
negação visível da vida; uma negação da
vida que se tornou
visível” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014). É também em
Debord que encontramos base para conceituar a Zombie Walk como
espetáculo, porque, segundo o autor, “onde há representação
independente, o espetáculo
reconstitui-se” (DEBORD, citado em GUEDES, 2014).
Destaques da Zombie Walk
2014 em Curitiba
Imagens disponíveis em:
http://www.gazetadopovo.com.br/midia/tn_620_600_zombie_7.jpg e
http://s2.glbimg.com/aju_pJjsWotFOafKlr6h0POj1wLOFtz-r0Ou1T4VylMHihGIzr2bD5SeiZNVqLMq/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2013/02/10/img_1005_.jpg
Portanto, parece evidente
que, assim como estamos refletindo agora sobre a razão da invasão dos zumbis (e
de tudo mais que faz parte do estilo New Weird) em nossa cultura, os
falsos zumbis, ainda que inconscientemente, refletem e analisam a atual
realidade, já que todo espetáculo “não realiza a filosofia”, mas “filosofa a realidade. É a vida
concreta de todos que se degradou em universo especulativo” (DEBORD, citado em GUEDES,
2014). Essa degradação já foi anunciada há tempos, por Bauman, também por
outros autores que escrevem sobre identidade cultural e para Guy Debord é
graças a ela que, em pleno século XXI, voltou a prevalecer nossa ancestral
fascinação pelo espetáculo: “A
origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo
moderno exprime a totalidade desta perda (...). O que une os espectadores não é
mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu
isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado” (DEBORD, citado em GUEDES,
2014). A julgar por esses apontamentos, podemos afirmar que nossa condição de
mortos-vivos e nossa atração pelo espetáculo existirão por um bom tempo ainda.
Então, a perspectiva é que a Zombie Walk continue, ano após ano, e
conquiste cada vez mais adeptos, que fingem estar mortos, por amor à vida,
“mesmo quando é assim pequena / (...) franzina;/ (...) uma vida severina” (MELO
NETO, 1994, p. 60).
Referências:
AUDI, A.; ANTONELLI, D.; RIBEIRO, D. Mocidade
“aterrorizou” e é campeã do carnaval de Curitiba. Disponível
em: http://www.jornaldelondrina.com.br/brasil/conteudo.phtml?id=1451393.
Acesso em: 19 mar. 2014.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. In: GUEDES, R.
S. A sociedade do
espetáculo. Guy Debord (1931-1994). Disponível
em: http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html.
Acesso em: 11 out. 2013.
GLOBO. Moda de zumbis é reflexo de uma sociedade infeliz,
diz pesquisadora. Disponível em:
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/03/moda-de-zumbis-e-reflexo-de-uma-sociedade-infeliz-diz-pesquisadora.html.
Acesso em: 19 mar. 2014.
MELO NETO, J. C. de.
Morte e vida severina e outros poemas
para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
MONSTER HIGH. Monster High. Disponível
em: http://www.monsterhigh.com/pt-br/index.html.
Acesso em: 19 mar. 2014.
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* Professora e Coordenadora
do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade; Professora do Curso de Graduação
em Letras da FACEL e da FAE.
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