Prof. Mail Marques Azevedo
A ementa da
disciplina Linguagens da Alteridade,
que ministro no primeiro semestre de 2014, prevê o estudo de “textos teóricos e
narrativos que trabalham questões de gênero, etnia e classe social. A busca da
identidade e a presença da alteridade. O tempo e o espaço da
identidade/alteridade. As figurações do outro”.O princípio básico dos estudos
propostosé a relação Self/Other, a
oposição “eu”/“outro” que postula a existência de um “eu” (self) subjetivo que
constrói tudo o que é alheio a ele como “outro” (other). A oposição, por vezes
colocada em termos diferentes, tais como centro/margem ou dominante/dominado,
origina-se de indagações sobre identidade no mundo da supremacia branca e
masculina, onde o olhar do “outro” define parâmetros para a experiência do ser.
Colocado diante de um mundo
que o rejeita─como diferente pelo aspecto físico e politicamente inferior─ o escritor negro, artista cuja visão transcende a
do homem comum, sente-se
compelido a reverter o status de
inferioridade social e psicológica de seu povo, mediante a afirmação da
identidade do indivíduo e do grupo. Daí a importância das narrativas autobiográficas
na literatura de minorias, para afirmação da dignidade do indivíduo, e da
reconstituição da memória histórica da coletividade, para valorização do grupo.
Toni Morrison,
detentora do Nobel de literatura em 1993, considera dever do escritor negro preencher
as lacunas entre presente e passado, com imaginação e fantasia, para ajudar a
construir a memória coletiva de seu povo. [1]
A obra não ficcional de
Morrison e a série de entrevistas, iniciada em 1981, em que discute seu
processo de criação, confirmam sua preocupação central como artista: o dever de
utilizar a arte para fortalecer o povo negro, torná-lo capaz de sobreviver a
circunstâncias difíceis no presente. Em entrevista a Taylor-Guthrie, em 1994,
Morrison afirma: “Sei que não posso mudar o futuro, mas posso mudar o passado.
É o passado, não o futuro, que é infinito. Nosso passado foi apropriado por
outrem. Eu sou uma das pessoas que devem reapropriá-lo” (1994, p. 14-15).
O processo
de re-memória.
A fim de
reapropriar o passado de seu povo, Morrison afirma que é necessário confiar não
apenas em suas próprias lembranças, mas também nas lembranças de outros – em
outras palavras, recorrer à memóriaindividuale
à memória coletiva.
Embora em termos de função biológica
a memória seja individual, por envolver a consciência do indivíduo,
antropólogos e sociólogos, com destaque para Maurice Halbwachs, insistem em que
toda memória é social. Os indivíduos lembram como membros de grupos; o fato de
pertencer a um grupo empresta validade a suas recordações.
Ao discutir seu processo de reconstrução do mundo ancestral negro,
torna-se evidente que Morrison emprega as duas categorias de memória: afirma
partir da recordação individual de uma imagem – não um símbolo, mas
simplesmente uma figura – e dos sentimentos que a acompanham, para a criação do
texto. Mas quando tenta recriar aquele mundo e imaginar a vida interior das
pessoas que o habitaram, é preciso recorrer às lembranças de todos os
componentes do grupo, cuja memória coletiva confere credibilidade e coerência
ao passado revivido.
Na questão da memória individual, é possível estabelecer paralelos com
os conceitos proustianos de memória voluntária e involuntária, no processo de
transcender o tempo e recordar experiências passadas, descrito em detalhe em Le TempsRetrouvé, último volume de À
laRechercheduTempsPerdu (Em busca do tempo perdido), que Samuel Beckett discute no ensaio intitulado Proust.
Memória voluntária é a memória uniforme da inteligência, na reprodução
daquelas impressões do passado formadas de maneira consciente e racional.
Recordar, neste caso, é comparável à ação de folhear um álbum de fotografias,
simples reproduções uniformes e apagadas que, efetivamente, nada contêm do
passado.
Por outro lado, a ação da memória
involuntária, estimulada por um som, cheiro ou qualquer outro estímulo
sensorial, é capaz de liberar na mente do indivíduo uma cadeia de associações,
que trazem de volta o passado qual corrente impetuosa que se funde com o
presente. A memória involuntária penetra na essência do ser, que é preservada
em uma parte inacessível da mente, a salvo da ação corrosiva do hábito, que
privilegia apenas o imediato e superficial.
Mas aqui, nesse “gouffreinterdità
nos sondes”, está armazenada a essência de nós mesmos, o melhor de nossos
muitos eus e suas aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor,
porque acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz da
vulgaridade, a fina essência de uma divindade reprimida cuja disfazionesussurrada afoga-se na
vociferação saudável de um apetite que abarca tudo, a pérola que pode desmentir
nossa carapaça de cola e de cal. (BECKETT, 1970, p. 31)
Exemplo de memória involuntária, o famoso episódio da madeleine mergulhada no chá, narrado por
Marcel Proust, traz à tona num ápice os sentimentos que acompanhavam as
recordações do protagonista de sua juventude e das pessoas que amava.
Morrison descreve processos similares de recordar, tanto em experiências
pessoais como nas que atribui a suas personagens. Como afirmado acima, seu
processo de criação segue o caminho recordação da imagem (figura), significado,
texto. Na criação de uma determinada cena, por exemplo, ela afirma que “vê” uma
espiga de milho verde. A figura da espiga vai e vem, envolta em um “nimbo” de
emoção: o prazer de comer milho doce quente, na companhia afetuosa de vizinhos
e parentes.
Em Amada, eventos aparentemente insignificantes da vida cotidiana
podem originar uma cadeia de lembranças cruéis, cuidadosamente reprimidas na
memória de Sethe, a protagonista. Trata-se de um exemplo de memória
involuntária:
Então alguma coisa. O barulho da água, a visão dos sapatos e meias
largados na trilha, ou Here Boy lambendo a poça perto de seus pés, e, de repente,
lá estava Sweet Home rolando, rolando diante de seus olhos, e, embora não
houvesse uma única folha naquela fazenda que não lhe desse ganas de gritar,
Sweet Home desenrolava-se diante dela numa beleza desavergonhada. (MORRISON,
1987, p. 14-15)
No dizer de
Beckett, a memória involuntária é “um mágico rebelde que escolhe seu próprio
tempo e lugar para a operação do milagre” (1976, p. 33). Por outro lado, para Morrison, memória, ou o
ato deliberado de relembrar, é uma forma de criação voluntária (willedcreation)que
descreve no ensaio “Memory, CreationandWriting”. O importante, diz ela,
é deter-se no modo como a imagem do passado surge e por que aparece nessa forma
específica, e deter-se nos sentimentos que acompanham o evento recordado. Mesmo
fragmentos reduzidos de lembranças põem em funcionamento o mecanismo de
criação, que é o processo pelo qual Morrison aglutina esses fragmentos em
partes – que ela preferemanter independentes, sem conexão. Assim, a memória
fornece tanto o germe de um tema como a estrutura não linear de seus romances,
que espelham a fragmentação característica das recordações.
Na criação da personagem-título de Sula, romance publicado em 1986,
Morrison afirma que partiu das recordações fragmentadas de uma visitante, uma
mulher que fascinou a Morrison criança: seu perfume, a cor, o alheamento, mas,
principalmente, a aura indefinível que a envolvia, resultante da atitude das
outras mulheres quando pronunciavam seu nome, “Hannah Peace”, em tom que
mesclava respeito, deslumbramento e mais alguma coisa que soara para a menina
como perdão.
O caráter
coletivo da narrativa negra é, de fato, uma tradição dos povos africanos: histórias
com muitos autores, transmitidas oralmente, que visam a uma verdade maior. Como
um modernogriot- o contador de histórias da tribo – Morrison
constrói suas histórias a partir de recordações pessoais e lembranças da
comunidade. “Essas pessoas”, diz ela ao falar de seus ancestrais, “representam
meu acesso a mim mesma; minha entrada em minha própria vida interior. É por
isso que as imagens que flutuam à sua volta – os resquícios, vestígios, por
assim dizer, que restaram no sítio arqueológico – são os primeiros a vir à tona
[…] (1998, p. 195).
A questão dos
sítios da memória é de suma importância também para Halbwachs, para quem os
espaços mentais das lembranças sempre se reportam ao espaço físico ocupado pelo
grupo: “Nossas imagens de espaços sociais, em razão de sua relativa
estabilidade, produzem em nós a ilusão de não mudar, de redescobrir o passado
no presente. Conservamos nossas recordações referindo-as ao meio material que
nos rodeia” (1982, p. 23).
De forma
semelhante, a re-apropriação de experiências passadas dos escravos negros nos
Estados Unidos, em Amada, é um
processo que Toni Morrison denominare-memória,
que envolveos atos de “des-(re)lembrar” (dis(re)membering) e “re-lembrar”
(re-membering).
As conotações antitéticas de re-memberingedis(re)memberingpõem
em destaque a tensão entre memória e esquecimento, que prova o significado
central do romance. A moldura espacial é o sítio da memória, apresentado ao
leitor na conversa de Sethe com a filha Denver, em Amada.
Algumas
coisas se vão. Passam. Outras simplesmente ficam. Eu costumava pensar que era
minha relembrança (re-memory). Você
sabe. Algumas coisas a gente esquece, outras jamais. Mas não é bem assim. Os
lugares continuam ali. Se uma casa é incendiada, ela some; mas o lugar, a
imagem dele, permanece, e não só em minha relembrança (re-memory), mas lá fora,
no mundo. O que recordo é uma imagem
flutuando fora de minha cabeça. Quero dizer, mesmo que eu não pense nela,
mesmo que eu morra, a imagem do que fiz, conheci ou vi continua lá. Bem no lugar onde tudo aconteceu. (p.
50-51) (grifos da autora)
O processo de
rememória nos romances de Morrison, portanto, enfatiza a função dos espaços
materiais, embora poucos vestígios (imagens) possam ser encontrados no “sítio
arqueológico”.
Neste
particular, Morrison afirma não confiar nas narrativas dominantes como
instrumentos na busca das raízes culturais negras. Prefere apoiar-se no que
chama de “ardis” da memória para desencadear o processo de invenção. Sua
narrativa transcende até mesmo os limites da história e do mito, entrando no
campo da contra-memóriaque, nas
palavras de George Lipsitz, “é um modo de recordar e esquecer que tem início
com o local, o imediato e o pessoal […] e a seguir se expande para construir
uma história completa.” A contra-memória é comum nas narrativas de minorias e
focaliza “experiências localizadas com a opressão, utilizando-as para colocar
em novos parâmetros e reformular o foco de narrativas dominantes que pretendem
representar experiências universais.” Se tais narrativas não oferecem respostas
à atual crise do pensamento histórico, indicam certamente outros meios de
buscar respostas (1990, p. 213).
Em Canção de Salomão, o mito do escravo que
voa de volta para a África, celebrado em canções folclóricas, inspira o
protagonista, Macon Dead, a empreender a busca pela verdadeira história de sua
família e dos afro-americanos, em épocas anteriores à sua escravização. Só
então consegue viver efetivamente no presente. Não se trata de uma rejeição da
história, mas de sua reconstituição com base nas tradições orais e na
experiência local, no tempo da contra-memória.
Desse modo o
artesanato da memória e da ficção congregam-se nos romances de Toni Morrison,
para a re-apropriação do passado de seu povo. O objetivo declarado de Morrison é
o acesso à vida interior não escrita de seu povo, que não aparece nem mesmo nas
narrativas de escravos. Sua arte pretende reconstruir a memória racial dos
afro-americanos – a que atribui valor maior que a realizações individuais. Para
atingir seu objetivo, é necessário apoiar-se na imaginação. Em consequência, o
trabalho de Morrison, para a maioria das pessoas, se enquadra no fantástico,
mítico, mágico, inverossímil. Mas como evitá-lo, pergunta-se ela, se o seu
trabalho deve transmitir uma realidade diferente daquela veiculada em
narrativas históricas aceitas oficialmente.
Se meu trabalho deve confrontar uma realidade diferente da
realidade aceita pelo Ocidente, deve centralizar e dramatizar informação
desacreditada pelo Ocidente – desacreditada não por não ser verdadeira ou útil
ou mesmo de algum valor racial, mas porque é informação normalmente descrita
como “lore” ou “boato” ou “mágica” ou“sentimento”. (MORRISON, 1984, p. 388)
Que sua
narrativa assuma características míticas ou fantásticas é irrelevante, pois a
diferença essencial não está entre fato e ficção, mas entre fato e verdade.
Morrison reconstrói o mundo de seus ancestrais, explora sua vida interior, seguindo
o caminho de imagens vívidas e arrebatadoras, que emergem de lembranças
compartilhadas não escritas, e que conduzem à revelação de uma espécie de
verdade.
A relevância das
narrativas autobiográficas na expressão da identidade individual e o mecanismo
da memória como instrumento de criação literária e resgate da memória coletiva
de um povo, observado na obra de Toni Morrison,esclarecem o motivo da inclusão
de autobiografia e memória em um programa que discute linguagens da alteridade.
[1]Excertos
do trabalho intitulado TONI MORRISON´S “SITE OF MEMORY” WHERE MEMOIR AND
FICTION EMBRACE”, publicado em inglês na Revista
da ANPOLL 22.
BECKETT, Samuel. Proust.London: Calder & Boyars, 1970.
HALBWACHS, Maurice. On
Collective Memory. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
LIPSITZ, George. Time Passages.Collective Memory and American
Popular Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.
MORRISON, Toni.
Memory, Creation, and Writing. In: Thought,vol 59, # 235 (December
1984). P. 385-390.
______. Amada.Trad. E.K. Massaro São Paulo: Círculo do
Livro, 1987.
______. The Site of
Memory. In: ZINSSER, William. Inventing the Truth.The Art and Craft of
Memoir.Boston & New York: Houghton Mifflin Co., 1998. p. 185-200.
TAYLOR-GUTHRIE,
Danille (Ed.). Conversations with Toni Morrison. Jackson: Un. Press
of Mississippi, 1994.