Profa.Anna
Stegh Camati
William Shakespeare (1564-1616) é o dramaturgo mais
encenado, imitado, parodiado, citado e adaptado de todos os tempos. Foi
transformado em ícone cultural e em objeto de idolatria global. Ao longo do ano
2014, que marca os 450 anos do seu nascimento, uma série de eventos celebram,
em âmbito global, o patrimônio literário e cultural que o bardo legou à
humanidade. No Brasil, entre as inúmeros homenagens, palestras e cursos,
destacou-se o Fórum Shakespeare, uma promoção conjunta do Centro Cultural Banco
do Brasil e do British Council, que foi realizado em quatro capitais
brasileiras, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, onde
especialistas brasileiros e britânicos discutiram e repensaram os escritos do
dramaturgo e poeta. Novas montagens de peças shakespearianas, queforam levadas
ao palco em 2014 ou estão programadas para estrear até o final do ano, também
fazem parte das comemorações. No Festival de Curitiba (final de março e início
de abril de 2014), o público teve a oportunidade de assistir a duas produções
brasileiras de Ricardo III: um
espetáculo solo, no qual o ator Gustavo Gasparani interpreta 21 das 54
personagens do drama histórico, além de acumular a função de narrador; e uma
produção cênica ligada ao projeto “39 Shakespeare”, que pretende montar todas
as obras do autor em um período de 10 anos, com previsão de apresentação de
quatro novos espetáculos até o final do ano. Diante de tantas manifestações de entusiasmo
e admiração, a pergunta mais frequente é a seguinte: Como se explicam a
crescente popularidade de Shakespeare no século XXI e a permanência de suas
obras ao longo dos séculos?
Inúmeros fatores sãoapontados para elucidar o
interesse perene da obra de Shakespeare, dentre eles a energia criativa,
exuberância verbal, imaginação privilegiada e compreensão acurada dos mistérios
e complexidades da natureza humana que caracterizam sua produção textual. Harold
Bloom, em Shakespeare:a invenção do humano(2000),
afirma que o dramaturgo inventou o conceito moderno de humanidade ao retratar comportamentos,sentimentos,
paixões e contradições de centenas de personagens, de diferentes gêneros,
etnias e classes sociais, que ilustram a condição humana como a entendemos
hoje. E, em O cânone ocidental (1995),
o crítico estadunidense coloca Shakespeare no centro da tradição literária do
Ocidente, apontando-o como matriz e inspiração da psicanálise freudiana.
Além disso, o apelo duradouro da dramaturgia de
Shakespeare, ontem e hoje, é derivado da matriz estética de suas obras que
combina elementos da alta cultura e da cultura popular. Ao mesclar aspectos do
teatro clássico greco-romano com recursos da rica tradição teatral medieval, o
dramaturgoconsegue agradar a todos os segmentos da sociedade e não apenas aos
mais letrados.
Outro argumento, utilizado por críticos e
aficionados, para explicar a sobrevida de Shakespeare na contemporaneidade, é a
universalidade de seus escritos que se adaptam à produção cultural de
diferentes períodos históricos e localidades. Jan Kott, em Shakespeare – nosso contemporâneo (2003), confere o estatuto de
mitos culturais aos textos do bardo, destacandoHamletcomo a narrativa mais arquetípica, porque tal qual uma esponja, ela imediatamente absorve a
problemática de nosso tempo.E, entre as
frases mais famosas sobre a personagem Hamlet, que se transformaram em máximas ao longo do tempo, destaca-se a
observação de William Hazlitt – “Todos nós somos Hamlet” –, que equaciona o
príncipe dinamarquês ao homem universal.
Shakespeare continua a dialogar conosco por conta deseu
uso de múltiplos pontos de vista para relativizar questões controversas. O
crítico marxista Terry Eagleton, em Marxismo
e a crítica literária (1976), argumenta que é difícil confinar a visão de
mundo de Shakespeare ao período elisabetano-jaimesco, uma vez que seus escritos
até hoje nos intrigam, provocando reflexões e questionamentos. A multiplicidade
de releituras,de cunho marxista, feminista, neo-historicista e pós-colonialista,
que abordam os textos shakespearianos a partir de óticas contemporâneas, lançam
luz sobre o homem de hoje e suas relações com o mundo. Eagleton acredita ser possivel
estabelecer um diálogo entre Shakespeare e diversos pensadores influentes, como
Sigmund Freud, Henri Bergson, Stuart Hall, Michel Foucault, Jacques Derrida e
outros.
Vale ressaltar, ainda, que as inúmeras adaptações
dos textos de Shakespeare, para o palco, o cinema, os quadrinhos e outras
mídias,também são responsáveis pela longevidade de sua obra.Linda Hutcheon, em Teoria da adaptação (2011), faz lembrar que Shakespeare era um
exímio adaptador que transferiu as histórias da tradição oral e escrita de
diversas origens e culturas para o palco, tornando-as, assim, acessíveis para o
público que frequentava os grandes teatros londrinos no final do século XVI e
início do XVII. E, sem sombra de dúvida, as adaptações e recriações dos
escritos do dramaturgo são imprescindíveis para garantir sua sobrevida: se
Shakespeare, hoje, permanece e continua atual e popular em âmbito global, isso se
deve não somente aos múltiplos fatores apontados acima, mas também, e
principalmente, aos notáveis produtos artísticos e midiáticos realizados porencenadores,
cineastas, atores e criadores dos mais diversos campos de conhecimento, que
sedimentaram um vasto tecido semiótico-cultural em torno de sua obra no
decorrerdos séculos, divulgando, ampliando e enriquecendoo seu legado.
Nesse sentido, o arquivo digital Global
Shakespeares, hospedado no Massachussets Institute of Technology (MIT), em Boston
(EUA), é um veículo de pesquisa importante, visto que reúne produções cênicas
contemporâneas, de culturas e línguas diversas, que inspiram criadores e
estudiosos do século XXI. O site Shakespeare Digital Brasil (UFPR), lançado
recentemente em Curitiba, um projeto que consiste aproximar o público
brasileiro em geral do universo shakespeariano, também constitui fonte
relevante de pesquisa.
REFERÊNCIAS
BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad. Marcos
Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
_____. Shakespeare: a invenção do humano. Trad.
José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
EAGLETON, Terry. Marxism and Literary Criticism. London: Methuen, 1976.
GLOBAL SHAKESPEARES.<http://globalshakespeares.mit.edu/brazil>
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis:
EDUFSC, 2011.
KOTT, Jan. Shakespeare, nosso contemporâneo. Trad.
Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003
SHAKESPEARE DIGITAL
BRASIL. <www.shakespearedigitalbrasil.com.br>
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