Prof. Brunilda Reichmann
Apresentado no encontro da American Academy of Psychoanalysis, Beverly Hills,
California, em maio de 1975, e publicado no Journal of the American Academy
of Psychoanalysis, no mesmo ano, o artigo “Hamlet – minha maior criação” tem sido citado como um dos exemplosmais
ousados da abordagem crítica denominada Estética da Recepção. O artigo, segundo
minha pesquisa, nunca foi traduzido para o português, mas alguns trechos
merecem ser conhecidos pelos interessados naresposta do
leitor. Seguem, portanto, alguns trechos traduzidos para o português.
Você deve imaginar, pelo título deste artigo, que fui além da
ousadia até a completa blasfêmia. Ousadia seria o layout da placa no velho
Yiddish Theater que via quando era menino. Em letras grandes “Hamlet”, em letras menores, “de William
Shakespeare”. E em letras maiores que todas, “Traduzido e Aperfeiçoado por
Moishe Schwartz”. Mas, vou além do grande Moishe Schwartz. Estou proclamando
que não apenas perfeiçoei Hamlet. Eu
criei Hamlet. E creio realmente que
Shakespeare vai arremessar, de qualquer Elíseo que agora habita, um soneto e me
partir em 14 pedaços. [...]
Mas se Shakespeare colocou certo conteúdo na peça, que conteúdo foi esse?
Se criou Hamlet, que Hamlet ele criou? Em três séculos e
três-quartos, desde que a peça foi produzida pela primeira vez, temos visto
pelo menos três versões do herói, portanto, da peça. No meu entender, os
séculos XVII e XVIII, mais próximos ao próprio Shakespeare, consideraram Hamlet
como um jovem com grandes expectativas, promessa e vivacidade, um príncipe da
Renascença. O século XIX curtiu o Hamlet de Goethe, um homem gracioso, delicado
e poético, incapaz de levar a cabo a vingança que seu pai exige. E, certamente,
em nosso próprio século [século XX] tivemos Hamlet como um exemplo do complexo
de Édipo. Não queremos dizer que cada século teve seu próprio Hamlet, o
príncipe, e Hamlet, a peça. Se
observarmos os volumes e volumes de comentários sobre a tragédia, tomaremos
consciência que, finalmente, cada pessoa tem seu próprio Hamlet. Vejo também, que o Hamlet
do qual falo hoje é diferente do Hamlet
sobre o qual escrevi, digamos, em 1964 ou 1965 ou 1961. A peça muda até para a
mesma pessoa no curso da vida. [...]
Hamlet é uma peça imensa, a mais longa de Shakespeare. Uma produção sem cortes
leva de cinco a seis horas. Para lhes contar sobre minhas reações a toda a peça
levaria semanas, mas posso lhes contar sobre minha reação às minhas cinco
favoritas, dentre as aproximadamente 39.000 linhas da peça. Elas são:
Oh, que simplório e ignóbilescravo eu sou!
[...]
O que é Hecuba para ele, ou, ele para Hecuba,
Para que chore por ela? [...]
Como todos os acontecimentos voltam-secontra
mim,
E impelem minha vingança inerte! [...]
O que essas linhas
me permitem fazer que é tão gratificante?
Para responder a esta pergunta, tenho que falar não apenas das linhas,
mas de mim. Deixe-me contar-lhes algumas coisas sobre mim mesmo, coisas, por
sua vez, que eu publiquei antes mesmo de envolver-me com a tentativa de
explicar meu prazer com essas cinco linhas de Hamlet. Tenho “um desejo apaixonado de saber sobre o cerne das
coisas, com um sentimento igualmente forte de que alguém está mais seguro com o
exterior”. O cerne de minha identidade envolve “preservar um sentido de si
mesmo e garantir a autoestima para ganhar poder sobre as relações entre as
coisas, em particular, sobrepujando-as ao saber ou vê-las do exterior ao invés
de participar realmente dos relacionamentos”. Pode-se ver como ser um crítico
de cinema e de teatro ajustou-se à minha identidade, particularmente na forma
mais particular, a moderna, da análise linguística. “Gosto de examinar a
superfície verbal de um texto, procurando principalmente por uma ‘unidade
orgânica’ no modo que todas as partes se relacionam.” [...]
Considero que minhas linhas favoritas me possibilitam criar e explorar
várias possibilidades gramaticais e semânticas dentro de um único pensamento.
Elas são, de fato, a oposição da negação. Elas sugerem e mesmo solicitam que
siga todas complexidades e possibilidades alternativas. Portanto, mesmo se as
linhas individuais de Shakespeare não me permitem encontrar a unidade sólida e
orgânica que procuro, elas me permitem assenhorear-me do cerne, como se fosse,
da sentença ao entender complexidades verbais e imagéticas. Posso permanecer
fora da sentença e, por assim dizer, explorar relações com seu interior. [...]
Resumindo, essas sentenças começam com simplicidade, movem para algo
repleto de alternativas e complexidades, e retornam à simplicidade. Este, com
certeza, é o padrão da tragédia como um todo. Ao ver o fantasma, Hamlet resolve
puramente e simplesmente acertar as coisas. Como vocês sabem, então passamos
aos três atos longos e envolventes nos quais ele faz tudo menos se vingar. Ele
não retorna à sua vingança até a cena final da peça quando aceita seu destino.
[...]
Palavras, nessa tragédia, são, para mim, certamente, e
talvez também para Hamlet e Shakespeare, um tipo de espaço potencial no qual posso criar
alternativas e possibilidades ao invés de ser confrontado com ações violentas e
indiferença familiar. Dei exemplo de cinco, mas há cerca de 4.000 linhas, cada
uma delas, de certa maneira, me permite usar palavras para desenvolver alternativas
e assim controlar meus temores profundos. Temo que pais ou figuras paternas
possam se zangar comigo – prefiro ficar zangado com eles. Temo que me ignorarão
– prefiro ignorá-los. Apesar de apreciar correr esses riscos. Quero,
finalmente, tê-los sob controle tão facilmente como se pode controlar palavras.
Tudo que é necessário é um verso ou uma frase com escansão tão regular quanto
“Para que chore por ela” ou “E impelem minha vingança inerte”.
Hamlet tem sido descrito como um “grande neurótico”.
Não tenho certeza do significado do termo. Tenho certeza, no entanto, que Hamlet permite uma grande
contratransferência. E esse é o segredo da grandiosidade dessa tragédia e,
finalmente, de todas as grandes obras de arte: elas permitem que nos tornemos
criadores.
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