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segunda-feira, 19 de maio de 2014

A TECNOLOGIA SOBRE-HUMANA DE ELA


Verônica Daniel Kobs*

 

            O filme Ela (EUA, 2013), dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquin Phoenix, analisa o sujeito contemporâneo e sua relação com a tecnologia. A partir desse tema atual e complexo, surgem outras características que representam nosso tempo, como a solidão, a carência afetiva, o individualismo e a artificialidade das relações “pessoais”. Indicado em várias categorias (roteiro, ator, trilha sonora, canção, design de produção,...), Ela concorreu, inclusive, ao Oscar de Melhor Filme. Em um quesito, porém, o filme foi unanimidade: Spike Jonze levou o Globo de Ouro de Melhor Roteiro e também o Oscar de Melhor Roteiro Original.

            Ela conta a história de Theodore, que, recém-separado, resolve aderir à tecnologia para fugir da solidão. Ele compra um sistema operacional (“OS1”), que, no computador, ganha uma voz feminina e o nome de Samantha. Dessa forma, Theodore consegue preencher a falta de uma mulher em sua vida. Samantha tem acesso a todos os arquivos de Theodore e, assim, logo se torna íntima dele. Ela pode ler e responder os e-mails dele, ajuda na seleção e organização de alguns documentos, conhece seus temas de interesse, seus hobbies e até seus projetos. Samantha pode ver, falar e ouvir. Ela conversa com Theodore, dá conselhos e manifesta suas impressões sobre os restaurantes que frequentam, as pessoas que encontram na rua e as paisagens que veem. Samantha passa a conviver com Theodore e por isso ela se “humaniza”, ao mesmo tempo em que é “humanizada” por ele. Em determinada cena, ela diz que chegou a imaginar que tinha um corpo e que andava de mãos dadas com Theodore, ao que se segue este diálogo:

 

THEODORE: “Você é mais do que eu imaginava. Tem muita coisa acontecendo com você.”

SAMANTHA: “Estou me tornando mais do que me programaram.” (ELA, 2013)

 

A tecnologia remodela a vida de Theodore, que, consequentemente, propõe um novo modelo de relação interpessoal aos seus amigos, colegas de trabalho e à sociedade em geral. Theodore leva Samantha à praia, eles saem juntos à noite, vão jantar fora, viajam juntos e até aceitam o convite de amigos para um programa de casais. Em nenhum momento Theodore esconde o fato de Samantha ser um sistema operacional, todos tratam o fato com naturalidade e ela participa das conversas com desenvoltura, demonstrando cumplicidade e felicidade em seu relacionamento com Theodore.



Cenas de Ela que mostram a convivência de Theodore e ___.
Imagens disponíveis em: <www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>



No filme, Theodore experimenta as vantagens e desvantagens de se relacionar com um sistema operacional. Não há corpo, nem presença física, mas ele tem uma companhia agradável e, o mais importante, quando ele quer. Essa “comodidade” era o que também atraiu as pessoas que se fascinaram com Aibo, um cão-robô feito pela Sony: “Aibo imita um animal de estimação com vantagens: não precisa comer, tomar banho ou urinar (embora levante a pata simulando o ato). Aibo não pede para passear, não late para as visitas e não suja a casa com pelos.” (RÉGIS, 2012, p. 119). Entre Samantha e Theodore, a liberdade e a privacidade eram garantidas pelo controle total do tempo e da presença de Samantha em sua vida, afinal eles se conectavam e desconectavam pelo acionamento das teclas on e off. No mundo real de Theodore, as impossibilidades da realidade de uma pessoa comum tornam-se possíveis. Tudo isso, claro, graças à tecnologia, ao mundo virtual e à não presença do outro. O contato e as mediações não são mais pessoais. Tudo é feito eletronicamente. Evidente que isso ajuda a explicar as dificuldades do sujeito contemporâneo em se relacionar com as pessoas sem a interface tecnológica e em gerenciar conflitos. No filme, aliás, não é apenas Theodore que tem problemas no casamento. Depois da separação dele, um casal amigo também se separa e a mulher, a exemplo de Theodore, passa a se relacionar com um sistema operacional. Mais uma vez, Ela nos leva a refletir sobre nossa condição atual, participantes de relações fluidas, escorregadias, que não se consolidam, que se artificializam com a interface tecnológica e que possibilitam o rompimento das fronteiras de tempo, espaço e de realidade.

Ao colocar em discussão as relações sociais, os contextos de ficção e realidade e o valor da tecnologia, o filme também problematiza os conceitos de “homem” e “máquina”. Vamos, então, nos deter sobre alguns pontos importantes a respeito dessa questão. Em primeiro lugar vem a constatação de que “a diferença entre homens, animais e máquinas é (...) de complexidade, não de natureza” (RÉGIS, 2012, p. 82). Entretanto, a cibernética diminuiu expressivamente essa diferença: “(...) o estatuto da máquina muda. (...). Só os seres vivos eram organizados. A cibernética revoluciona a ideia de máquina e de organização. As noções de controle, retroalimentação (...) e tratamento de informação quantificada aplicadas às máquinas (...) fazem surgir (...) máquinas organizadas. (RÉGIS, 2012, p. 109). Depois disso, e de acordo com a mesma autora, que cita Dennett, vale lembrar que a inteligência e o processo mental não precisam mais estar vinculados à consciência, nem ao sujeito (p. 93). Finalmente, a partir de 1950, é divulgado o Teste de Turing, segundo o qual “a máquina é inteligente quando não há diferença discernível entre conversar com ela ou com uma pessoa” (TURING, citado em RÉGIS, 2012, p. 113), e surge o conceito “inteligência artificial”. Isso, sem dúvida, desmistificou os limites da máquina e o modelo do humano sem-limites, inigualável e sem par. Para Descartes, a capacidade de pensar, de formular e de encadear ideias sempre foi a principal diferença entre os homens e as máquinas (Cf. RÉGIS, 2012, p. 60), premissa que se torna inválida, depois do Teste de Turing.

No filme de Spike Jonze, Samantha age como uma mulher real e, para Theodore, “não há diferença discernível entre conversar com ela ou com uma pessoa”. Por isso, ele a sente como se ela de fato existisse e mantém um relacionamento amoroso com ela. O único limite a ser transposto é a ausência de um corpo, de uma existência física. Assim como outros personagens famosos da literatura e do cinema, Samantha quer ser real e ter um corpo, uma feição humana. Ela chega até a escolher uma mulher com a qual ela gostaria de se parecer, se fosse “real”, e a convida para um encontro com Theodore. A garota aceita e passa a ser o corpo que obedece aos estímulos gerados pela conversa entre Samantha e Theodore, até que a noite termine na cama. Para Samantha, assim ela seria completa e ofereceria ao seu parceiro um relacionamento também completo e normal. Ela não se dava conta de que as sensações, durante o sexo, nunca seriam sentidas de fato por ela, pois seriam experimentadas pela outra mulher, dona do corpo a serviço da voz de Samantha. Nunca seria um relacionamento normal. A garota era uma completa estranha para Theodore. Isso sem falar da impossibilidade de unificar, com o passar do tempo, duas consciências diferentes. Samantha não seria mais apenas um sistema operacional; passaria a ser uma espécie de híbrido, com um corpo real, é verdade, mas também com consciência, voz, nome, pensamentos e convicções também reais e totalmente diferentes da voz de Samantha e dos pensamentos e das convicções que ela já começava a esboçar, apesar de ser um sistema operacional.

Esse episódio já dá uma boa amostra dos conflitos vividos pelo casal, os quais faziam Theodore sentir, cada vez mais, que Samantha e o relacionamento que eles tinham eram reais. Tudo o que opunha o mundo real ao virtual refletia-se com muita intensidade na “vida” dos dois, até que o rompimento, inevitável, acontece. Um dia, Theodore procura por Samantha e não a encontra. A cada tentativa de contato, ele recebe a mensagem de que o sistema não pode ser localizado. Ele se desespera, sai pelas ruas atrás de melhor sinal e sente como se a tivesse perdido. Por um momento parece pensar que ela poderia estar em perigo. Nas ruas, aflito, ele observa as pessoas e estão todas como ele: falando “sozinhas”, com fones e com o celular na mão. Então ele entende tudo, descobre que se apaixonou por um sistema, o qual, aliás, era um produto não exclusivo e por isso podia ser partilhado com outras pessoas (Quantos, além dele, teriam comprado o “OS1”, a mais nova tecnologia do mercado?). Samantha confessa que conversava com Theodore com mais de oito mil pessoas, simultaneamente. Ela estava, de fato, apaixonada por ele, mas, além de Theodore, declarou-se apaixonada por mais de seiscentas pessoas. Nesse momento, a traição também é reconfigurada, porque é inserida no contexto virtual e na relação entre um homem e uma máquina. Samantha tenta se justificar, dizendo que com o tempo ela se tornou outras pessoas também (ELA, 2013), mas que nada do que “vive” com os outros abala ou diminui o que ela sente por ele. Os clichês da vida real migram para o mundo virtual, que padece da mesma fluidez e da mesma frivolidade que assolam os relacionamentos com pessoas reais.

Do início ao fim, a história de Ela consegue focalizar a ambivalência da tecnologia no mundo contemporâneo, razão pela qual a aquisição de um sistema operacional simboliza o triunfo e a ruína de Theodore. Essa duplicidade é salutar e, no filme, é também sinalizada pelas cores das roupas de Theodore. Elas refletem essa polaridade e a intensidade da história vivida pelos personagens. O amarelo, considerada uma das cores mais fortes e exuberantes, é uma “cor masculina, de luz e de vida” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 40). Entretanto, se, por um lado, representa o esplendor do verão, ela também anuncia o outono, em toda a sua sobriedade, relacionando-se ao “declínio”, à “velhice” e à “morte”. Além disso, como o alaranjado, o amarelo é associado à infidelidade. Entre o amarelo e o vermelho, o alaranjado simboliza “o ponto de equilíbrio entre o espírito e a libido” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 27). Mas, pela dificuldade em se alcançar a harmonia entre esses dois aspectos, essa cor também se faz ambivalente e passa a ser associada tanto ao amor eterno quanto à infidelidade. Outra cor bastante utilizada no filme é o castanho, de conotação muito negativa, porque “faz lembrar (...) a folha morta, o outono, a tristeza. É uma degradação, uma espécie de casamento rebaixador das cores puras” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 198). Por fim, o vermelho completa o conjunto de cores matizadas que reforçam a gradação nos sentimentos de Theodore e no relacionamento dele com Samantha. O vermelho é o símbolo do poder, o que também sugere duplicidade: “(...) ação e paixão, libertação e opressão” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 946). 


Gradação de cores utilizada no filme Ela
Imagens disponíveis em: <www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>
 
No fim da história de Samantha e Theodore, a máquina triunfa, no primeiro momento, porque manipula e maquiniza o humano. Theodore trabalhava com as palavras (ele escrevia cartas para pessoas que lhe encomendavam essa tarefa; a função dele era escrever como se fosse outra pessoa, para forjar um contato desejado e esperado pelo destinatário, mas sem nenhum valor para o remetente, que simplesmente delegava essa função a outra pessoa, contratada especificamente para escrever uma carta), mas era também facilmente seduzido por elas. As palavras fizeram-no esquecer que Samantha era um apenas um sistema. Com ela ele viveu dias de intensa felicidade. Apesar da frustração causada pela ilusão de que Samantha era humana, Theodore reavalia as coisas, redesenha as fronteiras que separam o mundo real do virtual e novamente se reconfigura, ao lado da amiga, uma mulher plenamente real.
               
Referências:
 
ADORO CINEMA. Ela. Disponível em: Imagens disponíveis em:
<www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>. Acesso em: 22 abr. 2014.
CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
ELA. Direção de Spike Jonze. EUA: Annapurna Pictures; Sony Pictures, 2013. 1 dvd (126 min); son.
RÉGIS, F. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.
 
 
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* Professora e Coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade; Professora do Curso de Graduação em Letras da FACEL e da FAE.
 

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