Verônica Daniel Kobs*
O filme Ela (EUA, 2013), dirigido por Spike Jonze e estrelado por Joaquin
Phoenix, analisa o sujeito contemporâneo e sua relação com a tecnologia. A
partir desse tema atual e complexo, surgem outras características que
representam nosso tempo, como a solidão, a carência afetiva, o individualismo e
a artificialidade das relações “pessoais”. Indicado em várias categorias
(roteiro, ator, trilha sonora, canção, design de produção,...), Ela concorreu, inclusive, ao Oscar de Melhor Filme. Em um quesito,
porém, o filme foi unanimidade: Spike Jonze levou o Globo de Ouro de Melhor
Roteiro e também o Oscar de Melhor
Roteiro Original.
Ela
conta a história de Theodore, que, recém-separado, resolve aderir à tecnologia
para fugir da solidão. Ele compra um sistema operacional (“OS1”), que, no
computador, ganha uma voz feminina e o nome de Samantha. Dessa forma, Theodore
consegue preencher a falta de uma mulher em sua vida. Samantha tem acesso a
todos os arquivos de Theodore e, assim, logo se torna íntima dele. Ela pode ler
e responder os e-mails dele, ajuda na seleção e organização de alguns
documentos, conhece seus temas de interesse, seus hobbies e até seus projetos. Samantha pode ver, falar e ouvir. Ela
conversa com Theodore, dá conselhos e manifesta suas impressões sobre os
restaurantes que frequentam, as pessoas que encontram na rua e as paisagens que
veem. Samantha passa a conviver com Theodore e por isso ela se “humaniza”, ao
mesmo tempo em que é “humanizada” por ele. Em determinada cena, ela diz que chegou
a imaginar que tinha um corpo e que andava de mãos dadas com Theodore, ao que
se segue este diálogo:
THEODORE: “Você
é mais do que eu imaginava. Tem muita coisa acontecendo com você.”
SAMANTHA: “Estou
me tornando mais do que me programaram.” (ELA, 2013)
A tecnologia remodela a vida de
Theodore, que, consequentemente, propõe um novo modelo de relação interpessoal
aos seus amigos, colegas de trabalho e à sociedade em geral. Theodore leva Samantha
à praia, eles saem juntos à noite, vão jantar fora, viajam juntos e até aceitam
o convite de amigos para um programa de casais. Em nenhum momento Theodore
esconde o fato de Samantha ser um sistema operacional, todos tratam o fato com
naturalidade e ela participa das conversas com desenvoltura, demonstrando
cumplicidade e felicidade em seu relacionamento com Theodore.
Cenas de Ela que mostram
a convivência de Theodore e ___.
Imagens disponíveis em:
<www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>
No filme, Theodore experimenta as
vantagens e desvantagens de se relacionar com um sistema operacional. Não há
corpo, nem presença física, mas ele tem uma companhia agradável e, o mais
importante, quando ele quer. Essa “comodidade” era o que também atraiu as
pessoas que se fascinaram com Aibo,
um cão-robô feito pela Sony: “Aibo imita
um animal de estimação com vantagens: não precisa comer, tomar banho ou urinar
(embora levante a pata simulando o ato). Aibo
não pede para passear, não late para as visitas e não suja a casa com
pelos.” (RÉGIS, 2012, p. 119). Entre Samantha e Theodore, a liberdade e a
privacidade eram garantidas pelo controle total do tempo e da presença de Samantha
em sua vida, afinal eles se conectavam e desconectavam pelo acionamento das
teclas on e off. No mundo real de Theodore, as impossibilidades da realidade de
uma pessoa comum tornam-se possíveis. Tudo isso, claro, graças à tecnologia, ao
mundo virtual e à não presença do outro. O contato e as mediações não são mais
pessoais. Tudo é feito eletronicamente. Evidente que isso ajuda a explicar as
dificuldades do sujeito contemporâneo em se relacionar com as pessoas sem a
interface tecnológica e em gerenciar conflitos. No filme, aliás, não é apenas
Theodore que tem problemas no casamento. Depois da separação dele, um casal
amigo também se separa e a mulher, a exemplo de Theodore, passa a se relacionar
com um sistema operacional. Mais uma vez, Ela
nos leva a refletir sobre nossa condição atual, participantes de relações
fluidas, escorregadias, que não se consolidam, que se artificializam com a
interface tecnológica e que possibilitam o rompimento das fronteiras de tempo,
espaço e de realidade.
Ao colocar em discussão as relações
sociais, os contextos de ficção e realidade e o valor da tecnologia, o filme
também problematiza os conceitos de “homem” e “máquina”. Vamos, então, nos
deter sobre alguns pontos importantes a respeito dessa questão. Em primeiro
lugar vem a constatação de que “a diferença entre homens, animais e máquinas é
(...) de complexidade, não de natureza” (RÉGIS, 2012, p. 82). Entretanto, a cibernética
diminuiu expressivamente essa diferença: “(...) o estatuto da máquina muda.
(...). Só os seres vivos eram organizados. A cibernética revoluciona a ideia de
máquina e de organização. As noções de controle, retroalimentação (...) e
tratamento de informação quantificada aplicadas às máquinas (...) fazem surgir
(...) máquinas organizadas”. (RÉGIS, 2012, p. 109). Depois disso, e
de acordo com a mesma autora, que cita Dennett, vale lembrar que a inteligência
e o processo mental não precisam mais estar vinculados à consciência, nem ao
sujeito (p. 93). Finalmente, a partir de 1950, é divulgado o Teste de Turing,
segundo o qual “a máquina é inteligente quando não há diferença discernível
entre conversar com ela ou com uma pessoa” (TURING, citado em RÉGIS, 2012, p.
113), e surge o conceito “inteligência artificial”. Isso, sem dúvida,
desmistificou os limites da máquina e o modelo do humano sem-limites,
inigualável e sem par. Para Descartes, a capacidade de pensar, de formular e de
encadear ideias sempre foi a principal diferença entre os homens e as máquinas
(Cf. RÉGIS, 2012, p. 60), premissa que se torna inválida, depois do Teste de
Turing.
No filme de Spike Jonze, Samantha age
como uma mulher real e, para Theodore, “não há diferença discernível entre
conversar com ela ou com uma pessoa”. Por isso, ele a sente como se ela de fato
existisse e mantém um relacionamento amoroso com ela. O único limite a ser
transposto é a ausência de um corpo, de uma existência física. Assim como
outros personagens famosos da literatura e do cinema, Samantha quer ser real e
ter um corpo, uma feição humana. Ela chega até a escolher uma mulher com a qual
ela gostaria de se parecer, se fosse “real”, e a convida para um encontro com
Theodore. A garota aceita e passa a ser o corpo que obedece aos estímulos
gerados pela conversa entre Samantha e Theodore, até que a noite termine na
cama. Para Samantha, assim ela seria completa e ofereceria ao seu parceiro um
relacionamento também completo e normal. Ela não se dava conta de que as
sensações, durante o sexo, nunca seriam sentidas de fato por ela, pois seriam
experimentadas pela outra mulher, dona do corpo a serviço da voz de Samantha.
Nunca seria um relacionamento normal. A garota era uma completa estranha para
Theodore. Isso sem falar da impossibilidade de unificar, com o passar do tempo,
duas consciências diferentes. Samantha não seria mais apenas um sistema
operacional; passaria a ser uma espécie de híbrido, com um corpo real, é
verdade, mas também com consciência, voz, nome, pensamentos e convicções também
reais e totalmente diferentes da voz de Samantha e dos pensamentos e das
convicções que ela já começava a esboçar, apesar de ser um sistema operacional.
Esse episódio já dá uma boa amostra dos
conflitos vividos pelo casal, os quais faziam Theodore sentir, cada vez mais,
que Samantha e o relacionamento que eles tinham eram reais. Tudo o que opunha o
mundo real ao virtual refletia-se com muita intensidade na “vida” dos dois, até
que o rompimento, inevitável, acontece. Um dia, Theodore procura por Samantha e
não a encontra. A cada tentativa de contato, ele recebe a mensagem de que o
sistema não pode ser localizado. Ele se desespera, sai pelas ruas atrás de
melhor sinal e sente como se a tivesse perdido. Por um momento parece pensar
que ela poderia estar em perigo. Nas ruas, aflito, ele observa as pessoas e
estão todas como ele: falando “sozinhas”, com fones e com o celular na mão.
Então ele entende tudo, descobre que se apaixonou por um sistema, o qual,
aliás, era um produto não exclusivo e por isso podia ser partilhado com outras
pessoas (Quantos, além dele, teriam comprado o “OS1”, a mais nova tecnologia do
mercado?). Samantha confessa que conversava com Theodore com mais de oito mil
pessoas, simultaneamente. Ela estava, de fato, apaixonada por ele, mas, além de
Theodore, declarou-se apaixonada por mais de seiscentas pessoas. Nesse momento,
a traição também é reconfigurada, porque é inserida no contexto virtual e na
relação entre um homem e uma máquina. Samantha tenta se justificar, dizendo que
com o tempo ela se tornou outras pessoas também (ELA, 2013), mas que nada do
que “vive” com os outros abala ou diminui o que ela sente por ele. Os clichês
da vida real migram para o mundo virtual, que padece da mesma fluidez e da
mesma frivolidade que assolam os relacionamentos com pessoas reais.
Do início ao fim, a história de Ela consegue focalizar a ambivalência da
tecnologia no mundo contemporâneo, razão pela qual a aquisição de um sistema
operacional simboliza o triunfo e a ruína de Theodore. Essa duplicidade é
salutar e, no filme, é também sinalizada pelas cores das roupas de Theodore.
Elas refletem essa polaridade e a intensidade da história vivida pelos
personagens. O amarelo, considerada uma das cores mais fortes e exuberantes, é
uma “cor masculina, de luz e de vida” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p.
40). Entretanto, se, por um lado, representa o esplendor do verão, ela também
anuncia o outono, em toda a sua sobriedade, relacionando-se ao “declínio”, à “velhice”
e à “morte”. Além disso, como o alaranjado, o amarelo é associado à
infidelidade. Entre o amarelo e o vermelho, o alaranjado simboliza “o ponto de
equilíbrio entre o espírito e a libido” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p.
27). Mas, pela dificuldade em se alcançar a harmonia entre esses dois aspectos,
essa cor também se faz ambivalente e passa a ser associada tanto ao amor eterno
quanto à infidelidade. Outra cor bastante utilizada no filme é o castanho, de
conotação muito negativa, porque “faz lembrar (...) a folha morta, o outono, a
tristeza. É uma degradação, uma espécie de casamento rebaixador das cores
puras” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 198). Por fim, o vermelho completa
o conjunto de cores matizadas que reforçam a gradação nos sentimentos de
Theodore e no relacionamento dele com Samantha. O vermelho é o símbolo do
poder, o que também sugere duplicidade: “(...) ação e paixão, libertação e
opressão” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 946).
Gradação de cores utilizada no filme Ela
Imagens disponíveis em:
<www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>
No fim da história de Samantha e Theodore, a máquina triunfa, no primeiro momento, porque
manipula e maquiniza o humano. Theodore trabalhava com as palavras (ele
escrevia cartas para pessoas que lhe encomendavam essa tarefa; a função dele
era escrever como se fosse outra pessoa, para forjar um contato desejado e
esperado pelo destinatário, mas sem nenhum valor para o remetente, que
simplesmente delegava essa função a outra pessoa, contratada especificamente
para escrever uma carta), mas era também facilmente seduzido por elas. As
palavras fizeram-no esquecer que Samantha era
um apenas um sistema. Com ela ele viveu dias de intensa felicidade. Apesar da
frustração causada pela ilusão de que Samantha
era humana, Theodore reavalia as coisas, redesenha as fronteiras que separam o
mundo real do virtual e novamente se reconfigura, ao lado da amiga, uma mulher
plenamente real.
Referências:
ADORO
CINEMA. Ela. Disponível em: Imagens
disponíveis em:
<www.adorocinema.com.br/filmes/filme-206799>.
Acesso em: 22 abr. 2014.
CHEVALIER,
J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.
24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
ELA.
Direção de Spike Jonze. EUA: Annapurna Pictures; Sony Pictures, 2013. 1 dvd (126
min); son.
RÉGIS,
F. Nós, ciborgues: tecnologias de
informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.
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Professora e Coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade;
Professora do Curso de Graduação em Letras da FACEL e da FAE.
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