MAIS OU MENOS REAL,
NO CINEMA E NA TV
Verônica Daniel Kobs*
Embora, hoje,
o cinema seja considerado o tipo de arte talvez mais adequado para a ficção, no
que diz respeito ao ilusionismo gerado pelos efeitos especiais, no início de
sua História ele manteve estreita relação com a realidade. Os pioneiros do
cinema brasileiro, por exemplo, são filmes que mostraram tomadas da Baía de
Guanabara e que registraram o Carnaval em diversas cidades do país, como João
Pessoa, Rio de Janeiro, Curitiba, entre outras. Depois disso, os sucessos foram
os filmes de enredo, baseados nos crimes de maior repercussão na mídia
nacional. Do mesmo modo, a TV, com as telenovelas, um dos principais produtos
culturais brasileiros dos meios de comunicação de massa, privilegiou, desde o início,
personagens e histórias bastante verossímeis**.
Evidente que
os documentários, os filmes de enredo e as telenovelas são textos ficcionais,
mas, com base nessa breve retomada, percebe-se que é muito tênue a divisão
entre ficção e realidade. Entretanto, apesar da semelhança que essa aproximação
representa, é imprescindível observar que, enquanto o cinema recorria à
realidade para enfatizar as vantagens da nova arte (o registro e a reprodução
da imagem na grande tela), a TV usava a representação da realidade de modo
bastante específico, invertendo o efeito alçando pelo cinema. Nas novelas, os
núcleos “ricos” ganhavam mais destaque, fazendo com que o produto televisivo
fosse rapidamente aceito, propagando-se junto ao público das classes mais
populares. Funcionava mais ou menos assim: As pessoas da classe alta assistiam
às histórias para ver a representação de seu próprio mundo. Porém, a maioria das
pessoas seguia as novelas para conhecer mais de perto aquele mundo de dinheiro
e glamour, ao qual não tinha acesso, a não ser pela TV. Dessa forma, embora a
TV recriasse a realidade burguesa, em certa medida ela propiciava a fuga da
realidade àqueles que recorriam às novelas para esquecer os problemas e sonhar
com a riqueza.
Voltando ao
cinema, depois da incursão pela realidade e da grande interferência desse
universo nas narrativas ficcionais dos filmes, pode-se verificar um afastamento
progressivo da realidade, afinal, há outros tipos de filmes. Nas animações da
Disney e nos clássicos da ficção científica, por exemplo, impera a
suprarrealidade, com a diferença que, no primeiro caso, a história geralmente
se faz como uma espécie de alegoria da realidade; já, no segundo caso, a base
real é quase que inteiramente suplantada, considerando-se que as histórias se
passam em tempos e espaços muito diferentes do tempo e do espaço presentes (e
reais). Tanto a animação quanto a ficção
científica consolidaram o cinema como arte da ilusão e das possibilidades,
rompendo com a “coerência” do mundo real. Cinderela,
Fantasia, Alice no país das maravilhas, Star wars, De volta para o futuro e Matrix são apenas alguns bons exemplos
disso. Mas o fato é que há muitos mais e essa consolidação, feita a partir de
imagens “impossíveis” ou “irreais”, fez com que, hoje, o público de cinema
espere ver cenas espetaculares, exageradas nos detalhes e nos efeitos
especiais, até mesmo nos filmes que têm
as histórias e os personagens mais normais e verossímeis. Sabe-se que há
desvios em qualquer ficção, por mais “real” que seja a história, mas com os
efeitos do cinema é claro que a realidade representada na ficção se
artificializa ainda mais, distanciando-se de seu referente na mesma proporção
em que é modificada.
Em
contrapartida, a televisão aproxima-se cada vez mais do efeito de realidade. As
novelas tornaram-se mais democráticas, com a ampliação dos núcleos que fogem ao
padrão de vida burguês, da classe alta. A novela Vidas opostas, da Record, exemplifica bem essa mudança. Além disso,
os estereótipos de mocinho e vilão foram completamente renovados. Atualmente,
nenhuma mocinha de novela pode ser totalmente boa, afinal, esse perfil
maniqueísta já não convence mais. Por fim, restam os reality shows, que fazem com que todos torçam para um ilustre
desconhecido ficar na casa ou ser votado para se tornar a mais nova celebridade
da música. Deixando de lado o altíssimo padrão de produção de algumas emissoras
e desconsiderando o fato de que qualquer reality
show que se preze tem um script a
ser seguido, o importante é que não é mais necessário ser famoso para fazer
sucesso. Pelas redes sociais ou pela TV, o que vale mesmo é poder espiar a vida
alheia.
Nesse ponto,
porém, há uma guinada e TV e cinema parecem
trocar de lugar e de função, rompendo, respectivamente, com as
tendências de proximidade e afastamento em relação à realidade. Tomando como
exemplos duas novelas recentes exibidas pela Globo, Saramandaia e Meu pedacinho de chão, pode-se constatar que a televisão, agora, inverte o processo e promove
o afastamento da realidade, pelo uso de características das narrativas
fantásticas. Em Saramandaia, a rotina
dos moradores era frequentemente perturbada pelos uivos do lobisomem, pelos
voos de João Gibão, pelas visões da matriarca da família Rosado, pelos calores
intensos de Marcina ou pelo medo de que dona redonda explodisse a qualquer
momento. Em Meu pedacinho de chão, a realidade era completamente alterada pelo
tom parodístico dos personagens, pelo figurino inusitado e pouco convencional
(como os vestidos de plástico da professora Juliana), pela reprodução de partes
do cenário em pequeníssima escala, com o auxílio de maquetes e carrinhos de
brinquedo, e pelos elementos artificiais que compunham o cenário (lenha
multicolorida, árvores com caules rendados, passarinhos de desenho animado,
etc.).
Maquete usada na novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível
em:
http://www.bdxpert.com/wp-content/uploads/2014/04/pedacinho2.jpg
Cenário da novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível em:
http://revistaimoveis.zap.com.br/imoveis/wp-content/uploads/2014/04/novela-pedacinho-de-chao-2.jpg
Cenário e figurino da novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível
em:
http://www.oficinadamoda.com.br/upload/imagens_upload/novela_das_seis_1.jpg
E no cinema? A
sétima arte, tão reverenciada pelo afastamento constante entre realidade e
ficção, agora investe em histórias de pessoas comuns e lança biografias de
desconhecidos notáveis, que chamaram atenção por algum feito inusitado. Entre
os vários exemplos desses filmes “baseados em uma história real”, dois concorreram
ao Oscar 2014: O lobo de Wall Street e Clube
de compras Dallas. O primeiro filme, que repete a parceria Martin Scorsese
e Leonardo DiCaprio, conta a incrível história de Jordan Belfort, corretor que conquistou dinheiro, poder e fama vendendo
ações de empresas nada promissoras. O outro longa-metragem, estrelado por
Matthew McConaughey, é baseado na vida de Ron Woodroof, caubói e eletricista
que, ao descobrir que está com AIDS, precisa lutar pela vida e contra o
preconceito. Sem dúvida, trata-se de dois grandes filmes, que concorreram a
várias categorias da maior premiação mundial do cinema. Essa repercussão,
claro, é resultado da boa recepção por parte do público e da crítica, sintoma
claro do interesse por histórias notáveis, e “verdadeiras”. É evidente que,
quando vividas por alguém famoso, há um apelo a mais, mas o que é de fato
revelador, no caso dos dois filmes aqui citados, é que as histórias ganharam
notoriedade, mesmo sem um personagem que fosse famoso, além de real. A partir
disso, algumas conclusões são possíveis: a) as histórias eram boas; b) o
interesse do público pela vida alheia é cada vez maior; c)as duas alternativas
anteriores são verdadeiras.
Capas de O lobo de Wall
Street e Clube de compras Dallas. Imagens
disponíveis em:
http://br.web.img2.acsta.net/pictures/13/12/30/18/11/111145.jpg
e http://s2.glbimg.com/yDh5QJyRDriYsR9fdB0jI4CfoS0Xpj1ECKFSTiX1EjlIoz-HdGixxa_8qOZvMp3w/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2014/01/14/filmes_10.jpg
Depois deste breve paralelo entre
cinema e televisão, cumpre mencionar os objetivos deste ensaio. O primeiro é
pensar sobre as mudanças que ocorrem constantemente, nas mídias e nas artes. O
segundo é analisar como a nossa realidade interfere na produção cultural, de
modo a provocar alterações significativas. E o terceiro objetivo (talvez também
o mais importante) é afirmar a relação de complementaridade que existe, nos
contextos intermídias e interartes, pois não há como escolher entre a
“realidade” do cinema contemporâneo e a “artificialidade” da televisão atual.
Precisamos das duas coisas, em todos os momentos e a qualquer tempo. Realidade
e ficção. TV e cinema.
*Professora de Imagem e
Literatura e Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária. Professora
dos Cursos de Letras, na FACEL e na FAE.
**O termo “verossímil”, aqui,
está sendo usado em seu sentido mais popular, como adjetivo que caracteriza uma
representação próxima da realidade.
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