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segunda-feira, 25 de agosto de 2014


MAIS OU MENOS REAL, NO CINEMA E NA TV
Verônica Daniel Kobs*

Embora, hoje, o cinema seja considerado o tipo de arte talvez mais adequado para a ficção, no que diz respeito ao ilusionismo gerado pelos efeitos especiais, no início de sua História ele manteve estreita relação com a realidade. Os pioneiros do cinema brasileiro, por exemplo, são filmes que mostraram tomadas da Baía de Guanabara e que registraram o Carnaval em diversas cidades do país, como João Pessoa, Rio de Janeiro, Curitiba, entre outras. Depois disso, os sucessos foram os filmes de enredo, baseados nos crimes de maior repercussão na mídia nacional. Do mesmo modo, a TV, com as telenovelas, um dos principais produtos culturais brasileiros dos meios de comunicação de massa, privilegiou, desde o início, personagens e histórias bastante verossímeis**.
Evidente que os documentários, os filmes de enredo e as telenovelas são textos ficcionais, mas, com base nessa breve retomada, percebe-se que é muito tênue a divisão entre ficção e realidade. Entretanto, apesar da semelhança que essa aproximação representa, é imprescindível observar que, enquanto o cinema recorria à realidade para enfatizar as vantagens da nova arte (o registro e a reprodução da imagem na grande tela), a TV usava a representação da realidade de modo bastante específico, invertendo o efeito alçando pelo cinema. Nas novelas, os núcleos “ricos” ganhavam mais destaque, fazendo com que o produto televisivo fosse rapidamente aceito, propagando-se junto ao público das classes mais populares. Funcionava mais ou menos assim: As pessoas da classe alta assistiam às histórias para ver a representação de seu próprio mundo. Porém, a maioria das pessoas seguia as novelas para conhecer mais de perto aquele mundo de dinheiro e glamour, ao qual não tinha acesso, a não ser pela TV. Dessa forma, embora a TV recriasse a realidade burguesa, em certa medida ela propiciava a fuga da realidade àqueles que recorriam às novelas para esquecer os problemas e sonhar com a riqueza.
Voltando ao cinema, depois da incursão pela realidade e da grande interferência desse universo nas narrativas ficcionais dos filmes, pode-se verificar um afastamento progressivo da realidade, afinal, há outros tipos de filmes. Nas animações da Disney e nos clássicos da ficção científica, por exemplo, impera a suprarrealidade, com a diferença que, no primeiro caso, a história geralmente se faz como uma espécie de alegoria da realidade; já, no segundo caso, a base real é quase que inteiramente suplantada, considerando-se que as histórias se passam em tempos e espaços muito diferentes do tempo e do espaço presentes (e reais).  Tanto a animação quanto a ficção científica consolidaram o cinema como arte da ilusão e das possibilidades, rompendo com a “coerência” do mundo real. Cinderela, Fantasia, Alice no país das maravilhas, Star wars, De volta para o futuro e Matrix são apenas alguns bons exemplos disso. Mas o fato é que há muitos mais e essa consolidação, feita a partir de imagens “impossíveis” ou “irreais”, fez com que, hoje, o público de cinema espere ver cenas espetaculares, exageradas nos detalhes e nos efeitos especiais,  até mesmo nos filmes que têm as histórias e os personagens mais normais e verossímeis. Sabe-se que há desvios em qualquer ficção, por mais “real” que seja a história, mas com os efeitos do cinema é claro que a realidade representada na ficção se artificializa ainda mais, distanciando-se de seu referente na mesma proporção em que é modificada.
Em contrapartida, a televisão aproxima-se cada vez mais do efeito de realidade. As novelas tornaram-se mais democráticas, com a ampliação dos núcleos que fogem ao padrão de vida burguês, da classe alta. A novela Vidas opostas, da Record, exemplifica bem essa mudança. Além disso, os estereótipos de mocinho e vilão foram completamente renovados. Atualmente, nenhuma mocinha de novela pode ser totalmente boa, afinal, esse perfil maniqueísta já não convence mais. Por fim, restam os reality shows, que fazem com que todos torçam para um ilustre desconhecido ficar na casa ou ser votado para se tornar a mais nova celebridade da música. Deixando de lado o altíssimo padrão de produção de algumas emissoras e desconsiderando o fato de que qualquer reality show que se preze tem um script a ser seguido, o importante é que não é mais necessário ser famoso para fazer sucesso. Pelas redes sociais ou pela TV, o que vale mesmo é poder espiar a vida alheia.
Nesse ponto, porém, há uma guinada e TV e cinema parecem  trocar de lugar e de função, rompendo, respectivamente, com as tendências de proximidade e afastamento em relação à realidade. Tomando como exemplos duas novelas recentes exibidas pela Globo, Saramandaia e Meu pedacinho de chão, pode-se constatar que a  televisão, agora, inverte o processo e promove o afastamento da realidade, pelo uso de características das narrativas fantásticas. Em Saramandaia, a rotina dos moradores era frequentemente perturbada pelos uivos do lobisomem, pelos voos de João Gibão, pelas visões da matriarca da família Rosado, pelos calores intensos de Marcina ou pelo medo de que dona redonda explodisse a qualquer momento.  Em Meu pedacinho de chão, a realidade era completamente alterada pelo tom parodístico dos personagens, pelo figurino inusitado e pouco convencional (como os vestidos de plástico da professora Juliana), pela reprodução de partes do cenário em pequeníssima escala, com o auxílio de maquetes e carrinhos de brinquedo, e pelos elementos artificiais que compunham o cenário (lenha multicolorida, árvores com caules rendados, passarinhos de desenho animado, etc.). 

Maquete usada na novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível em:
http://www.bdxpert.com/wp-content/uploads/2014/04/pedacinho2.jpg

Cenário da novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível em:
http://revistaimoveis.zap.com.br/imoveis/wp-content/uploads/2014/04/novela-pedacinho-de-chao-2.jpg

Cenário e figurino da novela Meu pedacinho de chão. Imagem disponível em:
http://www.oficinadamoda.com.br/upload/imagens_upload/novela_das_seis_1.jpg

E no cinema? A sétima arte, tão reverenciada pelo afastamento constante entre realidade e ficção, agora investe em histórias de pessoas comuns e lança biografias de desconhecidos notáveis, que chamaram atenção por algum feito inusitado. Entre os vários exemplos desses filmes “baseados em uma história real”, dois concorreram ao Oscar 2014: O lobo de Wall Street e Clube de compras Dallas. O primeiro filme, que repete a parceria Martin Scorsese e Leonardo DiCaprio, conta a incrível história de Jordan Belfort, corretor que conquistou dinheiro, poder e fama vendendo ações de empresas nada promissoras. O outro longa-metragem, estrelado por Matthew McConaughey, é baseado na vida de Ron Woodroof, caubói e eletricista que, ao descobrir que está com AIDS, precisa lutar pela vida e contra o preconceito. Sem dúvida, trata-se de dois grandes filmes, que concorreram a várias categorias da maior premiação mundial do cinema. Essa repercussão, claro, é resultado da boa recepção por parte do público e da crítica, sintoma claro do interesse por histórias notáveis, e “verdadeiras”. É evidente que, quando vividas por alguém famoso, há um apelo a mais, mas o que é de fato revelador, no caso dos dois filmes aqui citados, é que as histórias ganharam notoriedade, mesmo sem um personagem que fosse famoso, além de real. A partir disso, algumas conclusões são possíveis: a) as histórias eram boas; b) o interesse do público pela vida alheia é cada vez maior; c)as duas alternativas anteriores são verdadeiras.



Capas de O lobo de Wall Street e Clube de compras Dallas. Imagens disponíveis em:
http://br.web.img2.acsta.net/pictures/13/12/30/18/11/111145.jpg e http://s2.glbimg.com/yDh5QJyRDriYsR9fdB0jI4CfoS0Xpj1ECKFSTiX1EjlIoz-HdGixxa_8qOZvMp3w/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2014/01/14/filmes_10.jpg

Depois deste breve paralelo entre cinema e televisão, cumpre mencionar os objetivos deste ensaio. O primeiro é pensar sobre as mudanças que ocorrem constantemente, nas mídias e nas artes. O segundo é analisar como a nossa realidade interfere na produção cultural, de modo a provocar alterações significativas. E o terceiro objetivo (talvez também o mais importante) é afirmar a relação de complementaridade que existe, nos contextos intermídias e interartes, pois não há como escolher entre a “realidade” do cinema contemporâneo e a “artificialidade” da televisão atual. Precisamos das duas coisas, em todos os momentos e a qualquer tempo. Realidade e ficção. TV e cinema.

*Professora de Imagem e Literatura e Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária. Professora dos Cursos de Letras, na FACEL e na FAE.

**O termo “verossímil”, aqui, está sendo usado em seu sentido mais popular, como adjetivo que caracteriza uma representação próxima da realidade.

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