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Marques de Azevedo
A preocupação imemorial do ser
humano com a preservação de sua história pessoal, de recordações de sua
experiência de vida, enfim, com a preservação de sua memória, deu origem a um número incalculável de narrativas de
expressão do “eu”, ─ memórias, confissões, diários,
cartas, autorretratos ─, através dos séculos, algumas
delas registradas no cânone da literatura ocidental, desde que Sócrates
apresentou sua Apologia ao tribunal
ateniense em 399 a. C. O sentido de memória como recuperação de acontecimentos
passados, portanto, está na base de todas as formas de narrativas confessionais.
Para início de discussão, é
importante esclarecer os diferentes significados do termo memória. Expressões
do cotidiano como “ter boa memória”, “perder a memória”, “guardar na memória”,
“memórias do passado”, “recitar de memória” indicam as acepções mais comuns do
termo: memória como a capacidade neurocognitiva de codificar, armazenar e
recuperar informações; memória como o local hipotético ─
uma espécie de baú ─ em que se guardam lembranças;
memória como a própria lembrança ou informação armazenada; memória como
processo complexo de recuperação das informações; memória como a percepção
fenomenológica do individuo de se lembrar de alguma coisa. .
A epifania do “eu” e a memória como local de
encontro do “eu” consigo mesmo constituem o fundamento básico das Confissões
de Santo Agostinho (354-430), o arquétipo das narrativas de vida que
exploram a essência do humano em contraposição ao divino, imortal e atemporal.
O título confissões, à maneira de Santo Agostinho, passa a designar uma
espécie de narrativa – origem da moderna autobiografia – que pode ter como
objetivo um relato fiel da personalidade do autor, ou, no caso das Confissões
de Rousseau (1781-1788), publicadas postumamente, a pintura de um retrato com
retoques, destinado a criar uma imagem ideal para a posteridade:
Meu objetivo é exibir à minha espécie um
retrato inteiramente fiel à natureza, e o homem que retratarei serei eu mesmo.
[...] Conheço meu próprio coração e compreendo meu semelhante. Mas eu sou feito
diferente de qualquer outro que conheci; posso não ser melhor, mas pelo menos
sou diferente. Quer a Natureza tenha feito bem ou mal ao quebrar a forma em que
me criou, é uma pergunta a ser respondida apenas depois da leitura do meu
livro. (Rousseau s.d., p. 6)
Existem
profundas diferenças entre os autores, distantes no tempo e na história:
Agostinho, filósofo e teólogo medieval, em busca de Deus nos compartimentos de
sua memória de homem pecador e falível, e Rousseau, filósofo do iluminismo,
apologista das qualidades de liberdade e soberania do ser humano no contexto da
natureza. Ambos, porém, são estudados como parâmetros das narrativas de vida,
tanto de caráter autobiográfico como ficcional, na literatura do ocidente.
Nos estudos literários, a acepção
do termo se amplia, ainda, em duas direções: 1) para incluir o gênero memórias, em que um “eu” narrador volta
ao passado em busca de recordações e acontecimentos que sejam representativos
para um momento posterior, do qual este “eu” narrador escreve; 2) memória como mecanismo de criação
literária.
Como gênero narrativo, as memórias seriam, portanto, a
recuperação de um tempo passado que pode pertencer tanto ao passado privado do
escritor como ao passado coletivo da sociedade. Em Minha formação, o leitor encontra, ao lado de reminiscências da
juventude de Joaquim Nabuco, fatos da história do Brasil, em especial o
movimento abolicionista, na percepção de uma consciência individual que nos faz
um relato em primeira pessoa, como se os lugares, os personagens e os eventos
emanassem do “eu” que narra e acabassem nele. A obra de Nabuco alinha-se com a
de outros homens notáveis da política, da literatura e das artes, em que
predomina o espaço consagrado aos acontecimentos contemporâneos e à própria
história sobre o espaço dedicado à personalidade do autor. Como alguém que
participou da feitura da história do Brasil, Nabuco imprime a seu texto a
credibilidade do testemunho ocular e a autoridade do estadista, diplomata e
escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.
O
memorialismo pressupõe sempre dois tempos: o presente em que se narra e o
passado em que ocorrem os fatos narrados. O livro de memórias de Nabuco, por
seu caráter quase historiográfico, aproxima-se da precisão do relato
referencial, em estilo objetivo, em que o olhar do narrador volta-se
preferencialmente para o mundo exterior. São memórias centradas na história, que constituem um espaço
intermediário para a emergência do “eu” em obras posteriores, em que se acentua
a presença da voz individual que testemunha os acontecimentos. Estas últimas
são memórias centradas no “eu”, a um passo do romance de memória,
exemplificadas pela obra de Pedro Nava, o grande escritor memorialista brasileiro.
Ao
primeiro livro de memórias de Pedro Nava, Baú
de ossos (BO), seguem-se Balão cativo
(BC), Chão de ferro (CF), Beira Mar (BM), Galo das trevas (GT), O
cirio perfeito (CP) e o póstumo Cera das almas (CA). Como em toda narrativa de memória, em Nava, a reconstrução do passado inclui tanto o testemunho pessoal como
recursos da ficção para reconstituir relações interpessoais, familiares e sociais. As imagens que guarda da avó
materna, a tirânica Inhá Luiza, que geria com mão de ferro todos à sua volta,
têm ressaibos de amargura e revolta:
Tal era minha parcialidade por elas [as negrinhas e mulatas] que um dos
motivos porque aborreço a memória de minha avó materna é a lembrança nunca
apagada de tê-la visto espancando Deolinda e esfregando suas costas aleijadas
com sua vara de marmelo. Porque a Sinhá da Rua Direita, 179, não tomara
conhecimento do 13 de maio e chegava a ratamba não só nas suas crias como nas
empregadas assalariadas. Tapa na boca. Vara de Marmelo – das que chegavam em
feixe, preparadas pelo Pedro, da Serra. (NAVA, 2000, p. 9)
A citação, oriunda de Balão cativo, o segundo volume de
memórias de Pedro Nava ilustra a posição do narrador que desenha com traços
fortes o retrato de pessoas com quem conviveu. A sequência dos títulos
acompanha as fases da vida do narrador itinerante, dividido entre o fato e a
fábula, até a maturidade. A morte do escritor, cujo suicídio em 1984, causou
comoção nos círculos literários brasileiros, veio interromper a construção de
suas memórias. Mesmo assim, constituem um volume considerável, para cujo estudo,
intitulado Espaços da memória, Joaquim
Alves de Aguiar utilizou-se de uma estrutura espacial, a casa, a escola, e o
trabalho.
O sobrado no subúrbio carioca de
Rio Comprido marca anos alegres da família, agrupada ao redor do pai médico que
morre jovem, vitimado por uma pneumonia. A jovem viúva vê-se obrigada a pedir
abrigo à mãe, a Inhá Luiza das recordações do narrador, em Juiz de Fora. A mão
pesada da avó e a dependência financeira e submissão da mãe, Dona Diva,
determinam o tom de desagrado das reminiscências. Por outro lado, a
reconstituição do ambiente físico e dos seres humanos, que pululavam no círculo
de influência da avó, revelam o observador arguto e a curiosidade do
memorialista que se esmera na descrição de detalhes.
A cozinha do 179 era negra e encardida como convinha a
uma boa cozinha de Minas. Tinha um teto alto e incerto, de onde barrotes
algodoados de picumã desciam, em cima do fogão, as serpentes mosqueadas e
lustrosas das linguiças em carne-viva, as mantas de pele de porco escorrendo
gordura e as espirais de cascas de laranja que ali ficavam defumando e secando.
(Balão cativo, p. 10)
Quando a família consegue,
finalmente, tornar-se independente e ter sua própria casa em Belo Horizonte, encontra
tempo e espaço para o desenvolvimento de relações familiares. A mãe, herdeira
das tradições ancestrais, tinha muitas histórias e casos sobre seus
antepassados para contar, sem os quais Nava “dificilmente poderia ter escrito
suas Memórias,” diz Aguiar (1998, p. 11). O jovem Pedro Nava adorava ouvir sua mãe
“contar seus casos de menina, da escravidão, da velha Juiz de Fora, os de
assombração, que herdara da mãe e do pai, do avô visconde [...] do outro avô
Luís da Cunha e de sua brabeza (Galo das
trevas, p. 338). O futuro escritor nos informa que “insistia, fazia
repetir, pedia detalhes, guardava tudo e quando era coisa de data tomava nota
num papelzinho e jogava dentro duma pasta velha” (p. 338). Essas reminiscências
seriam transfiguradas, anos depois, em matéria das Memórias de Pedro Nava.
A utilização da memória como
mecanismo de criação literária é-nos revelada gradativamente, nos vários
volumes de sua obra. Nas diversas casas em que habitou, acompanhamos a
convivência de Nava com diversos contadores de histórias. Com as criadas da
casa em Juiz de Fora. Com o Major, seu avô, que assume a guarda da família,
após a morte de Inhá Luíza e a transfere para Belo Horizonte. Com Dona Diva,
sua mãe, já na casa própria de Belo Horizonte. E tantos outros.
O
que acima foi dito é uma tentativa canhestra de descrever a obra de Pedro Nava.
Conclamo meus eventuais leitores a lê-lo pessoalmente, a única maneira de
desfrutar do prazer de apreciar “os fabulosos retratos que não perdem para os
de Van Gogh e Modigliani. Nem para as majas vestida e desnuda de Goya”. São
palavras de nosso habitualmente discreto e reservado Dalton Trevisan, em carta
a Pedro Nava, datada de 19 de agosto de 1976, e reproduzida na Gazeta do Povo, no 30º aniversário da
morte do memorialista. Dela recorto alguns trechos, a fim de encontrar respaldo
na autoridade de Dalton Trevisan como escritor e crítico que, melhor do que
ninguém, aponta com justiça a grandeza da obra de Pedro Nava.
Após
compará-lo a Proust, Dalton Trevisan escreve:
As suas memórias são um escândalo no túmulo do
pensamento humano.” [...] Agora já temos o nosso Cem anos de solidão. Ainda mais: a nossa Educação sentimental brasileira. O episódio com
a mulatinha Maria me ilumina como uma carta de amor de Joyce para a mulher
Nora. E que dizer da sua, da nossa Esmeralda Valentina? É puro soneto de
Camões. E sobre ele e o Proust, meu caro Nava, você leva uma vantagem: eles são
grandes, porém chatos. E você, grandíssimo Nava, nunca é chato. (Gazeta do
Povo, 2014, p. 1)
É preciso dizer mais?
REFERÊNCIAS
AGUIAR, J.A. Espaços da memória.
Um estudo sobre Pedro Nava. São Paulo: Edusp, 1998.
NAVA, P. Baú de ossos. São
Paulo: Cia das Letras, 2014.
______. Balão cativo. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
______. Galo das trevas. São
Paulo: Cia das Letras, 2014.
TREVISAN, D. Pedro Nava
segundo Dalton Trevisan. Gazeta do Povo,
Curitiba, 29 de junho de 2014, Caderno G,
p. 1
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