EM BUSCA DE RAÍZES GEOGRÁFICAS E ESPIRITUAIS:
O SUJEITO DIASPÓRICO NO SÉCULO XXI.[i]
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Marques de Azevedo
As
palavras proféticas de W.E.B. Du Bois - “O problema do século
XX é o problema da linha da cor” - ressoam ainda mais
fortes no século XXI, quando o sujeito diaspórico de pele escura continua na
busca de um lugar de pertença, tema dominante na chamada literatura
pós-colonial. O lócus do romance de estréia da anglo-jamaicana Zadie Smith, Dentes brancos (2000), é o mundo
multicolorido, multirracial e plurilingüístico do distrito londrino de Brent. O
conto alegórico “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo,
escritora mineira conhecida pela celebração de suas raízes afro, dá vida a uma
comunidade negra mítica que se regenera, após um longo período de esterilidade,
com o nascimento de uma criança. As duas narrativas se encontram em um ponto
comum: a focalização de personagens diaspóricos de cor, embora em diferentes
estágios do processo pós-colonial.
Este
trabalho examina na prosa irreverente e humorística de Smith, e no texto
poético da escritora brasileira, o papel da literatura como mediação. O termo designa na teoria
pós-colonial o papel da literatura como comentário ou defesa de um determinado
ponto de vista, bem como de crítica e resistência a problemas decorrentes do
processo colonizador europeu: diáspora, deslocamento, perda de identidade,
racismo, opressão econômica e desvalorização cultural, que atingem
particularmente o homem de cor.
Os
termos correlatos pós-colonial, pós-colonialismo, pós-colonialidade, largamente
empregados nos meios acadêmicos, sofrem o problema da imprecisão semântica,
concretizada já no prefixo “pós”, cuja acepção de “o que vem depois” está em
desacordo com o âmbito do campo de estudo, que engloba todo o processo de
colonização. A imprecisão se estende ao objeto e aos métodos da crítica e das
teorias ditas pós-coloniais.
Bill
Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin demonstram no seminal The Empire Writes Back (1989) uma agenda
para os estudos pós-coloniais em inglês e definem seu objeto:
Usamos o termo pós-colonial para
cobrir toda a cultura afetada pelo processo do imperialismo, do momento da
colonização até o dia de hoje. Sugerimos também que é o termo mais apropriado
para a nova critica cross-cultural que
emergiu nos últimos anos e para o discurso em que se constitui. Neste sentido
este livro se ocupa do estado do mundo durante e após o período da dominação do
imperialismo europeu e os efeitos nas literaturas contemporâneas. (Ashcroft et
al., 1989, p. 2)
Quanto à crítica
pós-colonial, igualmente ampla é a definição de Bart Moore-Gilbert que a vê
como “conjunto de práticas de leitura mais ou menos distintas (...) voltadas
principalmente para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou
examinam (...) relações de domínio e subordinação” (Apud HUGGAN, 2001, p. 12).
Relações essas que “têm raízes na história do moderno colonialismo e
imperialismo europeu, mas que são ainda aparentes na era atual do
neocolonialismo”. O espaço temporal de séculos é superado apenas pela amplitude
espacial do processo imperialista, que abrange a quase totalidade do mundo
moderno, se considerarmos seus pólos opostos: o dominador e o dominado.
A
seguirmos Moore-Gilbert, justifica-se a inclusão dos textos selecionados para o
corpus deste trabalho como objeto da
crítica pós-colonial. O imperialismo europeu tomou formas diversas em tempos e
locais diferentes, daí a procedência de colocarmos lado a lado textos díspares,
para um estudo que vai “além dos pós-colonialismos e dos pós-nacionalismos”.
Não
há como discutir que as consequências da opressão imperialista assumem os
mesmos aspectos em todos os povos e regiões, em todas as culturas e línguas. A
diáspora dos povos africanos – os “imigrantes” involuntários da expansão
européia para além-mar – está na base das histórias de vida de Zadie Smith e de
Conceição Evaristo, bem como na construção de suas personagens em seus
respectivos enclaves étnicos.
No
conto alegórico de Evaristo, não há personagens individualizadas, mas um conjunto
de traços e qualificações que caracterizam a comunidade como um todo e fazem
dela a protagonista da narrativa. Resistente diante do sofrimento, sábia, forte
e paciente, a comunidade enfrenta uma crise de esterilidade física da
mãe-terra, quando se rompe o ciclo de morte e renascimento que comanda a
natureza:
E então
deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os
nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as
nossas vozes, movimento, dança, desejo para os nossos corpos (. . . ) O milagre
da vida deixou de acontecer também, nenhuma criança nascia e, sem a chegada dos
pequenos, tudo piorou. (. . . ) agora nenhuma família mais festejava a
esperança que renascia no surgimento de sua prole. (EVARISTO, 2005: p. 35; 37)
No
significado alegórico do conto está representada a esterilidade da vida do
homem negro, que carrega até hoje as marcas da escravidão e da opressão do
imperialismo europeu, ainda aparentes na era atual do neocolonialismo. De fato,
a problemática da posição do sujeito colonial e pós-colonial, -
e nisso os críticos estão de acordo -, é o que mais se
aproxima de um tópico prioritário ao qual se poderia subordinar a teoria
pós-colonial. Independente da idade, o indivíduo diaspórico olha para o passado
a fim de reconhecer o que sobrevive dele no presente: “Os mais velhos, acumulados de
tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente.
Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo ... (EVARISTO, 2005, p. 36)
Na análise dos textos,
a posição do sujeito diaspórico, foco principal deste trabalho, é examinada no
relacionamento mais restrito do indivíduo com a ambientação física, psicológica
e cultural. Em espectro mais amplo, analisam-se as relações persistentes de
desigualdade ─ social, política, econômica ─ no quadro da sociedade
multicultural que habita um dos centros irradiadores da cultura branca
européia, sob o foco da apropriação da cultura das minorias como representação
do “exótico”, cuja valorização estética põe em relevo seu caráter de objeto de
curiosidade.
É esse o quadro que se
percebe na Willesden Green criada por Zadie Smith para abrigar o mundo
multicultural de Dentes brancos,
formado por paquistaneses, hindus, chineses, jamaicanos, árabes, cujos destinos
vêm desembocar ali, deixando para trás raízes geográficas e espirituais. “What
is past is prologue”: a citação de The
Tempest, epígrafe do romance evidencia a importância da pré-história das
personagens, o legado de suas origens e a questão de como chegaram até o
presente, ao mesmo tempo em que fornece o esquema para o desenvolvimento do
enredo.
O
romance narra a saga de várias gerações que abrange o século vinte, mas atinge
as raízes mais remotas do quebra-cabeças cultural de seu background: as personagens vão e vêm entre Bangladesh, Bulgária,
Jamaica, Itália e Escandinávia, mas todos se reúnem nas ruas da Londres de
Zadie Smith. Envolve três famílias ─ os Joneses, casal misto, ele inglês e ela,
jamaicana; os Iqbals, de Bangladesh, e os judeus-católicos, os Chalfens ─, que
vivem nas proximidades, e cuja localização geográfica comum se sobrepõe a
heranças culturais díspares e liga seus destinos.
Se postulamos que em
“Ayoluwa” o papel de protagonista é desempenhado pela comunidade, em Dentes brancos, a função se distribui
entre os membros da geração mais jovem dos três grupos familiares, que
estabelecem a conexão entre as famílias. A análise do modo característico como
enfrentam a complexidade do ambiente multicultural de Willesden Green, que se
repete dentro de casa, ilustra um dos temas centrais do romance: o legado do
império, a reunião de imigrantes nos velhos centros imperiais, e a consequente constituição de
sociedades multiculturais.
Quer se
trate de comunidades afrodescendentes, isoladas fisicamente, no conto de
Evaristo, ou multiculturais, perdidas como fragmentos multicoloridos no mosaico
de línguas, religiões e manifestações da cultura material ─desenhado
por Zadie Smith na antiga metrópole do Império Britânico,─
tais grupos partilham os mesmos problemas decorrentes da diáspora iniciada com a expansão marítima do século XVI.
Apesar de
inconsistências de definição e de metodologia, é indiscutível que o conjunto
dos estudos pós-coloniais — teoria e critica – provou ser uma força
catalisadora para algumas das produções intelectuais mais estimulantes do
presente. No caso deste trabalho, forneceu importantes parâmetros para a
análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam relações de
domínio e subordinação na natureza do sujeito diaspórico no século XXI.
REFERÊNCIAS
ASHCROFT,
B. et al. The
Empire Writes Back. Theory and Practice in Post-Colonial Literatures.
London and New York: Routledge, 198
EVARISTO,
Conceição. ”Ayoluwa,
a alegria do nosso povo” In. Cadernos Negros 28. São Paulo: Quilombhoje:
Ed. dos Autores, 2005.
MAKARIK,
Irena. R. (Ed.) Encyclopedia of
Contemporary Literary Theory. Approaches, Scholars,
SMITH, Zadie. White
Teeth. New York: Vintage, 2001.
__________. Dentes brancos. Trad. José Antonio Arantes. São
Paulo: Cia das Letras, 2003.
[i]
Reproduzem-se aqui as páginas iniciais do texto Em busca de raízes
geográficas e espirituais: o sujeito diaspórico no século XXI, publicado na coletânea Para além dos nacionalismos e
pós-colonialismos, páginas127-148. O texto completo pode ser downloaded no site da HN Editora &
Publieditorial, endereço www.editorahn.com.br
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