O BANHO DE
LAMA COMO RITUAL DE PASSAGEM E DE CARNAVALIZAÇÃO
Sigrid Renaux
Festa dos novos universitários: aprovados no vestibular da PUCPR
comemoraram ontem com o tradicional banho de lama, em Curitiba. A festa, que
começou por volta das 14 horas, também contou com banho de espuma e trio
elétrico. (Gazeta do Povo, 4 de novembro de 2014, p.1).
Na fotografia acima, pela alegria que expressam esses
jovens, rindo e gesticulando com vestes e corpos cobertos de lama, poderíamos
concluir que esta tradição do
ensino superior brasileiro – o trote do banho de
lama como uma forma de inserir os calouros numa nova fase – seria uma
maneira de aproximar os calouros dos veteranos, por meio de um “ritual de
passagem”. De acordo com Antonio Zuin (UFSCar),
autor de O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação,
os candidatos aos cursos das primeiras universidades
europeias não podiam frequentar as mesmas salas que os veteranos e, portanto,
assistiam às aulas a partir dos "vestíbulos"- local em que eram
guardadas as vestimentas dos alunos. "As roupas dos novatos eram retiradas
e queimadas, e seus cabelos, raspados. Essas atividades eram justificadas
sobretudo pela necessidade de aplicação de medidas profiláticas contra a
propagação de doenças" (citado por Marina Dias em “A origem medieval do
trote universitário”).
O trote do banho de lama, especificamente, utilizado
como “ritual de passagem” pelos universitários veteranos brasileiros, faz parte,
portanto, de um simbolismo muito mais amplo. Pois, como é de conhecimento
geral, em todas as sociedades primitivas, determinados momentos na vida de seus
membros eram marcados por cerimônias especiais, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, mais do que representarem uma
transição particular para o indivíduo, representavam igualmente a sua
progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto tanto o cunho individual
quanto o coletivo.
Basta lembrar,
entre outros, os rituais realizados pelos índios pataxós para comemorar
a chegada das chuvas, quando
faziam o plantio de roças e, ao final do ritual, acontecia um banho de
lama e água para purificação do corpo e da mente, num momento de alegria e descontração
entre todos, celebrando e lembrando sobre como surgiu o povo Pataxó – os filhos da água. http://pt.wikiversity.org/wiki/Wikinativa/Patax%C3%B3.
Ou ainda os festivais da lama em Yotsukaido, ao leste de Tóquio, com homens de
trajes característicos participando destes festivais, que têm como objetivo
desejar boa colheita e boa saúde para os bebês.
Entretanto, existem muitas outras tradições em que os
banhos de lama, como cerimônias especiais, têm destaque. Entre elas, dentro da
história da cultura, as festividades de tipo carnavalesco. O carnaval, definido
por Bakhtin como “forma sincrética de
espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base
carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da
diferença de épocas, povos e festejos particulares” (2005, p. 122), com suas
diversas categorias, ações, imagens e locais de festejo, irá acrescentar sua
polivalência simbólica a este ritual universitário.
Se o
trote é definido como uma “tentativa de ridicularizar calouros, por parte dos
veteranos” (HOUAISS), o ritual do banho de lama, ao se inserir dentro das
festividades de tipo carnavalesco, concretiza também a “ alegre relatividade de
qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e qualquer posição
hierárquica” (BAKHTIN, 2005, p.124). Pois, assim como a coroação bufa e o
posterior destronamento do rei do carnaval – a principal ação carnavalesca – o
banho de lama a que os calouros se submetem de livre vontade, lembra os
veteranos de seu próprio banho de lama no ano anterior e aponta para os novos
calouros que no próximo ano eles serão os que irão aplicar este trote nos
próximos calouros. A brevidade do trote, portanto, como “vida carnavalesca” de
um dia, na qual a vida é “desviada de sua ordem habitual”, não apenas estimula
o “livre contato familiar” entre estudantes que ainda não se conheciam, nesta
“praça pública carnavalesca” onde se encontra a grande fossa cheia de lama.
Os
estudantes, ao se banharem na lama – como mistura de terra e água, a lama une o
princípio receptivo e matricial (terra) ao princípio dinamizante da mudança e
das transformações (água) (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1973, p.230) –, estão
inseridos num ritual de passagem e de
iniciação, mas também de carnavalização, ao manifestarem sua libertação
(provisória) do sistema e da ordem da vida comum (os jugos da vida de estudante
preparando-se para o vestibular) que os
determinava na vida extracarnavalesca, para usufruirem, por um dia, uma vida carnavalesca.
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