MOSTRAR COMO POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DA VIDA
Edson Ribeiro da Silva
(UNIANDRADE)
Paul Ricoeur
atrela a narrativa literária àquele ponto da existência em que o ser consciente
olha o tempo já transcorrido como sendo uma “distensão da alma” e pode
refletir. Narrar o passado representa a possibilidade de construir seu sentido.
A narrativa literária sabe disso, como aponta Ricoeur ao dizer que ela não
explica o tempo real, mas torna as pessoas reflexivas acerca da verdadeira
temporalidade, que é um desafio para o ser consciente. Existe o passado, como
distensão, mas também o futuro, como propensão. Diante desse futuro a ser
vivido, o ser olha para a limitação do tempo que lhe resta. O futuro é o tempo
para a morte, mas é nele, conforme Heidegger, que o ser constrói o sentido da
sua existência. A narrativa literária contém exemplos dessa tomada de
consciência, pelo narrador, de que olhar para o tempo que se distende, como
passado, é forma de construir o sentido inclusive para aquele tempo que resta
antes da morte.
Proust é
modelar nas páginas finais de Em busca do
tempo perdido, ao pensar a literatura como elemento perene diante da
mudança. Fazer literatura é reter, pelo sentido e, sobretudo, pela beleza, o
fluxo incessante. A ficção autobiográfica coloca-se diante de tal dilema: o
tempo para a morte representa a possibilidade de reter a vida. No entanto, as
ficções moderna ou pós-moderna assumem o dilema retórico apontado por Booth: narrar
ou mostrar.
Ao narrador
autobiográfico não basta assumir a posição de adulto que observa e explica o
passado distendido. Não basta narrar fazendo uso de uma voz narrativa adulta.
Falando sobre a infância, a narrativa oscila entre uma enunciação adulta e uma
outra, fingidamente infantil. O texto prefere mostrar a passagem por situações
escolhidas como portadoras de conflito e que, consequentemente, implicam na
construção da personalidade da personagem. Pode haver um verdadeiro problema.
Mas esses conflitos passam, muitas vezes, pelo tipo de problema que Deleuze
considera como “falso” ao comentar Bergson: na narrativa literária, o
corriqueiro ganha foros de conflito para que, ainda que predomine o comentário,
exista uma história sendo narrada.
Em Munro, as
personagens vivem situações em que há conflitos, mesmo quando motivados pela
rotina. Muitas vezes, a natureza destes é intensa, o que leva a desfechos
trágicos. A autora ainda narra situações que se ampliam, causam desconforto,
mas que gerariam apenas atmosferas em que um elemento é causa de desequilíbrio,
se não fosse a presença da ação que modifica os estados; o fato trágico é uma
mão sobre os contos, a garantir que eles contenham história e não apenas
comentário, para retomar a terminologia de Weinrich. Em Vilela, ao contrário,
essas personagens-crianças estão diante de situações corriqueiras da infância,
o que faz com que os contos ganhem um contorno anedótico. O contista prefere
que os enredos percam o valor de elementos capazes de mudar um estado durável.
Há comentário, há atmosferas, mas existe uma história a ser contada, mesmo
corriqueira. Por isso, ela pode parecer o efeito da lembrança de um adulto que
talvez narre não à procura de sentidos diante da morte, mas sob o efeito de
afecções, como a saudade, ou da noção de pitoresco. Não se pode negar, mesmo
quando a possibilidade heideggeriana de produzir sentido a partir da narrativa
volta-se para a produção da beleza, antes que à interpretação do real, que é o
mesmo impulso provocado pela visão do tempo da morte, diante da possibilidade
de produzir algo perene. Tanto o impulso de interpretar o passado, perceptível
em Munro, quanto o de gerar processos narrativos altamente literários, em
Vilela, são execuções dessa possibilidade de a literatura instaurar-se em outro
fluxo temporal, diferente daquele que reduz as pessoas à condição proustiana de
fantoches ou as leva à morte. Em ambos, quer-se mostrar, através de recursos
que especificam uma enunciação infantil diante de uma situação, seja de forma
oral ou escrita, a posição do narrador como ambíguo. Não se trata de uma
criança tomando a palavra, mas também não se tem integralmente uma dicção
adulta, no plano do fingimento. Às vezes, percebe-se o adulto refletindo;
outras vezes, o desnorteamento da voz infantil mostra o conflito, como se
concomitante à narração. Exemplos notórios dessa técnica são os contos de Luiz
Vilela, em Contos da infância e da
adolescência, e os de Alice Munro, em Vida
querida. Enquanto o escritor brasileiro persegue a experimentação, a
variação nos procedimentos enunciativos fingidos, que faz com que tais contos
passem da conversa ao desabafo, da carta à redação escolar, a escritora
canadense ratifica, em cada texto, o seu estilo reconhecível, o modo de narrar
dos narradores munrianos que contam fatos de um passado real ou fingido, mas
que nunca abandonam a condição daquele que olha o tempo distendido para tentar
compreendê-lo.
Existe, para
Deleuze, uma concomitância entre o tempo passado e o presente; esta se percebe
nos contos feitos pelos dois autores abordados. Tal concomitância está contida
na imagem deleuzeana do cone como representação do tempo: o vértice contém o
estreito presente em que se narra (um tempo da narração, na terminologia de
Genette), o passado se alarga, por isso precisa que o cone se expanda, tempo da
memória (e da narrativa, na terminologia genetteana). No entanto, os tempos se
imbricam quando os narradores assumem uma enunciação que confunde: pode ser a
criança ainda falando, algo que é evidente em alguns dos contos de Vilela, no
qual o desafio técnico é não fingir ser a voz do adulto que relembra o passado,
mas fingir ser o menino que, tantas vezes, comenta os fatos, procurando não os
afastar demais do presente da narração. Em Munro, os narradores se colocam no
presente, mas o estilo cria muitas vezes a sensação de que é a
personagem-criança que usa a voz e apenas comenta. Os efeitos provocados pelos
narradores não conseguem mudar a natureza dessa ficção: fora do fingimento, são
adultos falando de situações da infância, atribuindo a elas a condição da
beleza, possibilidade proustiana da permanência do passado como arte. Não há
dúvida de que a narrativa autobiográfica é forma de se olhar o tempo decorrido
e entender ou criar seu sentido, sobretudo em Munro; em Vilela, mostrar o
passado através da beleza já é pleno de sentido. Algo que funciona, em ambos,
como um suporte para a elaboração de elementos essenciais à literariedade da
narrativa. Essa abordagem de exemplares da narrativa autobiográfica como
modelos das possibilidades de se olhar o tempo, conforme propunha Ricoeur, pode
ilustrar o que o filósofo considerava uma das razões de se fazer literatura.
Mas também alguns dos modos pelos quais a narrativa literária constrói esse
olhar.
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