Profª. Anna
Stegh Camati
A
ópera, um gênero de teatro musical complexo nascido no século XVI, foi cultuado,
principalmente pelas elites, desde a sua incepção até o final do século XIX,
quando lotava as suntuosas salas de espetáculo dos edifícios teatrais. No
início do século XX, com o advento do modernismo, as manifestações do gênero
perderam muito de seu apelo, porém, com a crise da modernidade, o interesse por
elas voltou a crescer, sendo que, na década de 1990, o gênero popularizou-se
novamente com o lançamento de inúmeras gravações em VHS e, mais tarde em DVD,
de encenações de espetáculos operísticos regidos por maestros de renome, além
de adaptações fílmicas de óperas famosas. Já no século XXI, observa-se um
renovado interesse por essa forma de arte – não apenas por parte de
especialistas, acadêmicos, aficionados e mercado editorial, mas pelo público em
geral que novamente começa a prestigiar as temporadas líricas.
O
presente artigo objetiva refletir a respeito das teorizações de Marcelo
Marchioro sobre o aspecto cênico da ópera. O régisseur
paranaense tornou-se uma referência no cenário operístico, principalmente
nos anos 1980 e 1990, não somente pelo seu expertise
e criatividade na interação das mais diversas linguagens artísticas, mas
também pelo seu discurso teórico-crítico sobre a modernização da mise-en-scène do gênero. Na tentativa de
ampliar o espaço de discussão sobre montagens de óperas na contemporaneidade e
construir perspectivas teóricas sobre a forma de pensar o espetáculo operístico,
ele concedeu inúmeras entrevistas, fez pronunciamentos registrados em
paratextos publicitários divulgados pela mídia, escreveu textos de apresentação
em programas de espetáculos e publicou matérias em jornais.
A direção cênica do
espetáculo operístico: as teorizações de Marcelo Marchioro
Situada
na interface do teatro, música e artes visuais, a ópera se caracteriza por uma
intrincada tessitura composta por diversas formas e linguagens artísticas
subordinadas aos paradigmas e valores estéticos da criação musical. Cumpre
ressaltar que as convicções individuais sobre a composição da cena operística
variam de uma montagem para outra, visto que todo régisseur é, antes de tudo, um leitor que irá imprimir sua ótica
particular ao espetáculo que será levado ao palco.
Dentre
as diversas modalidades do gênero,
destacam-se a ópera séria, a bufa, a de câmara e a popular. Nessa última
categoria pode ser enquadrada a ópera balada, termo criado por John Gay no
século XVIII, quando lança uma espécie de versão paródica da ópera séria que
intitula Ópera do mendigo. Durante
sua longa carreira como régisseur, Marchioro
debruçou-se sobre todas essas manifestações do gênero e suas teorizações a respeito
surgem a partir de projetos operísticos realizados em parceria com maestros de
renome, como Osvaldo Colarusso, David Machado, Jamil Maluf e Alceo Bocchino. Dentre
as inúmeras montagens que foram sucesso de público e crítica em diversas
temporadas em Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo destacam-se O refletor (1988), de J. A. Kaplan, Il Barbiere di Siviglia (1990, 1991 e
1992) e La Cenerentola (1997), de
Gioacchino Rossini; Tosca (1989, 1990
e 1994), La Bohème (1994 e 2005) e Gianni Schicchi (2005), de Giacomo Puccini; O chapéu de palha de Florença (1993, 2003
e 2007), de Nino Rota; A ópera dos três vinténs (1994), de
Bertolt Brecht; e Dom Casmurro (1992), ópera brasileira baseada no romance de
Machado de Assis, criada por Ronaldo Miranda.
A
preocupação com a renovação da parte cênica da ópera fez com que Marchioro se
aprofundasse em todas as artes envolvidas na mise-en-scène do espetáculo operístico para tentar alcançar um
equilíbrio entre a música e o texto da dramaturgia. Sempre engajado na procura
da mediação adequada para constituição da cena, rejeitou as abordagens
museulógicas e privilegiou o espaço da invenção, fazendo da pesquisa sua ordem
de trabalho.
Desde
1988, quando realizou seu primeiro trabalho operístico, a anti-ópera em três
quadros intitulada O refletor, do
argentino J. A. Kaplan, com libreto baseado em
Lux in Tenebris de Brecht, que teve sua estreia mundial no Teatro
Guaíra, em Curitiba, em 16 agosto, e no Teatro Dulcina do Rio de Janeiro, em 23
de agosto, seu depoimento “Vozes sob o refletor”, constante do programa do
espetáculo, já revelava sua paixão pelo gênero e sua preocupação com o aspecto
cênico:
E a vontade de dirigir uma ópera vinha me cobrando sempre
uma situação em que eu pudesse substituir o texto pela partitura, a fala pelo
compasso, acrescentar as notas às palavras. [...] Nossa ansiedade em relação ao
lado cênico da ópera, sempre foi uma inconformada sensação de que algo mais
pode ser feito no palco. Durante os ensaios tivemos sempre na cabeça a citação
de Fernando Peixoto (de 1986) de uma crítica de Ruggero Jacobbi (de 1952): ‘As
Traviatas continuam fazendo balançar as paredes de papel desbotado a cada
acesso de tosse, e o dragão de Siegfried continua cuspindo fogo e agitando a
cauda de papelão’. E nossa busca a cada minuto foi a de não fazer apenas um
recital lírico com os cantores usando figurinos, sepultados dentro de um
cenário. (MARCHIORO, 1988, p. 5-6).
Como
a partitura dessa ópera é rica em ironias, citações e referências a Beethoven,
Elgar, Bizet, Tchaikowsky, e até Kurt Weill, Marchioro, aproveitando esta linha
de composição, decidiu inserir uma balada de Brecht/Weill, “na forma de
‘intermezzo musical’, como um comentário pessoal ao tema abordado, numa ênfase
às teorias brechtianas e como uma declaração de paixão incontida à obra de Weill”
(MARCHIORO, 1988, p. 5). O encenador também menciona que o ambiente de
corrupção política e moral que permeia a ópera de Kaplan determinou sua opção
pela mudança espaço-temporal, visto que acredita na importância do diálogo entre
o momento histórico da criação da ópera e o contexto sócio-cultural da contemporaneidade.
Assim, ao pensar sobre a tradução cultural do libreto, elegeu a época da história do Brasil do
chamado “Mar de lama”, ou seja, o último mandato do governo de Getúlio Vargas,
colocando em questão, de forma crítica,
os valores éticos e morais da nossa sociedade.
Este artigo, cujas páginas
iniciais foram reproduzidas acima, com as notas de rodapé suprimidas, foi
publicado na coletânea de artigos, intitulada Penso teatro: dramaturgia, crítica e encenação. Orgs. André L.
Gomes e Diógenes A. V. Maciel. Vinhedo SP: Editora Horizonte, 2012, p.
50-64.
Nenhum comentário:
Postar um comentário