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segunda-feira, 23 de março de 2015

O régisseur como compositor de cena: Marcelo Marchioro repensa o espetáculo operístico



Profª. Anna Stegh Camati

A ópera, um gênero de teatro musical complexo nascido no século XVI, foi cultuado, principalmente pelas elites, desde a sua incepção até o final do século XIX, quando lotava as suntuosas salas de espetáculo dos edifícios teatrais. No início do século XX, com o advento do modernismo, as manifestações do gênero perderam muito de seu apelo, porém, com a crise da modernidade, o interesse por elas voltou a crescer, sendo que, na década de 1990, o gênero popularizou-se novamente com o lançamento de inúmeras gravações em VHS e, mais tarde em DVD, de encenações de espetáculos operísticos regidos por maestros de renome, além de adaptações fílmicas de óperas famosas. Já no século XXI, observa-se um renovado interesse por essa forma de arte – não apenas por parte de especialistas, acadêmicos, aficionados e mercado editorial, mas pelo público em geral que novamente começa a prestigiar as temporadas líricas.   
O presente artigo objetiva refletir a respeito das teorizações de Marcelo Marchioro sobre o aspecto cênico da ópera.  O régisseur paranaense tornou-se uma referência no cenário operístico, principalmente nos anos 1980 e 1990, não somente pelo seu expertise e criatividade na interação das mais diversas linguagens artísticas, mas também pelo seu discurso teórico-crítico sobre a modernização da mise-en-scène do gênero. Na tentativa de ampliar o espaço de discussão sobre montagens de óperas na contemporaneidade e construir perspectivas teóricas sobre a forma de pensar o espetáculo operístico, ele concedeu inúmeras entrevistas, fez pronunciamentos registrados em paratextos publicitários divulgados pela mídia, escreveu textos de apresentação em programas de espetáculos e publicou matérias em jornais.

A direção cênica do espetáculo operístico: as teorizações de Marcelo Marchioro

Situada na interface do teatro, música e artes visuais, a ópera se caracteriza por uma intrincada tessitura composta por diversas formas e linguagens artísticas subordinadas aos paradigmas e valores estéticos da criação musical. Cumpre ressaltar que as convicções individuais sobre a composição da cena operística variam de uma montagem para outra, visto que todo régisseur é, antes de tudo, um leitor que irá imprimir sua ótica particular ao espetáculo que será levado ao palco.
Dentre as diversas modalidades do gênero,  destacam-se a ópera séria, a bufa, a de câmara e a popular. Nessa última categoria pode ser enquadrada a ópera balada, termo criado por John Gay no século XVIII, quando lança uma espécie de versão paródica da ópera séria que intitula Ópera do mendigo. Durante sua longa carreira como régisseur, Marchioro debruçou-se sobre todas essas manifestações do gênero e suas teorizações a respeito surgem a partir de projetos operísticos realizados em parceria com maestros de renome, como Osvaldo Colarusso, David Machado, Jamil Maluf e Alceo Bocchino. Dentre as inúmeras montagens que foram sucesso de público e crítica em diversas temporadas em Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo destacam-se O refletor (1988), de J. A. Kaplan, Il Barbiere di Siviglia (1990, 1991 e 1992) e La Cenerentola (1997), de Gioacchino Rossini; Tosca (1989, 1990 e 1994), La Bohème (1994 e 2005) e Gianni Schicchi (2005), de Giacomo Puccini; O chapéu de palha de Florença (1993, 2003 e 2007), de Nino Rota; A ópera dos três vinténs (1994), de Bertolt Brecht; e Dom Casmurro (1992), ópera brasileira baseada no romance de Machado de Assis, criada por Ronaldo Miranda.
A preocupação com a renovação da parte cênica da ópera fez com que Marchioro se aprofundasse em todas as artes envolvidas na mise-en-scène do espetáculo operístico para tentar alcançar um equilíbrio entre a música e o texto da dramaturgia. Sempre engajado na procura da mediação adequada para constituição da cena, rejeitou as abordagens museulógicas e privilegiou o espaço da invenção, fazendo da pesquisa sua ordem de trabalho.
Desde 1988, quando realizou seu primeiro trabalho operístico, a anti-ópera em três quadros intitulada O refletor, do argentino J. A. Kaplan, com libreto baseado em  Lux in Tenebris de Brecht, que teve sua estreia mundial no Teatro Guaíra, em Curitiba, em 16 agosto, e no Teatro Dulcina do Rio de Janeiro, em 23 de agosto, seu depoimento “Vozes sob o refletor”, constante do programa do espetáculo, já revelava sua paixão pelo gênero e sua preocupação com o aspecto cênico:

E a vontade de dirigir uma ópera vinha me cobrando sempre uma situação em que eu pudesse substituir o texto pela partitura, a fala pelo compasso, acrescentar as notas às palavras. [...] Nossa ansiedade em relação ao lado cênico da ópera, sempre foi uma inconformada sensação de que algo mais pode ser feito no palco. Durante os ensaios tivemos sempre na cabeça a citação de Fernando Peixoto (de 1986) de uma crítica de Ruggero Jacobbi (de 1952): ‘As Traviatas continuam fazendo balançar as paredes de papel desbotado a cada acesso de tosse, e o dragão de Siegfried continua cuspindo fogo e agitando a cauda de papelão’. E nossa busca a cada minuto foi a de não fazer apenas um recital lírico com os cantores usando figurinos, sepultados dentro de um cenário. (MARCHIORO, 1988, p. 5-6). 

Como a partitura dessa ópera é rica em ironias, citações e referências a Beethoven, Elgar, Bizet, Tchaikowsky, e até Kurt Weill, Marchioro, aproveitando esta linha de composição, decidiu inserir uma balada de Brecht/Weill, “na forma de ‘intermezzo musical’, como um comentário pessoal ao tema abordado, numa ênfase às teorias brechtianas e como uma declaração de paixão incontida à obra de Weill” (MARCHIORO, 1988, p. 5). O encenador também menciona que o ambiente de corrupção política e moral que permeia a ópera de Kaplan determinou sua opção pela mudança espaço-temporal, visto que acredita na importância do diálogo entre o momento histórico da criação da ópera e o contexto sócio-cultural da contemporaneidade. Assim, ao pensar sobre a tradução cultural do libreto,  elegeu a época da história do Brasil do chamado “Mar de lama”, ou seja, o último mandato do governo de Getúlio Vargas, colocando em questão, de forma crítica,  os valores éticos e morais da nossa sociedade.

Este artigo, cujas páginas iniciais foram reproduzidas acima, com as notas de rodapé suprimidas, foi publicado na coletânea de artigos, intitulada Penso teatro: dramaturgia, crítica e encenação. Orgs. André L. Gomes e Diógenes A. V. Maciel. Vinhedo SP: Editora Horizonte, 2012, p. 50-64. 

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