Mail Marques de Azevedo[1]
Dirigindo-se ao público infanto-juvenil, no prefácio da coletânea Histórias fantásticas, da série “Para gostar de ler”, José Paulo Paes[2] ─ inesquecível mestre ─ traduz em linguagem adequada o que nos parece encapsular as discussões e divergências na definição do fantástico como gênero literário: a exploração da oposição entre o real e o fantástico e a surpresa do leitor diante de acontecimento ou acontecimentos estranhos. Acostumado aos poderes miraculosos das varinhas de condão, leitor nenhum manifesta surpresa na leitura de contos de fadas: é como se o maravilhoso fizesse parte do real. Já no conto fantástico, em nenhum momento o leitor perde a noção da realidade.
Por não perdê-la é que lhe causa surpresa o acontecimento ou acontecimentos estranhos, fora do comum ou aparentemente sobrenaturais que de repente parecem desmentir a solidez do mundo real até então descrito no conto. Nesse momento de surpresa e de perplexidade, está o próprio sal da literatura fantástica. (PAES, p. 7-8)[3]
Deriva daí a definição de Todorov para literatura fantástica como aquela que provoca no leitor hesitação entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para os fatos estranhos narrados. Se houver explicação natural para o fato estranho ─ descobre-se que o personagem está sonhando, ou sob o efeito do álcool ou de drogas, por exemplo ─ o leitor estará nos domínios do estranho; os contos de fadas, por sua vez, introduzem o leitor no reino do maravilhoso, onde bruxas, fadas e duendes fazem parte da expectativa do leitor.
Já William Irwin define fantasia como o “jogo do impossível”. Nos idos de 1984, quando defendi minha dissertação de mestrado, intitulada “The Real and the Fantastic Worlds in Kurt Vonnegut´s Slaughterhouse-Five, um verdadeiro mergulho no gênero, Irwin anunciava que “uma nova era de fantasia está para começar” o que se evidenciava pelo envolvimento cada vez maior com o fantástico de escritores ingleses e americanos tão diferenciados entre si como “John Barth, Iris Murdoch, Muriel Spark, William Burroughs, Kurt Vonnegut, Philip Roth, John Updike, Samuel Beckett, John Hawkes, James Purdy e Thomas Pynchon, entre outros.”[4]
Philip Roth, cujo nome está em destaque, faz observação acurada sobre as dificuldades do escritor dos anos 80 para representar ficcionalmente a realidade factual, já de si surpreendente, absurda e inverossímil.
O escritor americano em meados do século vinte tem em mãos a tarefa ingrata de tentar compreender, e depois descrever, e depois tornar acreditável muito da realidade americana. É uma realidade que nos causa estupefação, nojo, fúria e, finalmente, uma espécie de vergonha de nossa pobre imaginação incapaz. O factual continuamente supera nossos talentos, e a cultura lança quase diariamente números que fazem a inveja de qualquer romancista.[5]
Quase quatro décadas depois, a representação de uma realidade, cada vez mais inverossímil, continua a desafiar os escritores que vão buscar respostas na associação do canônico com a fantasia e, indo um passo além, com a cultura popular. Histórias de mundos mágicos e de seus habitantes vêm sendo exploradas por uma sucessão de autores ─ alçados instantaneamente à categoria de best-sellers ─ adaptadas de imediato para o cinema e, na sequência, transformadas em artefatos de cultura de massa: desenhos animados, quadrinhos, pulp fiction, remixagem de música popular, bem como camisetas, jogos, bonecos ou outras formas quaisquer produzidas pela indústria cultural. É o caso do fenômeno cultural criado por J.K. Rawlings, a série Harry Potter, cujas vendas atingiram o número impressionante de um bilhão de cópias desde a primeira publicação em 1997.
No contexto do século XXI, a influência avassaladora do cinema e da televisão sobre as novas gerações de escritores cobra seu preço. Exige-se do autor a decisão de aderir aos recursos da mídia audiovisual, a fim de atrair leitores, alimentados de imagens visuais e sonoras desde a primeira infância, ou a correr o risco da experimentação literária, pouco compensadora financeiramente. Vivemos a cultura do videoclip e nos curvamos às demandas do mercado de resultados imediatos: rápida renovação, sucesso efêmero, sensação imediata, pura estimulação. Neste cenário a literatura deve buscar alternativas, a fim de sobreviver. Como vimos, o escritor está dividido entre a necessidade de entreter para chegar mais próximo do público (o entretenimento é o objetivo profundo e irrefutável do mundo da mídia), e a tentação da experimentação literária (e, consequentemente, a opção de permanecer fora dele).
O objetivo do lucro preside igualmente às tentativas de editores de chegar ao grande público leitor, servindo-se dos mecanismos de outras mídias. “Convoca-se o popular para dialogar com o erudito, retrabalham-se os formatos mais difundidos pelos meios, para daí o escritor extrair um caldo equilibrado.[6]
Obras como Orgulho e preconceito e zumbis (2000), do americano Seth Grahame-Smith, são os modelos precursores ou, possivelmente, o modelo precursor da tendência. Diante da tarefa, proposta pela editora Quirk, de escrever um livro que respondesse à tendência de infração criativa dos jovens de hoje que, mais do que meros consumidores, detêm a tecnologia necessária para transformar e remixar as mais diversas mídias, Grahame-Smith transformou as heroínas de Jane Austen em impiedosas caçadoras de zumbis. O autor cumpriu a tarefa em apenas seis semanas, mas, mesmo assim, acertou na mosca, uma vez que Pride and Prejudice and Zombies[7] vendeu um milhão de cópias em poucos dias, enquanto a Quirk, uma editora obscura na época, tornou-se conhecida. Abraham Lincoln: caçador de vampiros, o segundo blockbuster do autor (2010), foi logo adaptado para o cinema (2012).
No Brasil, Dom Casmurro e os discos voadores (2010), de Lúcio Manfredi[8], escrito especialmente para a série Clássicos Fantásticos, da editora Lua de Papel/Leya, é um exemplo brasileiro da tendência atual de reescrever obras literárias canônicas como combinações de gêneros variados de literatura de massa ─ ficção científica, terror gótico, quadrinhos, e infindáveis combinações de tecnologia e gêneros de apelo popular: slipstream = ficção científica + fantasia + corrente central da prosa de ficção (mainstream); steampunk = ficção científica + máquinas a vapor (steam) + cenário do século dezenove.
Mais do que com a ficção científica, Lúcio Manfredi identifica-se com a literatura slipstream que combina o fantástico e o realismo, cruzando as fronteiras entre os gêneros. Dom Casmurro e os discos voadores é “quase uma materialização do ideal slipstream”, informa em entrevista a Paula Dume[9]. Não considera adequada, porém, a denominação steampunk, para definir seu romance, apesar do cenário do século dezenove e das naves espaciais anacrônicas. O foco principal de seu trabalho continua a ser a relação entre Bentinho e Capitu. Manter a mente aberta, afirma, permite uma leitura mais rica e compensadora do texto.
São recorrentes no romance os indícios de que existe algo de estranho no mundo descrito por Bentinho, especialmente em sua amada Capitu. O episódio da inscrição dos nomes, Bento e Capitu, no muro que divide as duas casas, adquire contornos misteriosos, já nos capítulos iniciais. A Capitu de Manfredi anda sempre a traçar hieróglifos, ”figuras abstratas, círculos e espirais [...] figuras geométricas, quadriculados e reticulados; [..] triângulos para cima e triângulos para baixo” (MANFREDI, 2010, p. 35). Mas, desta vez as figuras estranhas circundavam os nomes dos enamorados. O adolescente de quatorze anos responde com um sorriso “abobado”, invadido pela emoção que faz tremer suas pernas, mas a voz de Dom Casmurro, o narrador cético, interpõe-se, cheia de suspeita:
Depois de muito refletir, eu me pergunto se aqueles símbolos não são a causa secreta que contribuiu para elevar meus sentimentos por Capitu a alturas inimagináveis para os meus quatorze anos. Por mais bela que fosse a aparência de Capitu, por mais cuidadosamente planejada para ser bela, certamente não seria o suficiente para explicar tamanha obsessão, seria? (MANFREDI, 2010, p. 35-36)
Manfredi utiliza-se da contraposição da perspectiva ingênua de Bentinho ao amargor pessimista do narrador Dom Casmurro, como prolepse do sobrenatural: “─ E um punhado de símbolos rabiscados na parede por acaso explica? ─ perguntará o leitor, compreensivelmente cético” (p. 36). Na concepção de Eric Rabkin[10], o fantástico é uma qualidade proveniente de reversões de expectativas, que pode ser reconhecida mediante observação de certos sinais: a) reação de personagens; b) afirmativas de narradores; c) sinais do autor implícito. A ênfase na palavra planejadas, como sinal do autor implícito, indica a terceira condição para o reconhecimento do fantástico no texto de Manfredi. O autor cruza diversas fronteiras ao transitar livremente entre o realismo de Dom Casmurro e formas particulares da ficção científica no século da tecnologia.
Lúcio Manfredi admite ter sentido dificuldade para tentar manter o tom único da narrativa de Machado, estabelecido pelas peculiaridades de seu narrador não confiável, que se mostra ironicamente distante, profundamente sarcástico, ou, então, emocionalmente desequilibrado. Tudo isso, evidentemente, subordinado à sua própria perspectiva no romance. Observamos que o resultado da transposição intramidiática de um texto do nosso irretocável Machado para um mashup de gêneros, ainda não definido, tem resultados surpreendentes (em consonância com os efeitos do fantástico). Lúcio Manfredi consegue tornar seu personagem-narrador coerente por seus próprios méritos e o texto de Dom Casmurro e os discos voadores agradável à leitura.
[1]
Mail Marques de Azevedo é Professora do Mestrado em Teoria Literária do Centro
Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE, em Curitiba.
[2]
PAES, J.P. (Org.) Histórias fantásticas.
São Paulo: Ática, 2008.
[3]
PAES, J.P. (Org.) Histórias fantásticas.
São Paulo: Ática, 2008.
[4] IRWIN, W. The game of the impossible. Urbana: Un.of Illinois Press, 1976. p
185-186
[5] ROTH,P. Writing American Fiction.
In: KLEIN, M. (ed.) The American Novel
Since World War II. Greenwich: Fawcett, 1969. P. 144
[6]
SÁ, S. A reinvenção do escritor. Literatura
e mass media. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 31.
[7] AUSTEN, J. &
GRAHAME-SMITH, S. Pride and Prejudice and
Zombies. Philadelphia, Quirk Books, 2009.
[8] MANFREDI, L. Dom Casmurro e os discos voadores. São
Paulo: Lua de Papel, 2012.
[9] DUME, P. Dom Casmurro e os discos
voadores recria clássico em forma de ficção científica, 2012. Disponível
em: www1.folha.uol.com.br/ Acesso em 11 de fevereiro
de 2013.
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