Verônica
Daniel Kobs*
O Cangaço, em nossa
História, tem função fundamentalmente social. Movimento de lutas, o “exército
informal” de Lampião tinha vestimenta específica: “Certa
vez Lampião chegou em uma cidade sergipana, entrou em um armazém e aceitou a
proposta do dono do local para pesar toda a roupa e equipamentos que ele tinha
pelo corpo. Chegou a quase 30 quilos, isto que ele tirou o fuzil e os depósitos
[cantis] de água” (MELLO[1],
citado em MILAN, 2014). Inúmeras são as referências dos críticos e
historiadores ao fato de a roupa dos cangaceiros servir como espécie de farda
ou armadura, o que enfatiza a importância da vestimenta como artefato bélico.
Consequentemente, é possível ampliar a valorização dos cangaceiros, que não
apenas lutavam e combatiam. Mais do que isso, eles eram protagonistas de duelos
ritualísticos, nos quais a roupa era um acessório essencial e de importância
estratégica.
São vários os estudos que,
partindo da indumentária típica do Cangaço, associam os cangaceiros aos
cavaleiros da Idade Média e até aos samurais. Sem dúvida, a comparação
baseia-se nas batalhas incessantes e sangrentas e ao espírito guerreiro dos
combatentes. Entretanto, muito além do aspecto bélico, está o social, que
reforça a relação do Cangaço com os movimentos insurgentes (Canudos,
Contestado, Balaiada...). E é exatamente nesse ponto que o movimento
protagonizado por Lampião se amplia e se torna sinônimo de “luta social”. O
movimento exigia que o povo tivesse vez e voz, em consonância aos ideais do
Modernismo, os quais, naquela época, repercutiram na Literatura, nas Artes
Plásticas e também no Cinema (nesse caso, pelo projeto ainda embrionário e que,
mais tarde, daria início ao Cinema Novo).
Glauber Rocha, precursor do
Cinema Novo, em Estética
da fome, escreveu sobre os famintos e, nas palavras do
artista, ecoaram as ideologias do Marxismo e também do Cangaço:
A fome latina, por isto, não é somente
um sistema alarmante: é o nervo da sua própria sociedade. Aí que reside a
trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo
sentida, não é compreendida.
(De Aruanda a Vida Secas, o Cinema Novo
narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome:
personagens comendo terra, personagens matando para comer, personagens fugindo
para comer, personagens sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que
identificou o Cinema Novo com o miserabilismo hoje tão condenado pelo Governo do
Estado da Guanabara, (...).). (ROCHA, 2014)
É intrínseca a relação do texto de Glauber Rocha com a ideologia revolucionária. Porém, as semelhanças vão muito mais além, porque associam a fome dos marginalizados à violência:
(...) o comportamento exato de um faminto
é a violência e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é
primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?
(...) uma estética da violência antes de
ser primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador
compreenda a existência do colonizado: somente conscientizada sua possibilidade
única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo o horror, a força da cultura
que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi
preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.
O amor que esta violência encerra é tão
brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação,
mas um amor de ação e transformação. (ROCHA, 2014)
De acordo com o cineasta, a violência é necessária,
assim como é, também, proporcional à injustiça e à exclusão que a originaram.
Para muitos, tal princípio é pessimista e desumano. No entanto, considerando a
História, as características inerentes à humanidade e também a divisão de
classes, as palavras de Glauber Rocha servem apenas como constatação e é nesse
sentido que o Cangaço pode ser considerado um movimento de luta pela
transformação.
Sem
dúvida, essa leitura não é a mesma que foi repercutida pelo discurso hegemônico
e “oficial”, ao longo das décadas. A marginalização e a injustiça, que levaram
muitas pessoas a buscarem no Cangaço um modo ilegítimo e paralelo de luta e
transformação, foram ocultadas pelos fatos que a mídia enfatizava, na época de
Lampião: invasões, saques, estupros e castrações (no melhor estilo maniqueísta,
em que os cangaceiros representavam o Mal e o Governo e os militares
representavam o Bem). Quase um século depois, essa concepção é confrontada e o
Cangaço é lembrado e reverenciado pelo povo, que se identifica com várias
coisas que verdadeiramente fizeram parte da formação ideológica de muitos
cangaceiros, dos quais Lampião foi um dos mais célebres, e do movimento do
Cangaço como um todo. E, nessa retomada, o traje típico do Cangaço foi
escolhido para representar o valor daqueles que participaram ativamente do
movimento:
Esses artefatos
– chapéu de couro e punhal –, enriquecidos por outros como embornais,
cartucheiras, coldres, perneiras, cantis, luvas e alpercatas impõem-se como imagens
de uma arte de síntese que refletem o orgulho de ser sertanejo, isto é,
habitante dos sertões. As cartucheiras carregavam a munição, os coldres
permitiam levar as pistolas a tiracolo, os cantis garantiam a água para a
sobrevivência, os embornais levavam víveres, remédios, ferramentas; quanto às
luvas, perneiras e alpercatas protegiam o corpo dos espinhos e garantiam a
sobrevivência na caatinga. (SILVA, 2014)
Evidente que, em tantas
batalhas, apenas tenacidade, patriotismo, força física e uma boa dose de
estratégia (visível pela autossuficiência que o traje permitia, por reunir tudo
o que era necessário para os confrontos) ajudavam. Mas não bastavam. Era
preciso também buscar a proteção que a religiosidade e o misticismo podiam
oferecer: “Os amuletos da sorte dos cangaceiros têm origem na antiguidade (...).
Alguns chegavam a ter o signo de Salomão por todo o corpo. Ele é uma estrela de
seis pontas – símbolo de Israel – e significa proteção. (...). Normalmente os
cangaceiros (...) adotaram as estrelas de quatro, seis ou oito pontas.” (MILAN,
2014). Na literatura, há inúmeras referências ao poder de proteção da estrela
de oito pontas, que “simboliza os mil raios da macambira,
essa bromélia temível, com espinhos de ida e volta nas hastes longas de ouriço,
uma aliada imemorial contra todo invasor” (SILVA, 2014). Por mais poderosos que
fossem, os amuletos nunca pareciam ser suficientes[2].
Eram muitos os que faziam parte da crença mística dos cangaceiros e, de certa
forma, se aliavam à devoção religiosa, representada pela figura de Padre
Cícero.
O elemento mais
referenciado e icônico do Cangaço é o chapéu, que reúne os símbolos “mágicos” e
elucidadores (até certo ponto) do movimento:
O chapéu meia-lua de couro, com
uma estrela no meio, lançado por Virgulino, hoje é o símbolo do nordeste
brasileiro. O chapéu, que tem a aba virada naturalmente para cima quando se
cavalga, durante o período do cangaço, serviu de suporte de arte (na aba iam
alguns enfeites) e também de alerta: nenhum cangaceiro poderia correr o risco
de ser surpreendido em uma emboscada, por isso não poderia andar com a aba
abaixada escondendo os olhos. (MILAN, 2014)
Lampião, em traje e chapéu típicos, representativos do
Cangaço.
Foto tirada por B. Abrahão. (MILAN, 2014)
Com
base nas imagens e na passagem transcrita acima, justifica-se a função
simbólica e emblemática do chapéu de Lampião.
Ele apresenta (e representa) o Cangaço, nos mais diversos aspectos:
cultural, histórico, político, religioso e ideológico. Além disso, ele sinaliza
o estado de alerta (para não se deixar surpreender) e também a coragem (para ver
o inimigo sempre de frente). E ambos ajudam a garantir a sobrevivência.
Referências:
MARX,
K.; ENGELS, F. Manifesto comunista.
Disponível em: <http://vermelho.org.br/img/obras/manifesto_
comunista.asp>.
Acesso em: 13 jun. 2008.
MILAN, P. A
moda de Lampião. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.
phtml?id=1033232>. Acesso em: 27 mai.
2014.
ROCHA, G. Uma estética da fome. Disponível em: <http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_gg_cine
novo.php>.
Acesso em: 15 abr. 2014.
SILVA,
E. Q. R. e. Entre o chapéu estrelado e o
punhal: o imaginário do cangaço em terras brasileiras. Disponível
em: <file:///C:/Documents%20and%20Settings/Administrador/Meus%20documentos/Downloads/10
6-365-2-PB.pdf>.
Acesso em: 27 mai. 2014.
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Professora das disciplinas de Imagem e
Literatura e Literatura e Estudos
Culturais no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa nos Cursos de Letras
da FAE e da FACEL.
[2] Vários textos
mencionam também a importância de outros três símbolos: a flor-de-lis, símbolo de pureza;
a cruz de malta e a cruz “oito contínuo deitado”. (Cf. MILAN, 2014)
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