Verônica Daniel Kobs*
Lançado
em 2013, o filme Meu namorado é um zumbi,
dirigido por Jonathan Levine, oferece nova perspectiva sobre o apocalipse
zumbi, sobre a sociedade atual e sobre a humanidade. A história se passa principalmente
em um aeroporto, cenário que privilegia características e conceitos
fundamentais, quando o assunto é globalização. Segundo Stuart Hall (2001), o
aeroporto é um “espaço neutro”, um não-lugar, que privilegia o trânsito, o
híbrido e a dissolução das fronteiras. E é justamente nesse espaço de
inter-relações que os conflitos, no filme de Levine, estabelecem-se entre três
grupos: humanos, zumbis e esqueléticos. Além disso, o aeroporto, por ser
localizado em região afastada do centro, facilita a divisão da cidade por um
muro que separa os zumbis e esqueléticos dos humanos. Enquanto as pessoas permanecem
no centro, as criaturas que as ameaçam ficam nas regiões mais distantes.
Inicialmente, como
costuma ocorrer em todas as histórias de zumbis, o conflito mostra os humanos
sendo perseguidos, atacados e às vezes devorados pelos zumbis. Seguindo o
protocolo, o filme dá ênfase aos zumbis como oponentes dos vivos e à condição
monstruosa (hipnótica e violenta) dessas criaturas. Entretanto, o zumbi
protagonista se apaixona por uma de suas vítimas, uma garota que ele persegue,
após comer o cérebro do namorado dela. A partir desse momento, ele passa a
protegê-la e a monstruosidade zumbi passa a ser relativizada. Isso ganha maior
intensidade quando os esqueléticos são apresentados na história: eles são um
tipo mais desenvolvido de zumbis, que têm ímpetos mais violentos e aparência
mais aterradora, diferenciando-se muito dos humanos. Em resumo, os esqueléticos
são os zumbis que “desistiram” (MEU NAMORADO, 2013) e escolheram a morte em vez
da vida. Os zumbis se opõem a eles porque ainda não sucumbiram à morte, de
fato. Em razão disso, são mortos-vivos, literalmente, condição que os permite
transitar pelos dois mundos e apresentar características relacionadas tanto à vida
quanto à morte.
Ao se apaixonar pela
garota, o protagonista ultrapassa a fronteira e dá um passo em direção à vida,
aproximando-se mais dos humanos e distanciando-se dos esqueléticos. O amor faz
com que ele substitua o instinto de devorar pelo desejo de proteger. Aliado a
isso, em vez de simples grunhidos, ele tenta articular algumas poucas palavras,
mesmo com dificuldades e muitas pausas. Do mesmo modo, a capacidade de sonhar
(que ele havia perdido, quando foi transformado em zumbi) retorna, por meio de flashes das lembranças do ex-namorado da
garota, como se, depois de devorar o cérebro da vítima, o zumbi pudesse se apropriar
não apenas da parte física (miolos), mas também da psicológica (emoções e
lembranças).
Cena em que a garota percebe o lado “humano” do
zumbi protagonista, após compará-lo com um zumbi tradicional, dos clássicos
filmes de terror.
Imagem
disponível em: http://www.drinknplay.com/wp-content/uploads/2013/02/MNEUZ-capa.jpg
Esse processo de
humanização do protagonista, no entanto, é interrompido pelos outros zumbis,
que reagem negativamente, quando descobrem a garota e o namoro, mas logo são
levados a perceber que o amor é uma espécie de antídoto para a condição deles. Depois
disso, enquanto eles buscam suas vidas de volta, tentando se humanizar
novamente, os esqueléticos buscam a morte e, por isso, tentam garantir que a
garota também se transforme em zumbi. Só assim haveria novas criaturas como
eles, no futuro. Mas a escolha entre vida e morte não depende dos esqueléticos.
Os zumbis querem viver, escolhem aceitar a garota e essa decisão devolve a
eles, aos poucos, as qualidades humanas que eles há tempos não experimentavam:
o sono, a saudade e a capacidade de sonhar.
O próximo passo para a
mudança é dado pelos humanos. Na hora do confronto final, em que ambos os lados
deveriam lutar para exterminar o inimigo, a garota consegue provar que as
criaturas podem se regenerar. Humanos e zumbis se unem e conseguem “exumar o
mundo” (MEU NAMORADO, 2013), no sentido literal de “tirá-lo da sepultura”
(EXUMAR, s. n.), para metaforicamente trazê-lo novamente à vida. Diante disso,
os esqueléticos são extintos e o muro, que antes separava humanos e zumbis, é
derrubado. Além disso, os zumbis voltam à vida, com sequelas, mas que podem ser
revertidas com o tempo e com a ajuda dos humanos.
Quinze anos depois da
virada do século e do atentado terrorista às torres gêmeas, em Nova Iorque,
fato que, de acordo com vários estudiosos, desencadeou a retomada do gótico,
dos zumbis e de outras criaturas relacionadas às narrativas de horror, Meu namorado é um zumbi nega o
extermínio, diz não à luta e faz uma contundente conclamação ao amor e à união.
Nesse sentido, ele se aproxima do ideal de outro filme recente: Todo mundo quase morto (2014). Porém, o
longa de Jonathan Levine corre o risco de passar despercebido para aqueles
espectadores acostumados às produções mais típicas do gênero, pois nele não há aquela
sucessão de conflitos, nem as cenas de extermínio que fazem de The walking dead uma das séries mais
vistas de todos os tempos. Além disso, o muro, que isola e opõe grupos e até
cidades inteiras na maioria das produções contemporâneas, a exemplo de Under the dome, Wayward Pines, Once upon a
time, Colony e da série Divergente, é destruído ao final.
O fato é que essas
diferenças não são aleatórias e justamente por isso devem ser enfatizadas. Essa
nova perspectiva que o filme Meu namorado
é um zumbi oferece nos obriga a contrariar pressupostos de autores
importantes, como Bauman, por exemplo, que, a respeito da influência da
globalização na sociedade contemporânea, chega a afirmar: “A globalização
parece ter mais sucesso em aumentar o vigor da inimizade e da luta intercomunal
do que em promover a coexistência pacífica das comunidades” (BAUMAN, 2001, p.
219). No filme de Levine não é isso que ocorre, já que humanos e zumbis
descobrem um modo de conviver pacificamente. Essa visão, otimista e nostálgica,
tanto do mundo quanto da humanidade, inverte a competição e o individualismo
que Bauman enfatiza em seus textos. Sendo assim, no longa, a alteridade adquire
um aspecto positivo: o outro deixa de ser ameaça e passa a ser o único modo de
garantir que o mundo se restabeleça.
Muitos autores mencionam,
hoje, a importância dos zumbis como um “vazio simbólico” (LEVERETTE, 2008;
MOREMAN; RUSHTON, 2011). O diretor Jonathan Levine reconhece esse vazio, mas
propõe preenchê-lo de outro modo, exaltando o amor e a união entre as pessoas e
contradizendo a tese mais difundida sobre o vírus zumbi, segundo a qual os
mortos-vivos resultam de uma espécie de mutação e evolução do vírus da raiva
(NATIONAL GEOGRAPHIC, 2014). O filme, então, não apenas rejeita a lógica
interna das narrativas que se inserem no novo gótico. Ele a ironiza,
redimensiona a relação entre humanos e zumbis e assim consegue reverter os
efeitos do apocalipse.
O zumbi protagonista e a namorada: juntos contra os
esqueléticos e pela paz entre humanos e zumbis
Imagem
disponível em: http://images.legiaodosherois.com.br/w_750,h_1200/wp-content/uploads/2015/10/8ea0a8c9f57b84ab1ae7c555bb94c98e.jpg
Meu
namorado é um zumbi não perpetua os estereótipos que se
acumulam a cada representação do dia do Juízo Final. No filme, não há sinais do
tão anunciado “fim dos tempos”. Diante disso, as questões inevitáveis são: Do
que se trata então? Foi o mundo que mudou? Ou fomos nós, que desejamos mudar as
coisas, após termos percebido que passamos a encarar o outro como simples
inimigo, que deve ser morto, para que possamos sobreviver? Seja qual for a resposta,
o dia Z se aproxima, mas existe salvação: “E ouvi uma grande voz do céu, que dizia:
Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles
serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles (...); e não haverá mais
morte, nem pranto, nem clamor, nem dor (...)” (Apocalipse 21. 3, 4).
Referências:
BAUMAN,
Z. Modernidade líquida. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BÍBLIA.
Português. O novo testamento de Nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo. Edição revista e corrigida. Curitiba: Os
gideões internacionais, 1983.
EXUMAR.
In: HOLANDA, A. B. de. Novo
Aurélio Século XXI. Nova Fronteira, [s. l.: s. n.]. 1 CD-ROM.
HALL,
S. A identidade cultural na
pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LEVERETTE, M. et al. Zombie culture: autopsies of the living dead. Plymouth: Scarecrow Press, 2008.
MEU
NAMORADO é um zumbi. Direção de Jonathan Levine. EUA: Make Movies, Mandeville Films e Summit Entertainment; Paris Filmes, 2013. 1 dvd (97 min); son.
MOREMAN, C. M.;
RUSHTON, C. J. (Eds.). Zombies are us: essays on the humanity of the Walking Dead. Jefferson:
McFarland & Company, 2011.
NATIONAL GEOGRAPHIC. A verdade
sobre os zumbis. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=
-wDIgAuDw18>.
Acesso em: 22 ago. 2014.
* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Teoria e Estudos Literários, no Mestrado
em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia
no Curso de Graduação de Letras da FAE.
Nenhum comentário:
Postar um comentário