*Prof. Otto Leopoldo Winck
Na
periferia do capitalismo, ourivesaria e paroxismo
Em 1880 o Brasil era uma monarquia (a única na América
Latina), escravagista (a última nação do continente a alforriar os escravos),
com uma população, basicamente rural, de cerca de dez milhões de habitantes. O
romantismo, dominante até algumas décadas atrás, agonizava, acossado por uma
poesia que se pretendia científica, socialistas e realista. Uma geração depois,
em 1920, o país já contava com uma população de 30 milhões, era uma república
consolidada, não obstante instável. A industrialização, ainda que incipiente, ao
lado de uma nova burguesia, produzia os primeiros proletários. Na elite dirigente,
reinava o positivismo, o qual, de doutrina que pretendia combater a ignorância
e a superstição, transplantado para os trópicos, assumia curiosos ares de culto
religioso. Ao mesmo tempo, os imigrantes europeus traziam para cá as novas ideias
do anarquismo e do marxismo. Na literatura, realismo, naturalismo,
parnasianismo e simbolismo, muitas vezes imbricados e sem mais a pujança
inicial, já ostentavam um rol considerável de realizações, enquanto aquilo que
viria a ser conhecido como modernismo ainda não dera o ar da sua graça, como o
faria de maneira ruidosa em 1922, na Semana de Arte Moderna – curiosamente no
mesmo ano da fundação do Partido Comunista. A imigração mudara profundamente o
perfil da demografia brasileira, “branqueando a raça”, enquanto os ex-escravos
e seus descendentes, preteridos como mão-de-obra assalariada, engrossavam os
cortiços nos morros e nos subúrbios das grandes cidades que pontuavam num país
de feições ainda agrárias. Com efeito, não obstante algumas mudanças políticas
e econômicas, o Brasil continuava um país de inserção subalterna no capitalismo
global, pagando um pesado óbolo por sua herança colonial. O Rio de Janeiro
exemplificava de maneira sintomática essas contradições. No começo do século a
capital federal, inspirando-se na reurbanização de Paris, passava por uma
profunda reforma, com a abertura de amplas avenidas, túneis e uma maquiagem no
antigo centro. Os ambientes saneados e urbanizados, nos quais são combatidos os
focos de epidemias como a febre amarela e a varíola, contrastavam com os morros
e áreas periféricas, para onde era impelida a população pobre residente na
região central. Com essa situação, crescia a delinquência, aumentando o número
de delitos de toda ordem. Ao mesmo tempo, nas livrarias e cafés das áreas nobres,
agitava-se toda uma fauna de boêmios e literatos, do sofisticado João do Rio ao
marginal Lima Barreto. É a Belle Époque
carioca, cenário onde circulava a alegre intelligentsia
tupiniquim, antes da irrupção, por conta do modernismo, de uma nova geração de
artistas e intelectuais baseados em São Paulo. Na poesia desse período, dois
poetas podem ser convocados para exemplificar o espírito da época: o parnasiano
Olavo Bilac e o “simbolista” Augusto dos Anjos.
O
Príncipe dos Poetas
Juntamente
com Alberto de Oliveira (1857-1937) e Raimundo Correa (1859-1911), Olavo Brás
Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), cujo nome já é um alexandrino
perfeito, forma a famosa “trindade parnasiana”. Nascido como reação aos
excessos da subjetividade romântica e ao seu famigerado desleixo formal, o
parnasianismo chega ao Brasil por influxo direto de seu similar francês. O vate
se transforma em joalheiro, o vidente em ourives. Em vez da inspiração, o
lavor; no lugar do sestro, a perícia técnica. O modelo ideal são as artes
visuais, em especial a escultura. O culto da forma, não raro confundido com fôrma (como disse Manuel Bandeira), a
arte pela arte, a impassibilidade são erigidas em virtude, como no ideal
clássico, e toda a temática da Antiguidade volta à tona, com sua carga
alienígena de deuses e heróis greco-romanos. Num país de não-leitores, os
poetas parnasianos alcançam invejável glória, sobretudo a supracitada trindade,
da qual destaca-se, em evidente primazia, o primeiro príncipe dos poetas
brasileiros, Olavo Bilac.
Jornalista,
polígrafo, inspetor de ensino, Bilac talvez seja o representante mais típico de
nossos triunfantes literatos da Belle
Époque – sem dúvida o poeta mais popular de sua época. Contrariando o
conselho que deu em “A um poeta”, não fugiu “do estéril turbilhão da rua”, mas
antes envolveu-se em intensa atividade política: defendeu a Abolição e a
República, engajou-se na oposição a Floriano Peixoto, na campanha pelas
reformas urbanas, na defesa da instrução primária, e, no fim da vida, na propaganda
pelo serviço militar.
Já
no intróito de seu livro de estreia, Poesias
(1988), o poema “Profissão de fé” é um exemplo do ideário parnasiano,
felizmente nem sempre seguido à risca pelo poeta: “Torce, aprimora, alteia,
lima / A frase; e, enfim, / No verso de ouro engasta a rima, / Como um rubim.” Das
três partes constitutivas do livro, a primeira é a que mais se identifica com o
ideal parnasiano – na escolha dos temas, na ênfase descritivista, no caprichado
refinamento, na chave de ouro dos sonetos. Sobretudo, é na segunda parte, Via Láctea, que se revela outro veio do
poeta, o que o salva dos excessos da rigidez da escola. Aí se percebe a
influência do lirismo da matriz portuguesa, sobretudo Bocage, e um sensualismo
de inspiração epicurista. Mas é sobretudo no livro Tarde, publicado postumamente em 1919, que esse lirismo logra ás
vezes libertar-se da camisa de força parnasiana e, envolto num doce clima
crepuscular, atingir alguns altos vôos poéticos.
Devido
a tendência parricida das novas gerações, Olavo Bilac foi um dos alvos
preferenciais dos modernistas, o que turvou durante muito tempo sua correta
apreciação pela crítica. Todavia, nos últimos decênios, sua obra vem sendo aos
poucos revalorizada, não apenas seus poemas “oficiais” como também sua
atividade na imprensa, sobretudo as crônicas e os poemas de circunstância.
Poesia
agônica
Se
Olavo Bilac, salvo em alguns momentos, é um representante típico do
parnasianismo, o mesmo não se pode falar de Augusto dos Anjos (1884-1914) com
respeito ao simbolismo. É claro que não é apenas sob o ponto de vista
cronológico que o poeta paraibano é aproximado ao simbolismo, pois este não é
tanto posterior ao parnasianismo como muitas vezes concomitante a ele. Entre Augusto
dos Anjos e a escola do Símbolo, não apenas alguns temas mas a sensibilidade os
aproxima. No entanto, se o simbolismo, ao contrário da visualidade do
parnasianismo, preferiu o encantamento da música, esta soa de modo estridente e
dissonante em Augusto dos Anjos. Ao contrário da surdina verlaineana de um Alphonsus
de Guimaraens, os acordes do autor de Eu,
lançado em 1912, causam
estranheza por sua aguda dissonância. Todavia, junto ao poeta de Mariana e Cruz
e Souza, uma vocação para a marginalidade e para a melancolia os une. Ademais,
ao contrário dos aplausos da trindade parnasiana, esta tríade “simbolista” não
conheceu a fama, não gozou de prestígio literário. Contudo, ainda que membro
inconteste desse trio, só podemos denominar Augusto dos Anjos como simbolista
com aspas de protesto. Ao contrário dos outros, nele não encontramos a fuga
para a Torre de Marfim do Parnaso ou do Símbolo, mas sim um amargo mergulho na
sordidez da realidade, com fortes cores escatológicas. Em vez do evanescente, a
dura materialidade expressa não raro com “antipoéticos” termos científicos. Em
vez do sonho, o pesadelo do prosaico. Em vista dessas particularidades, alguns
críticos denominam Augusto dos Anjos como pós-simbolista, outros, como Ferreira
Gullar, como pré-moderno, embora esses termos nos pareçam demasiado imprecisos.
Há ainda quem vislumbre nele traços expressionistas, aproximando-o ao poeta
alemão Trakl. De toda forma, Augusto dos Anjos pertence a esta geração na qual
o simbolismo, em todas as suas vertentes, preparou o terreno para a irrupção da
poesia moderna.
Ao
contrário de Bilac, célebre em vida e atacado depois de morto, Augusto dos
Anjos, que em vida não encontrou mais que ostracismo, conquistou uma grande
popularidade póstuma. Seu livro, o único publicado em vida, vem recebendo
seguidas reedições, superando em muito o número de leitores do colega
parnasiano.
Referências
bibliográficas
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
BILAC, Olavo. Poesias: Panóplias, Via-Láctea, Sarças
de fogo, Alma inquieta, As viagens, o caçador de esmeraldas, tarde. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1985.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.
41 ed. São Paulo: Cultrix, 1998.
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio
de janeiro: G. Ermakoff, 2007.
CANDIDO,
Antônio. Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos. 5. ed. São Paulo: USP/Itatiaia, 1975.
GIL, Fernando Cerisara. Do encantamento à apostasia: a poesia
brasileira de 1880-1919. Curitiba: Editora UFPR, 2006.
HELENA, Lúcia. A cosmo-gonia de Augusto dos Anjos. Rio
de janeiro: Tempo brasileiro, 1977.
SIMÕES JUNIOR, Álvaro
santos. A sátira do parnaso: estudo
da poesia satírica de Olavo Bilac de 1984 a 1904. São Paulo: Editora UNESP,
2007.
*Professor no Curso de Mestrado
em Teoria Literária da UNIANDRADE