Pesquisar este blog

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O LAMPIÃO DE FERNANDO VILELA: NEM HERÓI, NEM FACÍNORA... DEMASIADAMENTE HUMANO.



*Luiz Zanotti


No meu artigo “O Lampião de Fernando Vilela: nem herói, nem facínora... Demasiadamente humano” busco analisar a personagem Lampião no romance gráfico Lampião e Lancelote (2007), de Fernando Vilela com enfoque em sua ambivalência.  Lampião, uma das personagens mais retratada pelas artes brasileiras, geralmente é caracterizado ou como um herói ou como um facínora, ou seja, enquanto para alguns autores, o cangaceiro é apresentado somente através de seu lado positivo de um revolucionário em luta contra o coronelato, para outros, o seu lado negativo de um bandido sanguinário é ressaltado. 

Estas duas abordagens fazem como que a personagem se torne antinômica e perca toda possibilidade de uma análise multi-interpretativa. Esta escolha se aproxima de uma visão cartesiana, onde se procura encontrar a verdade atrás de uma certa aparência.

Dentro desta abordagem dicotômica, que como veremos, Vilela vai desfazer durante o desenrolar da trama, verificamos a capa de Lampião e Lancelote (vide figura 1) já indicando uma contraposição entre a predominância da cor prateada para Lancelote e a paisagem medieval inglesa, e a cor dourada para Lampião e o sertão nordestino.

FIGURA 1
Imagem disponível em
<https://www.google.com.br/search?q=livro+lancelote+e+lampi%C3%A3o&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwi1uJq1gObTAhUED5AKHTbuD9MQ_AUICigB&biw=13
66&bih=662>


Neste sentido, Lancelote, apesar de guerreiro, possui traços de pureza, pois a cor prata para o pesquisador Ad de Vries significa a pureza, a inocência, uma consciência pura, como pode ser verificado, na utilização do cálice de prata nas cerimônias religiosas, ela também representa a sabedoria (a língua do justo tem a cor prateada). Em contraposição temos o dourado de Lampião iconicamente ligado ao elemento fogo, que segundo Gaston Bachelard (1999), possui uma caráter duplo, mas sempre violento, seja no amor, seja no ódio e na vingança. “Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno.” (BACHELARD, 1999, p.12).

Esta dicotomia simbolicamente representada pela cores traz como ponto de partida a Inglaterra (na época Bretanha) medieval, prateada, sábia e sombria governada pelo Rei Artur, como contraponto a um sertão dourado, escaldado pelo sol, pela violência, pelo sangue e pela ausência de lei. Neste panorama, Lancelote vai cavalgando pelas terras da Bretanha quando se abre um inesperado portal do tempo remetendo-o ao sertão nordestino. Neste novo espaço, o cavaleiro vai em frente até o momento em que se defronta com Lampião (Figura 2). Este encontro se dá primeiramente pela mistura das cores prata e ouro. Lampião ao avistar o cavaleiro, em meio ao calor nordestino, ordena-o a parar, iniciando um diálogo dominado por insultos mútuos.
   


1366&bih=662>
Num contexto, tanto medieval, quanto sertanejo, onde a honra é a qualidade mais importante para um homem, a disputa verbal entre os dois cavaleiros, como não podia deixar de ser, acaba por se definir pela declaração de guerra, com Lampião formando seu exército com seus cangaceiros, enquanto Lancelote chama todos os cavaleiros do Rei Arthur e até mesmo o mágico Merlin para formar seu bando prateado.

 Os bandos que num primeiro momento estão separados entram numa luta feroz que termina através de uma mistura entre o sertão e a Era Medieval (Figura 3), com Lampião numa armadura maior que ele, e Lancelote com os trajes de Lampião. A seguir, Lampião pega a sanfona e começa a tocar um xaxado em homenagem a Lancelote



FIGURA 3
Imagem disponível em
<
https://www.google.com.br/search?q=livro+lancelote+e+lampi%C3%A3o&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwi1uJq1gObTAhUED5AKHTbuD9MQ_AUICigB&biw=

1366&bih=662>
A luta é substituída pela dança, todos dançam, desde Lampião com Guinevere, Maria Bonita e Lancelote, com o autor relativizando a figura heróica de Lancelote e a imagem de um bandido sanguinário de Lampião, mostrando que as duas personagens apesar de aparentemente desiguais são muito semelhantes, ou seja, são capazes de agir violentamente para resguardar a honra, mas também são amorosos com as suas companheiras e sabem se divertir. Assim, Vilela equipara os dois cavaleiros mostrando que Lampião não foi mais violento do que o cavaleiro Lancelote, um exemplo paradigmático de herói medieval, e assim como o cavaleiro é capaz de ter um grande amor por uma mulher.
* Professor do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

terça-feira, 16 de maio de 2017

PARA VOCÊ, MEU PAI, COM MUITO CARINHO!


*Prof.ª Dr.ª Brunilda T. Reichmann





  
   


A UFPR inaugura a Divisão de Obras Raras da Biblioteca de Ciências Humanas na tarde do dia 05 de maio de 2017. Presentes à cerimônia o Magnífico Reitor da UFPR, Prof. Ricardo Marcelo Fonseca, a Vice-Reitora, Profa. Graciela Ines Bolzon de Muniz, o Coordenador do Curso de Letras, Prof. Paulo Zoethe, as bibliotecárias responsáveis, demais funcionários, professores, alunos e membros da família de Ernani Reichmann: Isolda e Brunilda Reichmann (filhas), Iros Reichmann Losso e Guenia Reichmann Lemos (neto e neta) e Dr. Igo Iwant Losso (genro).

A biblioteca de Ernani Reichmann, considerada a maior da América do Sul em obras de filósofos europeus nos anos 1980, era formada por mais de 12.000 livros, entre eles obras raras que hoje fazem parte desse acervo. Kierkegaard dos Trópicos, como era chamado por alguns amigos, Reichmann não se contentava em ter as obras completas do filósofo dinamarquês na língua original. Ele as comprou em vários idiomas. Essas são algumas das obras que constam desse acervo.

  


A doação dos inéditos publicados depois da morte de Ernani Reichmann por Brunilda Reichmann e Guenia Reichmann Lemos.


 
A filha Isolda (Isoldinha) e o neto Iros,  presentes na doação e na cerimônia de
inauguração.



    

 
Isolda assinando o livro de presença.
No fundo, a placa da primeira biblioteca
formada, em 1986, com as obras de
Ernani Reichmann.

A doação da biblioteca de Ernani Reichmann feita pelos familiares em 1984, ano de seu falecimento, levou à criação da Biblioteca Professor Ernani Reichmann em 1986 (restrita a pesquisadores). Hoje as obras raras dessa biblioteca fazem parte da Divisão de Obras Raras da Biblioteca de Ciências Humanas, juntamente com obras raras de outros três estudiosos que doaram seus livros para a Universidade Federal do Paraná. O acervo hoje á formado por aproximadamente 15 mil obras (livros autografados, primeiras edições de obras, entre outros itens) e passou por um processo de recuperação, higienização e catalogação.
Brunilda Reichmann, no discurso de agradecimento, falou em nome da família e descreveu como Reichmann adquiria os livros nos anos 40, 50, 60 até seu falecimento em 1984. Eles eram recebidos pelo correio (cerca de três meses depois da encomenda feita por carta) como um filho que chega à casa paterna. Reichmann andava com eles embaixo do braço por alguns dias para tentar conter a felicidade de finalmente tê-los recebido.
Ao homem inteligente, instigante e elegante, ao pai querido, ao avô inigualável, nosso carinho, sempre!



* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE 



sexta-feira, 12 de maio de 2017

SER FEMINISTA: O GRANDE DESCOMPASSO DA ACADEMIA BRASILEIRA



* Prof. Dra. Greicy Pinto Bellin


Representativo de considerável ruptura epistemológica e um dos aspectos responsáveis pelo que Suart Hall, em Identidade cultural na pós-modernidade, chama de “descentramento do sujeito”, o feminismo se coloca como uma grande charada acadêmica para aqueles que persistem na crença de que a literatura é simplesmente um objeto estético livre de conotações sociais. Tal crença, que hoje se encontra bastante ultrapassada, ainda coloca entraves para o pleno desenvolvimento de um pensamento feminista na academia, ideia esta defendida por Rita Terezinha Schmidt no artigo “Refutações ao feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira”, publicado pela Revista de Estudos Feministas em 2006.

Na visão da autora, o que ela chama de “refutação ao feminismo” nada mais é do que a representação de um pensamento patriarcal e misógino que desacredita os avanços da crítica feminista no ambiente acadêmico, em uma repulsa ao politicamente correto que mimetiza, ao fim e ao cabo, um pensamento antiamericano que, há muitos anos, se encontra disseminado e até mesmo, enraizado na própria sociedade brasileira. Em seu artigo, Schmidt, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realiza uma verdadeira arqueologia da submissão feminina ao analisar os séculos de dominação patriarcal que explicariam e justificariam a existência desta mesma submissão, apontando para o ranço antifeminista nutrido pelo jornalismo cultural dos anos 90, que teria se apropriado da figura de Camile Paglia, para ela uma pensadora sem projeção acadêmica nos Estados Unidos, a fim não de empreender um debate produtivo a respeito do feminismo, mas de reforçar uma postura antiamericana e antifeminista. À parte os questionamentos em relação à postura da autora, cuja argumentação é bastante provocativa mas concentra-se basicamente em criticar o establishment acadêmico sem oferecer uma solução inovadora para o problema do antifeminismo que tanto a incomoda, surge uma questão que, acredito, inquieta tanto as teóricas feministas quanto aqueles que divergem do feminismo: o que é, afinal, ser feminista? Em que medida o “ser feminista” pressupõe, necessariamente, uma demonização da cultura tida como patriarcal, ou, até mesmo, um ataque virulento a uma vertente teórico-crítica preocupada em analisar o texto literário como artefato estético, sem levar em consideração as ditas “construções sociais” que permeiam este mesmo texto? Vale ressaltar que não percebo o viés estético como plenamente equivocado, como querem a maioria das feministas, tendo em vista que texto literário é arte e não documento. Ao mesmo tempo, seria ingênuo negar a natureza social do literário, relacionada a dimensões de produção, recepção e circulação dos textos. Sem querer entrar na batalha entre formalismo e sociologismo, velha conhecida dos adeptos e estudiosos da teoria literária, o que tenciono apontar é a zona limítrofe a partir da qual se delineia o lugar da feminista, que se constituiria, como quer Elaine Showalter, em um “território selvagem”. Mas será que este território precisa necessariamente ser selvagem para ser feminista, ou vice-versa? Poderia o feminismo se libertar da dependência de uma discursividade marcadamente contestadora para se constituir em uma vertente    sustentada em pressupostos muito próprios e criados no interior de sua própria esfera discursiva?

Creio que as respostas a estas perguntas não podem ser dadas de imediato. Todavia, a própria crítica feminista possui os elementos para que se possa, pelo menos, vislumbrar uma possibilidade de resposta aos questionamentos que aqui coloco. A libertação em relação a uma discursividade contestadora já foi apontada pela ginocrítica, segundo a qual apenas realizar a arqueologia do patriarcado e apontar as razões para a dominação, como Rita Terezinha Schmidt faz em muitos momentos de seu artigo, não é o suficiente para se estabelecer uma vertente teórica de cunho feminista. A sustentação de pressupostos próprios, por sua vez, é também defendida pela ginocrítica, mais especificamente na reivindicação por uma “cultura da mulher” ou “espaço da mulher”, que, por um lado, tende a cair em um essencialismo, afinal, o que é ser mulher? À parte, mais uma vez, os questionamentos sempre inevitáveis inerentes a um debate feminista, o que se observa é a possibilidade, fornecida pelo próprio feminismo, de se construir uma identidade autônoma não apenas em relação ao patriarcado e a séculos de submissão, mas em relação aos próprios pressupostos da crítica feminista, que tendem a se converter em um novo aprisionamento, perpetuando, assim, o ciclo de uma dominação que não é apenas patriarcal, mas ideológica.

Ser feminista, portanto, é ser livre, mas não da liberdade almejada pelas feministas, uma liberdade que, no final das contas, também cerceia e aliena, uma vez que baseada em uma oposição à lógica de dominação patriarcal. O que se percebe, muitas vezes, é que as feministas encenam contra si próprias o que Rita Schmidt chama de “refutação ao feminismo”, projetando tal refutação na academia, demonizada como opressora. Uma conscientização em relação a este mecanismo de projeção seria o ponto de partida para a conquista de uma maior liberdade teórica para as feministas, resultando, em consequência, em nova e tão almejada libertação intelectual. 


Referências

SCHMIDT, Rita Terezinha. Refutações ao feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira. Estudos Feministas, Florianópolis, 14(3): 272, setembro-dezembro/2006, p. 765-799.

SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-55.  

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. O estranho horizonte da crítica feminista no Brasil. In: SUSSEKIND, Flora; DIAS, Tania; AZEVEDO, Carlito (org). Vozes femininas: gênero, mediações e práticas e escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. p. 15-25.

* Professora do Curso de Mestrado em Teoria Literária
da UNIANDRADE
         

quinta-feira, 4 de maio de 2017

“SUEÑOS DIGITALES”, DO BOLIVIANO EDMUNDO PAZ SOLDÁN





                                                                                                                         *Paulo Sandrini

A obra ficcional “Sueños digitales”, do boliviano Edmundo Paz Soldán[1], é uma narrativa urbana, mas que se passa numa cidade-invenção: Río Fugitivo, na Bolívia. O protagonista é Sebastian, ou Sebas, um exímio tratador e manipulador de imagens digitais que, por esse mesmo motivo, acaba por chamar a atenção do governo do velho ditador Montenegro. Reconvertido em presidente e na tentativa de impor ao país falsos ares democráticos, o ditador deseja reconverter também a História recente por meio da eliminação (ou alteração) do acervo de suas imagens[2].

Maquear o mundo que os cerca é a tônica da vida das personagens desse romance. O protagonista e seu amigo Pixel se dedicam a organizar (falsamente, por meios digitais) os exteriores de uma cidade problemática do interior boliviano para que essa se assemelhe a uma cidade internacional e desenvolvida.

O romance agrega duas realidades paradoxais: um mundo criado digitalmente, sobretudo por Sebas (e isso se torna o conflito principal), e a vida íntima do protagonista em sua complexa relação com Nikki.

No campo político, é mostrada a corrupção de um governo aparentemente democrático, que deseja apagar um passado ditatorial. Sebas se deixa comprar pelo dinheiro sujo do governo de Montenegro e se põe a “organizar” o passado do ditador. Isso se dá por meio do processo de modificar fotografias, eliminando dessas narcotraficantes e corruptos que antes estiveram associados ao presidente. Nesse processo de tratamento de imagens, Sebas substitui tais figuras por outras. Exemplo disso é a manipulação de uma foto em que a figura do presidente é mostrada apertando a mão de um morador de rua e de pessoas tidas por “decentes” em meio à sociedade. Assim, são alterados, com habilidade técnica, as imagens negativas de Montenegro e seu passado repressor, de modo que se instaure, por meio de novas imagens, uma Idade de Ouro.

O romance de Soldán, apesar dos traços políticos que contém, não deixa de ser uma narrativa ao estilo McOndo, marcada essencialmente pela vida privada das personagens (suas relações pessoais e afetivas) com o meio que as cerca. É recheado de referências à cultura de massa e à cultura pop, marcado pelos eventos tecnológicos contemporâneos, a evidenciar, dentro dos próprios parâmetros do manifesto publicado na antologia McOndo (1996), um tempo de globalização, de acesso ao mundo virtual e de aquisição de produtos de última geração.

Outro ponto a ressaltar é que apesar de a obra de Soldán ser construída a partir de princípios mcondistas ela não deixa de estabelcer uma evolução crítica em relação ao sistema político e econômico latino-americano caso a comparemos, por exemplo,  com os próprios contos publicados em “McOndo”.

“Sueños digitales” registra a crítica ao proceso de alienação promovido pelo universo midiático.

Ella le quitó el control y cambió a una película en blanco y negro en un canal de clásicos […] Nikki era de esas personas con complejos de culpa por sus huecos culturales e históricos, cada vez que hacía zapping y se encontraba con un canal de noticias o documentales o clásicos, se sentía obligada a quedarse ahí al menos unos minutos, por más que en realidad tuviera prisa en llegar a su telenovela o a Bugs Bunny. El zapping convertía a muchos en seres culpables, incapaces de gozar plenamente de su superficialidad, de admitir que les interesaba más enterarse de los últimos chismes de Hollywood que de lo que ocurría en Bosnia o Ruanda.[3]


Este trecho atua como reflexão sobre a condição do sujeito bombardeado pela cultura de massa, algo tão comum na formação cultural e identitária latino-americana. A ironia que o narrador do romance de Soldán usa em relação à formação cultural de Nikki mostra um discurso voltado a problematizar os prejuízos e a alienação promovidos pela indústria cultural.

“Sueños digitales”, por outro lado, não deixa de questionar (mesmo que em poucos trechos) as políticas econômicas instauradas na Bolívia e em grande parte da América Latina sobretudo nos anos 1990 e início do século XXI. A passagem que trata da Ponte dos Suicidas é significativa desse questionamento:



Los últimos meses había habido un recrudecimiento de suicidios: unos decían que la transición de un milenio a otro exacerbaba las tensiones y era la causa principal de esa oleada; otros, menos abstractos, culpaban a las salvajes políticas económicas de cuño neoliberal — entre ellas el desmantelamiento de los servicios públicos de asistencia social —, llevadas a cabo por los tres últimos gobiernos e intensificadas por Montenegro. Ambas teorías le daban lo mismo a Sebastián. No pudo evitar un estremecimiento al recordar a la mujer que se había tirado del puente una semana atrás. Treinta y cinco años, divorciada, tres hijos menores de diez años. La habían despedido de su trabajo de enfermera luego de que la clínica se enterara que ella cobraba unos pesos extra por limpiar las descuidadas habitaciones de los pacientes. ¿Ésa era razón suficiente…? Nunca lo entendería. Qué egoísmo el suyo, debía pensar en sus hijos. [4]

O romance de Soldán, tratando agora de sua construção de linguagem, surge com aquele tão trivial narrador de fora, que sabe praticamente tudo de suas personagens. É o narrador-deus, que controla passado, presente e pode até mesmo determinar o futuro das figuras humanas e dos eventos inseridos na obra. Ou seja, o narrador fala muito mais que as personagens — e essas, quando se expressam, o fazem de modo, na maioria das vezes, tímido, com pouco espaço para desenvolver um discurso mais particularizado em relação ao narrador externo.
Ao longo da narrativa, Soldán maneja o foco oscilando entre onisciência e discurso direto, por vezes chega a usar o indireto livre. O que dá ao romance um certo ar contemporâneo. Fato é que, apesar disso, o livro se arrasta em uma sequência bastante convencional, sem novidades enquanto linguagem e arquitetônica ou algo que nos faça, como leitores, nos surpreender com ele. Desse modo, o leitor mais atento e crítico pode chegar à conclusão de que certos romances atuais, que trazem consigo o modo “alfaguarizado” de escrita não têm muito a contribuir para o acúmulo de repertório inventivo da literatura latino-americana contemporânea.
Ao construir sua ficção sob a perspectiva de uma sociedade dominada pelo capitalismo neoliberal mesclado a um sistema ditatorial que tenta se disfarçar para fazer crer que se vivem tempos democráticos, Soldán não perde oportunidade de reduzir os indivíduos (personagens) de classe média do romance à condição de objetos, seres sem autonomia; por outro lado, desconsidera que esse mesmo sistema capitalista[5] é também aquele “que provoca a maior estratificação social e o maior número de conflitos da história da sociedade, gerando vozes e consciências que resistem a tal redução”[6].
Além disso, a obra reduz seu mundo ao universo dos sujeitos de classe média globalizados, com acesso à educação e informações que circulam pelo mundo, salvo em alguns poucos trechos — por exemplo, a narrativa sobre o suicídio de um líder operário que pula de uma ponte na capital do país e o da mulher que se suicida na ponte de Río Fugitivo por sua condição de miséria material. Contudo, a ficção de Soldán não nos permite verificar uma preocupação aguçada com os conflitos humanos e sociais engendrados pelo sistema que cerca, encarcera e esmaga as personagens. As variadas formas de violência (econômica, política e ideológica) são pouquíssimas vezes questionadas pelas personagens, que seguem submissas à repressão que assola o país, seja por parte do capitalismo neoliberal ou por parte do sistema político ditatorial. Para além de queremos afirmar que escrever contra o sistema político, econômico ou social seja um dever de Paz Soldán, faz-se necessário argumentar que ao terminarmos a leitura de “Sueños digitales”, temos a impressão de que esse romance aponta para um livro com potencial questionador muito maior. É um livro que nos dá a sensação de que irá se desenrolar em uma direção menos convencional, afastando-se fórmula do thriller. No entanto, isso não ocorre e a ficção de Soldán cai no lugar comum.




                                                                                        Figura 1: Edmundo Paz Soldán.
                                  Imagem disponível em <http://www.latamrob.com/archives/988>




[1] Escritor nascido em Cochabamba, em 1967, um dos destaques da chamada Geração McOndo. É autor do romance “Días de papel” e do livro de contos “Las máscaras de la nada”, entre outros.
[2] FERRERO, Aránzazu. Sueños digitales: Edmundo Paz Soldán.  Disponível em versão digital em: http://www.bibliopolis.org/resenas/rese0412.htm. Acesso em 15 de dezembro de 2012

[3] SOLDÁN, Edmundo Paz. Sueños digitales. Madrid: Alfaguara, 2000, p.49.

[4] Ibidem, pp 29-30.
[5] Apesar de o contexto capitalista observado por Bakhtin ser o do século retrasado, não podemos deixar de entender que a obra de Soldán se encaixa dentro de um contexto de forças neoliberais, privatistas, obviamente capitalistas, e que produz ainda uma grande estratificação social, principalmente em países desiguais como os latino-americanos, fato que engendra vozes discordantes, antagônicas e conflituosas dentro desse mesmo universo regido pelo capitalismo — e isso, acreditamos, deixa de ser explorado em “Sueños digitales”.
[6] BEZERRA, Paulo. Polifonia. Op. Cit. p. 193.      
------------

* Professor do curso de Mestrado em Teoria Literária
da UNIANDRADE

quarta-feira, 3 de maio de 2017

A POESIA DE TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O XX: OLAVO BILAC E AUGUSTO DOS ANJOS


*Prof. Otto Leopoldo Winck
Na periferia do capitalismo, ourivesaria e paroxismo
            Em 1880 o Brasil era uma monarquia (a única na América Latina), escravagista (a última nação do continente a alforriar os escravos), com uma população, basicamente rural, de cerca de dez milhões de habitantes. O romantismo, dominante até algumas décadas atrás, agonizava, acossado por uma poesia que se pretendia científica, socialistas e realista. Uma geração depois, em 1920, o país já contava com uma população de 30 milhões, era uma república consolidada, não obstante instável. A industrialização, ainda que incipiente, ao lado de uma nova burguesia, produzia os primeiros proletários. Na elite dirigente, reinava o positivismo, o qual, de doutrina que pretendia combater a ignorância e a superstição, transplantado para os trópicos, assumia curiosos ares de culto religioso. Ao mesmo tempo, os imigrantes europeus traziam para cá as novas ideias do anarquismo e do marxismo. Na literatura, realismo, naturalismo, parnasianismo e simbolismo, muitas vezes imbricados e sem mais a pujança inicial, já ostentavam um rol considerável de realizações, enquanto aquilo que viria a ser conhecido como modernismo ainda não dera o ar da sua graça, como o faria de maneira ruidosa em 1922, na Semana de Arte Moderna – curiosamente no mesmo ano da fundação do Partido Comunista. A imigração mudara profundamente o perfil da demografia brasileira, “branqueando a raça”, enquanto os ex-escravos e seus descendentes, preteridos como mão-de-obra assalariada, engrossavam os cortiços nos morros e nos subúrbios das grandes cidades que pontuavam num país de feições ainda agrárias. Com efeito, não obstante algumas mudanças políticas e econômicas, o Brasil continuava um país de inserção subalterna no capitalismo global, pagando um pesado óbolo por sua herança colonial. O Rio de Janeiro exemplificava de maneira sintomática essas contradições. No começo do século a capital federal, inspirando-se na reurbanização de Paris, passava por uma profunda reforma, com a abertura de amplas avenidas, túneis e uma maquiagem no antigo centro. Os ambientes saneados e urbanizados, nos quais são combatidos os focos de epidemias como a febre amarela e a varíola, contrastavam com os morros e áreas periféricas, para onde era impelida a população pobre residente na região central. Com essa situação, crescia a delinquência, aumentando o número de delitos de toda ordem. Ao mesmo tempo, nas livrarias e cafés das áreas nobres, agitava-se toda uma fauna de boêmios e literatos, do sofisticado João do Rio ao marginal Lima Barreto. É a Belle Époque carioca, cenário onde circulava a alegre intelligentsia tupiniquim, antes da irrupção, por conta do modernismo, de uma nova geração de artistas e intelectuais baseados em São Paulo. Na poesia desse período, dois poetas podem ser convocados para exemplificar o espírito da época: o parnasiano Olavo Bilac e o “simbolista” Augusto dos Anjos.
O Príncipe dos Poetas
Juntamente com Alberto de Oliveira (1857-1937) e Raimundo Correa (1859-1911), Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), cujo nome já é um alexandrino perfeito, forma a famosa “trindade parnasiana”. Nascido como reação aos excessos da subjetividade romântica e ao seu famigerado desleixo formal, o parnasianismo chega ao Brasil por influxo direto de seu similar francês. O vate se transforma em joalheiro, o vidente em ourives. Em vez da inspiração, o lavor; no lugar do sestro, a perícia técnica. O modelo ideal são as artes visuais, em especial a escultura. O culto da forma, não raro confundido com fôrma (como disse Manuel Bandeira), a arte pela arte, a impassibilidade são erigidas em virtude, como no ideal clássico, e toda a temática da Antiguidade volta à tona, com sua carga alienígena de deuses e heróis greco-romanos. Num país de não-leitores, os poetas parnasianos alcançam invejável glória, sobretudo a supracitada trindade, da qual destaca-se, em evidente primazia, o primeiro príncipe dos poetas brasileiros, Olavo Bilac.
Jornalista, polígrafo, inspetor de ensino, Bilac talvez seja o representante mais típico de nossos triunfantes literatos da Belle Époque – sem dúvida o poeta mais popular de sua época. Contrariando o conselho que deu em “A um poeta”, não fugiu “do estéril turbilhão da rua”, mas antes envolveu-se em intensa atividade política: defendeu a Abolição e a República, engajou-se na oposição a Floriano Peixoto, na campanha pelas reformas urbanas, na defesa da instrução primária, e, no fim da vida, na propaganda pelo serviço militar.
Já no intróito de seu livro de estreia, Poesias (1988), o poema “Profissão de fé” é um exemplo do ideário parnasiano, felizmente nem sempre seguido à risca pelo poeta: “Torce, aprimora, alteia, lima / A frase; e, enfim, / No verso de ouro engasta a rima, / Como um rubim.” Das três partes constitutivas do livro, a primeira é a que mais se identifica com o ideal parnasiano – na escolha dos temas, na ênfase descritivista, no caprichado refinamento, na chave de ouro dos sonetos. Sobretudo, é na segunda parte, Via Láctea, que se revela outro veio do poeta, o que o salva dos excessos da rigidez da escola. Aí se percebe a influência do lirismo da matriz portuguesa, sobretudo Bocage, e um sensualismo de inspiração epicurista. Mas é sobretudo no livro Tarde, publicado postumamente em 1919, que esse lirismo logra ás vezes libertar-se da camisa de força parnasiana e, envolto num doce clima crepuscular, atingir alguns altos vôos poéticos.
Devido a tendência parricida das novas gerações, Olavo Bilac foi um dos alvos preferenciais dos modernistas, o que turvou durante muito tempo sua correta apreciação pela crítica. Todavia, nos últimos decênios, sua obra vem sendo aos poucos revalorizada, não apenas seus poemas “oficiais” como também sua atividade na imprensa, sobretudo as crônicas e os poemas de circunstância.
Poesia agônica
Se Olavo Bilac, salvo em alguns momentos, é um representante típico do parnasianismo, o mesmo não se pode falar de Augusto dos Anjos (1884-1914) com respeito ao simbolismo. É claro que não é apenas sob o ponto de vista cronológico que o poeta paraibano é aproximado ao simbolismo, pois este não é tanto posterior ao parnasianismo como muitas vezes concomitante a ele. Entre Augusto dos Anjos e a escola do Símbolo, não apenas alguns temas mas a sensibilidade os aproxima. No entanto, se o simbolismo, ao contrário da visualidade do parnasianismo, preferiu o encantamento da música, esta soa de modo estridente e dissonante em Augusto dos Anjos. Ao contrário da surdina verlaineana de um Alphonsus de Guimaraens, os acordes do autor de Eu, lançado em 1912, causam estranheza por sua aguda dissonância. Todavia, junto ao poeta de Mariana e Cruz e Souza, uma vocação para a marginalidade e para a melancolia os une. Ademais, ao contrário dos aplausos da trindade parnasiana, esta tríade “simbolista” não conheceu a fama, não gozou de prestígio literário. Contudo, ainda que membro inconteste desse trio, só podemos denominar Augusto dos Anjos como simbolista com aspas de protesto. Ao contrário dos outros, nele não encontramos a fuga para a Torre de Marfim do Parnaso ou do Símbolo, mas sim um amargo mergulho na sordidez da realidade, com fortes cores escatológicas. Em vez do evanescente, a dura materialidade expressa não raro com “antipoéticos” termos científicos. Em vez do sonho, o pesadelo do prosaico. Em vista dessas particularidades, alguns críticos denominam Augusto dos Anjos como pós-simbolista, outros, como Ferreira Gullar, como pré-moderno, embora esses termos nos pareçam demasiado imprecisos. Há ainda quem vislumbre nele traços expressionistas, aproximando-o ao poeta alemão Trakl. De toda forma, Augusto dos Anjos pertence a esta geração na qual o simbolismo, em todas as suas vertentes, preparou o terreno para a irrupção da poesia moderna.
Ao contrário de Bilac, célebre em vida e atacado depois de morto, Augusto dos Anjos, que em vida não encontrou mais que ostracismo, conquistou uma grande popularidade póstuma. Seu livro, o único publicado em vida, vem recebendo seguidas reedições, superando em muito o número de leitores do colega parnasiano.
Referências bibliográficas
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
BILAC, Olavo. Poesias: Panóplias, Via-Láctea, Sarças de fogo, Alma inquieta, As viagens, o caçador de esmeraldas, tarde. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 1998.
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de janeiro: G. Ermakoff, 2007.
CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5. ed. São Paulo: USP/Itatiaia, 1975.
GIL, Fernando Cerisara. Do encantamento à apostasia: a poesia brasileira de 1880-1919. Curitiba: Editora UFPR, 2006.
HELENA, Lúcia. A cosmo-gonia de Augusto dos Anjos. Rio de janeiro: Tempo brasileiro, 1977.
SIMÕES JUNIOR, Álvaro santos. A sátira do parnaso: estudo da poesia satírica de Olavo Bilac de 1984 a 1904. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
*Professor no Curso de Mestrado
em Teoria Literária da UNIANDRADE