* Prof.
Dra. Greicy Pinto Bellin
Representativo de
considerável ruptura epistemológica e um dos aspectos responsáveis pelo que
Suart Hall, em Identidade cultural na
pós-modernidade, chama de “descentramento do sujeito”, o feminismo se
coloca como uma grande charada acadêmica para aqueles que persistem na crença
de que a literatura é simplesmente um objeto estético livre de conotações sociais.
Tal crença, que hoje se encontra bastante ultrapassada, ainda coloca entraves
para o pleno desenvolvimento de um pensamento feminista na academia, ideia esta
defendida por Rita Terezinha Schmidt no artigo “Refutações ao feminismo: (des)
compassos da cultura letrada brasileira”, publicado pela Revista de Estudos Feministas em 2006.
Na visão da autora, o que
ela chama de “refutação ao feminismo” nada mais é do que a representação de um
pensamento patriarcal e misógino que desacredita os avanços da crítica
feminista no ambiente acadêmico, em uma repulsa ao politicamente correto que
mimetiza, ao fim e ao cabo, um pensamento antiamericano que, há muitos anos, se
encontra disseminado e até mesmo, enraizado na própria sociedade brasileira. Em
seu artigo, Schmidt, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), realiza uma verdadeira arqueologia da submissão feminina
ao analisar os séculos de dominação patriarcal que explicariam e justificariam
a existência desta mesma submissão, apontando para o ranço antifeminista
nutrido pelo jornalismo cultural dos anos 90, que teria se apropriado da figura
de Camile Paglia, para ela uma pensadora sem projeção acadêmica nos Estados
Unidos, a fim não de empreender um debate produtivo a respeito do feminismo,
mas de reforçar uma postura antiamericana e antifeminista. À parte os
questionamentos em relação à postura da autora, cuja argumentação é bastante
provocativa mas concentra-se basicamente em criticar o establishment acadêmico sem oferecer uma solução inovadora para o
problema do antifeminismo que tanto a incomoda, surge uma questão que,
acredito, inquieta tanto as teóricas feministas quanto aqueles que divergem do
feminismo: o que é, afinal, ser feminista? Em que medida o “ser feminista”
pressupõe, necessariamente, uma demonização da cultura tida como patriarcal,
ou, até mesmo, um ataque virulento a uma vertente teórico-crítica preocupada em
analisar o texto literário como artefato estético, sem levar em consideração as
ditas “construções sociais” que permeiam este mesmo texto? Vale ressaltar que
não percebo o viés estético como plenamente equivocado, como querem a maioria
das feministas, tendo em vista que texto literário é arte e não documento. Ao
mesmo tempo, seria ingênuo negar a natureza social do literário, relacionada a
dimensões de produção, recepção e circulação dos textos. Sem querer entrar na
batalha entre formalismo e sociologismo, velha conhecida dos adeptos e
estudiosos da teoria literária, o que tenciono apontar é a zona limítrofe a
partir da qual se delineia o lugar da feminista, que se constituiria, como quer
Elaine Showalter, em um “território selvagem”. Mas será que este território
precisa necessariamente ser selvagem para ser feminista, ou vice-versa? Poderia
o feminismo se libertar da dependência de uma discursividade marcadamente
contestadora para se constituir em uma vertente sustentada em pressupostos muito próprios e criados no interior de
sua própria esfera discursiva?
Creio que as respostas a
estas perguntas não podem ser dadas de imediato. Todavia, a própria crítica
feminista possui os elementos para que se possa, pelo menos, vislumbrar uma
possibilidade de resposta aos questionamentos que aqui coloco. A libertação em
relação a uma discursividade contestadora já foi apontada pela ginocrítica,
segundo a qual apenas realizar a arqueologia do patriarcado e apontar as razões
para a dominação, como Rita Terezinha Schmidt faz em muitos momentos de seu
artigo, não é o suficiente para se estabelecer uma vertente teórica de cunho
feminista. A sustentação de pressupostos próprios, por sua vez, é também
defendida pela ginocrítica, mais especificamente na reivindicação por uma
“cultura da mulher” ou “espaço da mulher”, que, por um lado, tende a cair em um
essencialismo, afinal, o que é ser mulher? À parte, mais uma vez, os questionamentos
sempre inevitáveis inerentes a um debate feminista, o que se observa é a
possibilidade, fornecida pelo próprio feminismo, de se construir uma identidade
autônoma não apenas em relação ao patriarcado e a séculos de submissão, mas em
relação aos próprios pressupostos da crítica feminista, que tendem a se
converter em um novo aprisionamento, perpetuando, assim, o ciclo de uma
dominação que não é apenas patriarcal, mas ideológica.
Ser feminista, portanto,
é ser livre, mas não da liberdade almejada pelas feministas, uma liberdade que,
no final das contas, também cerceia e aliena, uma vez que baseada em uma
oposição à lógica de dominação patriarcal. O que se percebe, muitas vezes, é
que as feministas encenam contra si próprias o que Rita Schmidt chama de
“refutação ao feminismo”, projetando tal refutação na academia, demonizada como
opressora. Uma conscientização em relação a este mecanismo de projeção seria o
ponto de partida para a conquista de uma maior liberdade teórica para as
feministas, resultando, em consequência, em nova e tão almejada libertação
intelectual.
Referências
SCHMIDT, Rita Terezinha. Refutações ao
feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira. Estudos Feministas, Florianópolis, 14(3): 272, setembro-dezembro/2006, p.
765-799.
SHOWALTER, Elaine. A crítica
feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de
(org.). Tendências e impasses: o
feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-55.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. O estranho horizonte
da crítica feminista no Brasil. In: SUSSEKIND, Flora; DIAS, Tania; AZEVEDO,
Carlito (org). Vozes femininas:
gênero, mediações e práticas e escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. p.
15-25.
* Professora do Curso de Mestrado em Teoria Literária
da UNIANDRADE
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